soubesse eu
o futuro. soubesse eu o que me espera. e tudo seria mais fácil. mas não sei –
sei que às vezes estou cansado. outras vezes melancólico. às vezes zangado e
irritado. ou agoniado também. e em dias
que não sei precisar. como se merecesse um bónus divino. fico radiante e
enérgico. é então que salto para fora de mim e corro sem saber como parar. e
pergunto-me: por que não corro assim todos os dias – talvez não mereça. talvez
não tenha sido feito para correrias. talvez tenha nascido já envelhecido. ou
com aquela doença rara que envelhece crianças -hutchinson-gilford- como se o
tempo tivesse começado de trás para a frente – mas agora sei que o corpo se avelhentou.
enrugou-se por dentro. mingou. só a cabeça continua parada num apeadeiro à
espera da passagem do último alfa – e o corpo geme como se fosse um bebé
acabado de nascer. a olhar para o mundo com espanto. uma gota de orvalho ali. um
pedaço de sol acolá. um pauzinho de algodão doce a fazer sorrir o pai da
criança. o fumo de um cigarro a girar para o infinito. a lua a ir e a vir. às
vezes prenha. outras anorética. e as pessoas passam de um lado para o outro sem
tempo de chegar a lado nenhum – e eu a olhar para os meus sapatos negros. de
luva. finíssima. e a perguntar-me porque correm as pessoas se vão descalças –
se o futuro me tivesse sido revelado. também me tinha descalçado. tinha corrido
para lá mesmo que depois não soubesse o caminho de volta. tinha inventado uma
casa apeadeiro e metia o alfa dentro do guarda-vestidos pendurado numa cruzeta
a apitar. a anunciar fim do destino. e eu estendido numa senhorinha encarnada
acertava o relógio para o dia em que nasci – quando damos conta os pássaros de ruy belo já não nascem
nas árvores. A macieira já não dá maçãs. e os pecados começam a cair de podre. melosos
e fedorentos. deixamos de ter raiva. cobiça. desejos pecaminosos. o esperma
coalha e as pernas tremem porque tremem. esvaziamo-nos de tudo. ficam apenas
meia dúzia de palavrões agarrados a uma língua que também deixou de estar
afiada. e quase já não consigo mandar tudo para o caralho mesmo que este habite
no mastro mais alto de um navio fantasma – deixamos de pensar no corpo por
inteiro. não queremos saber do cabelo. dos olhos. da pele. da camisa lacoste
que a cobre. nem dos sonhos. só queremos mostrar o fígado e dizer a quem nos
ouve: vejam só este fígado. está como novo. purga o sangue melhor hoje do que
há quarenta anos – depois amarramos no coração e levantámo-lo no ar para que
ninguém deixe de o ver e dizemos: ama mais hoje do que há quarenta anos. bate
como os sinos aos defuntos – queremos dizer com todo o vigor que nunca
embarcamos no alfa para lado nenhum e tudo em nós está como quando aparecemos
ao mundo: virgem e inocente – e enrodilhamo-nos na senhorinha a sonhar com o
passado. e ali ficamos. como se tudo tivesse acontecido no dia anterior. às
vezes a dormir. outras apenas com os olhos fechados e o corpo acordado de
cansaço. os sapatos-luva pendurados nos pés. cambados e rotos de não ir a lado
nenhum. e as mãos enroladas no tronco a segurar o ar de um mundo cada vez mais
pesado. tão pesado que promete cair a qualquer momento – e o alfa pendurado na
cruzeta a apitar desesperado. a pedir misericórdia. a pedir só mais uma viagem
de ida mesmo que se arraste para lá da vida – se eu soubesse o futuro juro que
tinha envelhecido mais a modinho. tinha embarcado num comboio de mercadorias e
tinha ido para alfama ouvir fado. e quando o fadista calasse as guitarras
deitava-me ao tejo e desaguava na amazónia. pescava piranhas. pendurava
amuletos ao pescoço e gritava por socorro até que os deuses me ouvissem – depois
oferecia o meu corpo aos espíritos da floresta. e em volta de uma fogueira
rogava ao ser supremo do candomblé que me encarnasse numa anaconda e me
deixasse rastejar pelo mundo invisível – se soubesse o futuro. se tivesse feito
a sopro uma bola de cristal. quem sabe vivia lá dentro. e viajava até 3021 e
juro que não dizia a ninguém que tinha mais de mil anos. calçava uns sapatos
luva vermelhos. reforçados com contrafortes. sola de couro dupla e desatava a
correr escondido em sorrisos. e dançava kizomba para o alfa mesmo que não
soubesse o seu destino. mesmo que o fígado tivesse aziumado. mesmo que as
vielas do coração rangessem de velhas. mesmo que as pernas me arrastassem para
lado nenhum e as mãos se estrangulassem de dor por não saber escrever uma única
palavra decente – não queria saber. nunca deveria ter querido saber e assim ainda
era um inocente parado no apeadeiro à espera do alfa – mas aqui ando eu perdido
a fazer contas: quantos quilómetros fiz com estas pernas? quantos abraços dei
com estes braços? quanto calor despendi a amar com este coração? e para todos
me parece demasiado: andei até cansar. abracei até magoar. amei até chorar. e
tudo somado me dá tão pouco tempo de vida – que raio de contas faço eu. de dia
tudo é soma e à noite. no escuro. tudo é resto zero – é tudo fantasmagórico. invisível.
e por mais que queira encontrar uma razão que me salve desta agonia das contas.
nada enxergo: ilumino-me com parafina… e nada. apago as luzes e tudo fica num escuro-negro. rezo.
mas deus ignora-me. tudo não passa de uma mortalidade agonizante. tudo se
divide numa equação simples: noite e dia. preto e branco. certo e errado. com
destino e sem tino. vida ou morte. e eu preso a estas contas que deixam de ser
contas quando o mortal que as faz se lembra que tem o alfa preso numa cruzeta –
e um homem apruma-se. levanta o queixo. esfrega os olhos e pergunta às pratas
que servem de espelho: porque me obrigas a somar se o reflexo duplica o que não
sou – estou convencido de que deveria ter comprado um espelho mágico. ou a cruz
de caravaca. ou uma máquina de calcular baratíssima. daquelas da feira – acredito
que os que vivem a fazer contas ao cêntimo aprendem a ver o mundo por ranhuras.
como eu. que de tanto errar nos números acabei a olhar a vida de lado.
desconfiado e amarrotado. quase fechados – eu também vendi a vida por
tuta-e-meia. e quando comecei. ainda não tinha os olhos em bico. nem tristes. nem
desconfiados. nem amarrotados. só quando fiz contas é que fiquei estrábico.
fiquei quase chinês – às vezes apetece-me tirar o alfa do guarda-vestidos e
deixá-lo fazer caminho. mas depois pergunto-me: deixo-o ir para onde? que
garantias tenho de que vai para o destino apalavrado? que se lixe. continuará
preso à cruzeta e que apite. porque todos aqueles que apitam seu mal espantam –
um dia prometo libertá-lo – e então. todas as contas somadas darão paz
.................................................................................não tirem o vento às gaivotas
19/07/2021
alfa
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