.................................................................................não tirem o vento às gaivotas

05/08/2019

eu. o max e o avião







toca hauser. toca sem parar e sem me questionar – desperto-me. abandono o instrumental da música clássica e recupero o mundo – estremunhado. aceito contrariado o meu regresso às coisas com espírito: há vida no céu. há um avião a zumbir nos meus ouvidos – o barulho dos aviões. às vezes. confunde-se com a trovoada e fico sem saber se é jesus que está a ralhar comigo ou se é apenas um avião perdido no céu – paro. escuto. acerto o ouvido com a janela. aparto o mundo que vejo para os lados e capturo definitivamente o som do avião. mas não a sua atenção – estou inequivocamente desperto para o mundo real. os seus decibéis resgataram-me do mundo das possibilidades – gosto de sonhar. quando sonho acredito em coisas que acordado seriam impossíveis – sempre que sonho sei que me torno numa possibilidade – tenho até uma leve intuição de que a qualquer instante pode aterrar no meu escritório – o avião voa mesmo. e não se riam: o avião voa pelo ar – gosto de aviões porque estão mais próximos do céu do que eu – eu só vejo o céu à noite quando as estrelas o iluminam – será que há um aeroporto para lá das nuvens? será que os aviões andam no ar para levar os crentes para mais perto de deus? – quem sabe. um dia. um desses médiuns famosos que agora passam na tv. para aumentar o seu share. combine um acordo com deus para aparecer a acenar em cima de uma nuvem – não sei para onde vai este avião. ou mesmo se vai para algum lado. ou se anda às voltas para me irritar. a embrulhar o som na minha vida sonhadora. a tentar questionar-me porque não olho para o céu. para as coisas que voam – o avião faz barulho. voa. voa como alguém que sabe voar. talvez um pássaro. ou alma acabada de falecer. ou papelinho largado ao vento. ou disco voador. ou palavra vociferada por boca magoada – há coisas que foram feitas para voar – eu não sei voar. nem ouso pensar em voar. quer dizer. às vezes penso. mas o espaço no meu escritório é tão reduzido que frequentemente metade do que penso fica fora da janela e é quando dou conta de que está tudo estatelado no meio da rua – por isso é que gosto de ser comedido nos pensamentos. não porque não queira pensar em altos voos. não. só não quero vê-los ignorados e espezinhados – já não tenho estômago para mais desgostos – confesso que estou alterado com o avião. aborreceu-me. roubou-me um daqueles sonhos raros e que só aparecem de tempos em tempos – e agora. que acordei para o mundo das impossibilidades. já não sou capaz de o recuperar – quando perdemos um sonho é para sempre. mistura-se com a realidade e dissolve-se no meio da multidão – por isso é que me irrito quando um avião me desperta com barulho que não vejo. ainda se fosse um automóvel de escape livre. ou uma bulha de vizinhos. era fácil. ia à janela e sempre lhes podia disparar uns quantos impropérios. agora um avião. lá nos confins do céu. por muito que berre ninguém me ouve – quando me altero fico confuso. perco-me de mim. irrito-me e vou às nuvens sem tirar os pés do chão – não gosto de pensar em voar. fico com medo do que o mundo pensa – prefiro a minha solidão em terra. quer dizer. eu nunca estou só. tenho o meu cão. o max – o max é um cão especial. sempre que trocamos olhares fico com a sensação de que posso voar dentro daqueles olhos – mas não posso. nem eu. nem o max – não fomos feitos para voar senão tínhamos nascido com asas e não nascemos – aceitamos a nossa vocação terrestre com resignação e dignidade – creio que o max até aceitou primeiro do que eu. rapidamente o senti conformado com a vida que lhe tocou – para lá dos anjos nos livros da catequese nunca vi ninguém com asas. mas conheço muita gente que voa sem asas – não me peçam para explicar como voam porque não sei – eu sempre que tentei voar estatelei-me ao cumprido – não tenho jeito para as alturas – ainda bem que a minha mortalidade não tem lugar marcado no céu. mas sei que um dia voarei em cinza – e aqui estou eu com o barulho do avião. que tal como os comboios no seu trabalhar nos diz: pouca terra. pouca terra. o avião. porque anda no ar. diz-nos: porque não voas. porque não voas – e a resposta é fácil: não voo porque não tenho asas e mesmo que tivesse estou convencido que não voaria. seria como a avestruz que apesar de ter asas não tira os pés do chão – para vos falar verdade até creio que tenho um pouco do DNA de avestruz. não por não voar. mas por meter a cabeça num buraco e acho que estou escondido do mundo – o buraco é a minha casa que me guarda de todas as dores. e é aqui que me encontro comigo. estendo as mãos e olho para o meu céu: um candeeiro com quatro lâmpadas de casquilho fino e um teclado iluminado com letras aos saltos. como passarinhos no ninho a ensaiar o seu primeiro voo. e todos os sonhos de uma vida na ponta dos dedos – sinto que o max já está irritado com o barulho do avião. rosna. mostra os dentes e olha para mim como se estivesse a