o telefone tocou. ligaram-me
a dizer que eu tinha falecido. há segundos ainda conversava comigo – como é
possível? tenho tanta coisa por dizer e fazer – e agora? como irá sobreviver a
outra parte de mim? talvez não chore. talvez ria. talvez descubra que eu era apenas
um estorvo. um íman para todo o azar do mundo – lembro do dia em que deixei
cair aquele verbo do azar. sim. bem no pé da outra parte de mim. foi o momento
em que estivemos mais próximos de morrer os dois – mancamos toda a noite. e até
os sonhos dourados que lhe tinha prometido ficaram negros – vou ter que chorar.
ignorar que morri seria impossível. afinal. é normal chorar pela morte – vou dar
esta última prenda a mim mesmo – preciso chorar. talvez assim me sinta mais perto
da outra parte de mim – já nada me interessa. afinal morri e sempre que alguém
morre tocam os sinos – mas quem vai saber que morri? se a outra parte de mim
não quer saber. que se foda. mesmo que ninguém toque o sino. vou ouvi-lo na
minha cabeça. não quero que a outra parte pense que encaro a morte com
leviandade – tenho que chorar e não consigo encontrar uma única lágrima dentro
deste corpo. talvez o problema seja da outra parte de mim. talvez seja imune a
dramas. e essa imunidade tenha contaminado o meu olhar. até o olho que vê. às
vezes. vê o que não quer – já não me importo. sei que sou eu quem escreve. e já
que morri sufocado por uma overdose de palavras presas na garganta. também não escreverei
mais nenhuma palavra que lhe alivie a dor – hoje. como morri e o sino tocou.
sei que dormirei sem estas dores malditas que me corroem os ossos. mutilam a
alma em cada segundo de olhos abertos – hoje. dormirei sobre os trapos que me
tapam os ouvidos – não consigo suportar mais estes gritos – sei que morri para
o outro. mas o mar continua a dançar. e as minhas gaivotas ainda cortam o
vento. procuram uma falésia para onde descansar enquanto a tempestade dominar a
escrita
.................................................................................não tirem o vento às gaivotas
09/08/2010
vou ter que chorar. morri
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