maior amigo é o silêncio da noite – digo-lhe o que não diria a mais ninguém. e
ele ouve-me como só os verdadeiros amigos sabem fazer
31/07/2017
deambulações noturnas XXI
24/07/2017
amo-te porque existes dentro de mim
apenas uma
pequena nota sobre a celebração dos meus trinta e três anos de casado – o
casamento é um compromisso de amor entre duas pessoas que juram cuidar uma da
outra até que a morte os separe – tudo o que sobra deriva desta única premissa: o amor – mas para os homens é muito
mais do que um compromisso [quase sempre] selado aos olhos de deus. é essencialmente a libertação em
definitivo da volubilidade jovem. da imaturidade. do egoísmo. da impetuosidade e
da irresponsabilidade – essa libertação trouxe-me a segurança das noites que. com o seu efeito lento e repetitivo. me ensinaram a crescer numa cumplicidade
graciosa – nunca mais parei de crescer.
tu também – prometi amar-te um dia de cada vez. assim fiz – ao fim do dia.
depois de o sol se esconder. os
lençóis abriram-se sempre em seda.
os chinelos descansam aos pares à entrada dos sonhos partilhados – nunca
tivemos medo do tempo. envelhecemos a saber sempre tanto um do outro – fecho os
olhos. dou-te a mão e levo-te ao dia
em que tudo começou e recapitulo o meu sim:
sim. aceito esta mulher na alegria e
na tristeza. na saúde e na doença. em todos os dias da nossa vida – nunca
mais aquela igreja viu uma noiva tão bonita – acasalamos os olhos na eternidade. depois. ansiosos. unimos as
mãos e trocamos um beijo que é todo feito de gratidão e entregamo-nos um ao outro sem medo de nenhuma palavra – os nossos
filhos são a nossa graça e testemunhas de que os dias voaram – o amor
ensinou-nos a viver numa cumplicidade feita também de aceitação – não me canso
de te pedir perdão mesmo que tantas vezes as minhas palavras fiquem por dizer –
são mais de doze mil noites – amo-te porque existes dentro de mim
12/07/2017
deambulações noturnas XX
frequentemente o pensamento veste-se
de mendigo – arrogante. o ego. fixa-se apenas nos botões de ouro em camisa de
seda – engano tremendo – tantas vezes. por baixo dos farrapos. esconde-se a
alma de um poeta privado de papel para cobrir a sua escrita em noites de aprumo
literário
03/07/2017
no meu peito já não cabem gaivotas* 1 - 2
1. a
morte física ou da personalidade
a morte física de um corpo – declara-se o óbito
quando é devidamente comprovada a inexistência de sinais vitais no corpo
humano. isto é. a total falência dos seus órgãos e a ausência completa de
atividade cerebral – o médico-legista declara o término da vida. apontando as
possíveis causas do óbito e permitindo deste modo o desaparecimento do corpo
para sempre do mundo sensível
2. a
morte emocional
aponto o meu foco para uma morte menos dolorosa.
menos repentina. uma morte que vai acontecendo aos poucos. quase sempre em
passo de tartaruga. tão lenta que o sistema de alerta cerebral acaba ludibriado
pelo seu vagar: a morte emocional – esta. sem que na maior parte das vezes a
ciência saiba explicar. acontece quando as defesas do corpo. num conluio
terrorista. consentem no descarnamento da sua rede de neurónios. expondo assim a
sua intimidade a uma censura coletiva. insensível e muitas vezes injusta –
dá-se então o curto-circuito. o cérebro atrofia. o corpo estremece de medo. de
seguida estremece de um frio que é mais do que gelo. é um imobilismo aterrador
perante o desconhecido – o corpo humano revela na sua plenitude a sua
fragilidade – só há uma forma de se proteger. imolar-se na indiferença.
