tenho a
certeza de que é sábado apesar dos raios de sol me parecerem diferentes daqueles
que me abordaram há oito dias – há nestes raios de sol um calor desigual. menos envolvente. menos sedutor. mais
divergente. egoísta. em total contramão com o ideal de todos
diferentes. todos iguais – este sol
acordou num formato de apatia discriminatória. mais seletivo. só
aquece o que quer. elitista. sem equidade. sem passar cartão. diria. indiferente – sinto o corpo a tremer.
a pele pálida. enquanto os ossos
engastalhados seguram. em
dificuldade. as mãos a pedir um novo
desafio – a vontade de escrever está cada vez mais intrincada. o sol. hoje. não aquece – os
pés cansados fogem do corpo a sete léguas.
enquanto este. em esforço. não para de os incomodar – já compreendi
que não adianta fugir do que o destino emparelhou – sinto o corpo diferente. assim como se me fosse desconhecido. estranho. sem nome próprio. marginal – se fosse uns sapatos diria que eram
novos. novos em folha. a estrear no mundo dos caminhantes. nas primeiras passadas. vaidosos por ostentar uns calcantes a
inaugurar caminho. acontecem os
primeiros obstáculos: duas
belíssimas bolhas nos calcanhares. vermelhas como um pôr-do-sol
escaldante. zangadas. obrigam o corpo a caminhar inclinando-se
para o lado do desespero – o primeiro sinal de que não há caminhos sem compromisso
– tudo que é novo tem que ser aprovado pelo corpo. primeiro desconfia. rejeita. com o tempo tolera. suporta. admite com condições e
finalmente. com o tempo. adapta-se ao molde ou obriga o molde
a adaptar-se a ele – sei apenas que esta sensação de calor. de quentura. agora
mais abrasamento. talvez aconteça
para me fazer perceber que não há dois dias iguais – vivo este sábado como se
fosse o primeiro da minha vida. com
medo – com a idade vamos querendo ver morrer algumas partes do corpo de que não
gostamos. já não achamos piada ao
molde. queremos parti-lo. despedaçá-lo. esmagá-lo e esconder
os cacos do mundo – é sábado. o sol
apanha-me de frente. forte. a expulsar as sombras para norte
enquanto o passado. incrédulo. não sabe como fugir da luz – fujo sem sair de dentro de mim – o silêncio perde-se nos raios de sol. coloco-me de lado. de perfil não existo. estou meio escondido e o outro meio é
apenas mistério – só meio corpo apanha uns quantos raios de sol – excesso de
luz faz mal à saúde. envaidecemo-nos
e deixamo-nos encandear. cegamos com os olhos abertos – tudo que é em demasia
acaba por fazer mal – não sei muito bem decifrar este calor. um calor-fogo que não é explicável. talvez transpiração. aflição. talvez premonição. talvez uma loucura que ultimamente não consigo tirar dos meus delírios
– estou no meu velório e não sei como dizer ao cangalheiro que me leve com
urgência para o crematório – as obséquias deixam qualquer morto à beira de um
ataque de nervos – já não há paciência para tanta pieguice sentimental – em boa
verdade. o que se aproveita de estar
morto é o silêncio – apesar deste descanso eterno me confortar preocupa-me não
ver ninguém a chorar – devo ter tido
uma vida de merda – não deixo saudades a ninguém – mas também estou a ser ridículo. enquanto estive vivo nunca me
preocupei com estas coisas do choro e agora. só porque estou morto. sinto a falta
– razão tinha a minha mãe quando dizia que a velhice é ingrata. o que não fazes de novo dificilmente
farás em velho – se tivesse feito um pé-de-meia de amigos de peito teria hoje
ao meu pé uns quantos em lágrimas – não
fiz. agora nada feito. o que não tem remédio. remediado está – sou muito pateta. afinal sempre soube que seria assim – nunca fui capaz de fazer amigos de
conveniência – não quis viver em mentira para morrer em verdade – deveria ter
deixado ordens para que me contratassem uma dúzia de carpideiras. não umas quaisquer. umas com provas dadas em velórios
complicados – evitar vergonhas à família é fundamental – talvez seja melhor
assim. sempre gostei do silêncio. o homem só cresce verdadeiramente em
silêncio – mas a realidade agora é
outra. depois de morto já nada
cresce. que se dane. afinal estou morto – o melhor mesmo é
continuar neste meu choro interior. este
choro que é só meu. mereço-o. mesmo que ninguém o ouça – sou digno deste silêncio – as
pessoas entram todas esfíngicas pelo velório adentro. com ar de quem sofre.
mas mal se começam a aproximar do defunto deitam os olhos ao chão. fazem o sinal da cruz e pernas para
que te quero – para algumas criaturas acredito que esta fuga não é por mal. não lidam bem com a morte e não
gostam de gente que já não respira – mas para outras alminhas a questão é
diferente. têm medo que o defunto lhes pergunte: que raio está tu aqui a fazer? e elas
a fingir que são surdas. a assobiar
para o lado enquanto percorrem os bolsos à procura de um lenço que nunca assoou
nada – mas também não consigo encontrar explicação para terem estes medos. afinal de contas o morto nunca as
tratou mal em vida não seria no velório que lhes pediria satisfações – mesmo
que me apeteça não posso chorar. não
posso mesmo. pode entrar alguém que
não me conheça bem. só os amigos me
viram chorar. não é depois de morto
que vou dar esse prazer a quem não me conhece – um homem não deve chorar em
frente a desconhecidos nem que esteja com as tripas na mão – é sábado. está sol. talvez este calor me tenha afetado a
moleirinha. talvez não esteja a
bater bem dos carretos. talvez…
talvez tanta coisa – aos sábados costumo estar sempre mais morto do que vivo –
para todos os efeitos ainda não estou morto.
estou a escrever e nenhum morto é capaz de escrever – escrever só mesmo os
moribundos
.................................................................................não tirem o vento às gaivotas
18/09/2017
o homem só cresce em silêncio
francisco sousa
12/09/2017
reencontro

salvador dali
já não era sem tempo – há muito que me perdi no vosso tempo. um
que vocês inventaram para me fazer perder algo que jamais recuperarei – hoje.
estou de volta ao meu próprio tempo. estou só. melhor. estou comigo – é bom
estar comigo novamente
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