perguntar: fazemos alguma coisa? para o acalmar rosno e mostro também os dentes – somos unha com carne e temos o mesmo lema dos mosqueteiros: um por todos. todos por um – resolvi dizer-lhe que um dia também iremos voar. compro dois bilhetes na TAP e voamos para faro. ida e volta. vamos de manhã e vimos à noite. sempre tive curiosidade de ver as estrelas de perto – as estrelas existem só para nos obrigarem a olhar para o céu – hoje não me apetece olhar para o céu. estou sentado na minha cadeira e ainda não comprei os bilhetes – tudo o que sou está capturado num aro de madeira sucupira clara. contorna a janela numa esquadria triste e ausente de liberdade – sem liberdade ninguém é capaz de sonhar ou levantar voo – e o meu mundo a fugir por uma janela preenchida de impossibilidades. protege-se com uma persiana feita de buracos organizados. xis em xis centímetros uma entrada de luz estilizada – gosto de persianas furadas com arte. com design. com criatividade e ao mesmo tempo. como se soubessem que o excesso de luz pode cegar. são também protetoras. controlam o caudal de luminosidade. deixam entrar apenas o necessário para alimentar a vida sem que se corra o risco de cegar – por isso é que gosto de persianas. se estamos deprimidos fechamo-la e temporariamente podemos morrer para o mundo numa solidão escura. e sem hora marcada para o regresso. e quando entendemos ressuscitar da morte silenciosa. abrimos a persiana aos poucos. num vagar sem pressa. e a luz a tomar-nos gota a gota. numa renovada claridade. purificada de todos os males do mundo. prometendo proteger-nos para sempre do inferno da vida – entrego-me à luz. primeiro um braço. depois outro. de seguida o tronco. as pernas e por último os olhos. quero ver tudo. quero ver o que a luz ilumina. quero ver-me na renovada luz e deixo-me subir ao céu como se fosse um avião. e rio como se estivesse a ser carregado por anjos. e voo como se fosse pássaro. e abraço-me como se os braços estivessem carentes de um corpo. e vivo como se quisesse viver. e quando a noite chegar. sento-me numa estrela que desenhei num papel triste e fico a olhar para o que restou de mim. para o que me trouxe a esta paz. a cada pessoa que conheci. a cada flor que colhi e a cada gota de chuva que me tocou e adormeço como se estivesse a sonhar com gaivotas que voam no céu – preciso de deixar de ouvir o avião. se tivesse um canhão atirava-o abaixo e depois. suportava o que o mundo pensasse de mim – estou farto de o ouvir – revolvo-me na cadeira. irrito-me – para que estou eu aqui sentado se a minha vocação é levantar voo – e a janela a pedir-me que voe como um avião – mas não. não voo e também não vivo num quadro de renoir a celebrar a beleza do mundo das flores. dos tons melódicos e das crianças de mãos dadas aos pais e eu no pincel do mestre a pedir-lhe para me pintar. para me misturar com as flores. com as crianças que correm como se voassem e o pincel do mestre a voar na tela como se fosse um avião no céu e a mistura das cores quentes. as crianças quentes. as flores quentes e as cores mescladas com arte a oferecerem agosto quente. saudade quente e o poeta das cores a fazer voar o seu próprio tempo como se fosse um avião que voa sem barulho num céu que se pode apanhar com as mãos – meu deus. como gosto de agosto e de aviões – porque não pinto eu? por agosto e pelo renoir era capaz de voar mesmo sem asas – mas não. estou preso a uma janela em sicupira e tudo o que vejo são pedras no chão a revolver o céu. a guardar as sombras dos aviões que não vejo – mesmo assim gosto da minha janela. gosto da pouca esperança que guarda nos seus caixilhos. um dia vou ver os aviões – um dia a minha janela de sucupira vai voar como os aviões – sei – há noites em que o meu desejo é apanhar uma estrela e trazê-la para junto de mim. mas já percebi que não é possível. o problema nem é a distância porque às vezes do longe se faz perto. o problema é que as estrelas só brilham no céu – para que quero eu uma estrela que não brilhe? tal como escreveu nietzsche quanto mais nos elevamos. menores parecemos aos olhos daqueles que não sabem voar – a noite chegou. o pôr-do-sol morreu de vez. só o barulho do avião resiste à morte. sei que não morreu porque ainda se continua a ouvir – os aviões confundem-se com as estrelas e estas confundem-se com olhos iluminados de tristeza – quando um homem está mal até as estrelas cintilam dor – só os aviões continuam no ar – as minhas coisas não voam como os pássaros. ou os aviões. ou mesmo as desilusões. ou anormalidades que a ciência ainda não catalogou – estou farto. é hora de voar como se pode – com coragem atiro o corpo aos pés e voo. voo de mim até ao chão e na ligeireza da queda a lembrança do alfaiate voador que se atirou da torre eiffel com a infinitude cega de que não importa o tempo de voo. importa mesmo é voar – eu voo da cadeira para o chão e do chão para a janela arrasto-me como se estivesse a voar – se um dia passarem pela minha rua e virem uns olhos pendurados numa janela… sou eu a tentar voar