esquivar-se ao raciocínio e esconder-se no abismo dos silêncios que carrega – e
ali fica. parado. quase sem respirar para enganar as chispas que agora lhe escorrem
dos olhos em forma de apatia letal – se hoje o mundo ruir este corpo já não lhe
pertence – tudo que lhe sobrevive resiste num cosmos desocupado de emoção – do
passado só reconhece o barulho. sempre impertinente. como se o mundo andasse
numa fona irracional. noite e dia. sem descanso. arrastado por um pêndulo
ritmado pela indiferença. a marcar os dias num desinteresse total pela
quietação – e o que ainda sobrevive à derrocada sentimental é agora tratado com
doses maciças de um químico afetivo. fertilizado no útero de uma mulher mais
pura do que o céu – resistir é agora a única mensagem emitida por si e apenas
para si – mas a sua vontade já não chega – o corpo por dentro contorce-se numa
desordem incontrolável. uma tempestade impossível de acalmar. enquanto por
fora. a ressaca é um turbilhão de imagens que já não quer compreender – tudo o
que compreende o lhe fere a alma – não se quer compreender os livros. a
religião. a família. o amor. a compaixão. a vida. os amigos. a razão pela qual
se nasce ou pela qual se demora tanto tempo a morrer fisicamente – no caos da
morte emocional já não é possível acontecer uma nova ordem. um novo recomeço.
um novo ciclo de vida imaginado. traçado ou idealizado – corpo e mente
degradam-se numa responsabilidade repartida. uma guerra sem vencedor em que
cada uma das partes responsabiliza a outra pela falência emocional – cai por
terra a regra da sobrevivência do mais adaptado – o corpo perde o medo da dor
enquanto o cérebro perde a vontade de chorar. e assim. se esvaia de forma
definitiva as frugais probabilidades de um regresso à lucidez – enquanto a
memória se apaga seletivamente o silêncio vai-se alastrando ao corpo todo – o
mundo já não é mensagem – já nada traz movimento. as mãos recusam brigar
enquanto os pés se recusam caminhar – apaga-se as origens para não a
envergonhar. apaga-se o amigo para não o magoar. apaga-se a felicidade para não
trazer saudade. apaga-se a ambição para evitar o erro. apaga-se o futuro porque
só o presente existe. apaga-se a fé porque deus é um mito. e por fim. apaga-se
a luz para que ninguém nos veja no escuro – louvar a vida é uma provocação ao
destino que pode terminar a qualquer momento tragicamente. basta que o mal
vença o bem uma única vez – o mundo é um vício que nos pode matar de uma
overdose – levanto os olhos abatidos e transformo o vinho em água. desmultiplico
o pão. elimino a confiança e digo-lhe apontando para o céu: quem me seguir
entrará no reino do inferno e viverá na dor para toda a eternidade – o silêncio
pinga agora uma única pergunta: porque eu? – não há resposta – e todos os
mortos emocionais perguntam o mesmo e a resposta é desespero: salve-se quem
puder porque cada cabeça terá a sua sentença – fecham-se as portas por fora.
correm-se as janelas para a escuridão e entrega-se o corpo à tortura até que a
coragem se sobreponha à mágoa – é obrigatório expiar o erro – sofre corpo.
sofre corpo porque só a dor torna o homem superior – um corpo doente acredita
em tudo – mas para que interessa tudo isto se o corpo está a morrer de apatia –
não interessa. não importa. não vale a pena – o corpo que morre emocionalmente
ignora os estímulos humanistas. os valores morais. a justiça. a liberdade. a
fraternidade. a solidariedade. o amor pelo próximo. mas acima de tudo o amor
por si próprio – este corpo. desfalecido e esgotado. é forçado a refugiar-se em
zonas escuras. proibidas. suicidas. onde prolifera a autocomiseração – uma
viagem ao centro de uma dor inesgotável. indomável. selvática. impiedosa.
acabando por se perder numa espiral de tragédias. de desastres e de fatalidades
que raramente permitem a sua reutilização para uma nova vida – com a morte
emocional perde-se tudo. até a dignidade – este mundo mata pela mentira. promete
a todos o que só pode conceder a alguns – termino com uma frase do mia couto:
“quem vive num labirinto, tem fome de caminhos”
- a terceira parte do texto será dedicada à
morte terapêutica
- *título extraído do livro de nuno camarneiro
– no meu peito não cabem pássaros