.................................................................................não tirem o vento às gaivotas

22/10/2019

eu. a dama e a celulite





foto google





em contramão. uma dama rebuliça e enérgica dirige-se para mim – acerto-lhe com os olhos e interrogo-me: será que vou ter problemas. a esta velocidade vai-se-me enfaixar no pescoço – cabelo loiro oxigenado. levantado à frente. face redonda e rosada. não sei se é cor natural ou está apenas afogueada da velocidade que imprime ao andamento. uma pochete louis vitton contrafacionada num bairro chinês de pequim. acompanha o movimento das pernas numa desordem perigosa. ainda vai dar com o adereço na cabeça de algum transeunte – botas douradas. furadas com estilização. sobem-lhe pela perna com ganas de chegar o mais longe possível – dois dedos acima de uma rótula rombuda e três abaixo da cintura uma pequena mini saia branca vestida com desprezo. a fazer sobressair uma cicatriz mal-arrumada no umbigo. mascarada de importância com piercings-diamante falso de quinze quilates – confesso que fiquei com a ideia de que a saia era apenas um adorno para desviar as atenções do umbigo – olhos redondos. claros. a contrastar com uma pintura excêntrica. um negro que não era luto. balançava o corpo numa agitação perigosa para os dois enormes seios amarrotados pela licra preta de uma camisola de alças – confesso que por momentos entrei em pânico. a aproximação apresentava-se desatenta. descuidada e desnorteada e decididamente em excesso de velocidade – tinha que evitar a todo custo o embate – já não tenho condições para choques com viaturas de transporte de matérias perigosas – cerrei os dentes e preparei-me para a fusão dos corpos – quando pensei que o embate era inevitável a dama num movimento de toureio atira com as ancas para um lado e sai com o tronco pelo outro – foi tudo tão rápido que comecei à procura da bandarilha espetada no corpo – felizmente tudo não passou de excitação – olhei para trás e ainda não recuperado percebi que a minha alucinação se deveu a uma mini saia comprada nas galerias lafayette de paris. encandeou-me. cegou-me. roubou-me o norte e mesmo numa excitante desordem mental. percebi rapidamente que me tinha perdido nos adereços. a testosterona invadiu-me os neurónios. começou a descer-me pelas vértebras. comecei a suar em bica e quando dei conta estava com a dama em pecado. em pensamento. mesmo à minha frente – era muita mulher para mim. era muita curva e contracurva. era um pecado quase mortal. deus e a minha companheira nunca me perdoariam um pecado com esta dimensão – desorientado. fiquei sem saber se seria melhor atirar-me para uma valeta ou aceitar o embate como inevitável e preparar-me para as consequências – era impossível ficar indiferente às propriedades naturais [penso eu] desta excêntrica dama – deitei os olhos ao chão. arrependi-me. voltei a olhar. deitei novamente os olhos ao chão. voltei a arrepender-me. voltei com os olhos para o chão. e é quando surpreendentemente a dama dirige-me a palavra: estás a olhar para onde – surpreendido. envergonhado e embaraçado respondi: estava a olhar para a celulite. isso não está nada bem e não condiz com a mini saia – e assim. numa manhã de quarta-feira nos cruzamos numa eternidade de tempo: eu tão cedo não vou esquecer esta dama e a dama vai comprar todas os cremes anti celulite que existirem no planeta e arredores – ninguém se transforma naquilo que não é





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