.................................................................................não tirem o vento às gaivotas

25/09/2020

a tragédia bela de criar

 

                                                                pintura: robert t barrett



o mundo é uma galeria de arte. milhares de livros. sinfonias. esculturas. pinturas. cada um irrepetível. de várias épocas. várias tendências. várias escolas. uns mestres. outros bafejados pela sorte de uma única pincelada. de um traço preciso e fino. e a obra com o nome afixado numa rua sem fim – aos olhos do mundo. para além do espanto. nada mais existe na arte senão o produto final: o artista é apenas a ferramenta da criação do belo – na obscuridade vivem as mil razões para cada palavra parida. a cor trabalhada. o tipo de traço. a luz e as sombras. a meditação. a organização. a apuração e seleção final de todos os ingredientes – a imortalidade da obra nunca é fruto do acaso – finalmente as naturezas mortas tornam-se menos mortas do que o génio – o artista é do mundo. digna ou desprezível a sua obra. é mesclada com os ácidos do trato da digestão. degustada na penumbra do palato. ora com delicadeza. ora trinchado. é compreendida ao gosto de cada dente: boa. má. de génio. indiferente ou medíocre – nunca se será mais nada. nem cheiro ao suor. às lágrimas. à indisposição. ao punhal suspenso a rosnar à criação. entre o cair e não cair. à vontade cega de trocar toda a sua existência pela ressurreição de uma única palavra. de uma única cor. de uma única nota – depois da obra não se é nada. nada para além das folhas com a sua súplica em glosas quase indecifráveis: salvem-me. aceitem-me – liberdade ou morte – é no meio da edificação do talento que se aquietam os génios. estáticos e indiferentes aos íncubos das palavras maldizentes. sofrem ainda os horrores da revolução cultural chinesa: um dia queimam-me – esta gente precisa de saber que nos imortalizamos pela palavra. e não pelo esquecimento – o corpo descansa sempre a sul numa tranquilidade solene. vestido de pedra. imortalizado pelas mãos. recusa virar os olhos à mortalidade – a tela. a mármore. o papel. a madeira. será sempre um grito desesperado do que vive no íntimo dos fazedores de arte. um desejo de imortalidade sem desejo pelo corpo. uma esquizofrenia incurável. uma luta sempre perdida. um interior de um homem despido face ao egoísmo do belo absoluto. um coração na obra a bater para sempre – todos os homens fazem arte. nem todos os homens serão artistas – todo aquele que gosta de escrever sabe que um dia morrerá esquecido numa folha de papel sem arte