não existe benquerença para palavras escritas em
esquinas. mesmo que as ruas se dividam em comédia. mesmo que os corvos se façam
andorinhas. mesmo que a fortuna prometa salvação para os que caminham em
contramão – um dia. em abril. respirei. e assim me fiz até onde nunca cheguei –
não sei se respirei pela sapatada no rabo. ou por saber que a minha mãe me
carregou nove meses magoados. o certo é que cresci. e assim me fiz até onde
nunca cheguei – e agora. mesmo que não exista indulto para quem viveu morrendo.
eu existo tal e qual como sou. mesmo que tenha pintado o inferno em cada dedo.
mesmo que carregue um corpo apeado. mesmo que me rasgue num silêncio de perdão
– não há misericórdia para quem não chegou a lado nenhum. mesmo que os braços
se cravem em inutilidades. mesmo que a cidade não acorde quando pranto. mesmo
que a sina prometa honra no óbito – e porque um dia respirei. sei que vou para
o fundo da terra como os submarinos vão para o fundo do mar – que seja o meu
nome castigado pelo que não fui capaz. apenas eu. sem uma única morada para
trás. nem mil anos para a frente. que seja o presente a fragrância em desordem
– e se amanhã a terra se abrir. que seja engolido de uma só vez. e que o
inferno se apague em mim para sempre – nesse dia. talvez de agosto. quero que uma
brisa fininha me leve para os braços da minha mãe. e se o que restar de mim se
cruzar com o que não fiz. que seja o silêncio esse atalho – e quando a dor se
tornar insuportável. que o escuro tome a leveza da alma e me transporte para a
morada de uma estrela. que se faça a minha vontade. que a carne desapareça em
chamas. e o que ficou por fazer e dizer. se faça em sorte. e noutro mundo. ou
não. eu exista dentro de mim – mas que importa o que escrevo em esquinas. se a
glória para mim é uma rua sem fim – estou morto. mesmo que insista em respirar.
em olhar para onde nunca cheguei – nesta vida que pranto. seja o esquecimento a
minha fortuna. o silêncio o meu perdão.
e que de mim… não se fale nunca mais
27/06/2022
mesmo que não exista glória
23/06/2022
que seja eu
num dia de março fiquei sem pai. o mar encrespou. a noite desvairou. e o corpo zarpou para tempos inquietos – mais tarde. em dezembro. perdi a minha mãe. senti-me sozinho. abandonado de tudo. amargurado – mais um ano e perdi a minha cunhada zeza. para no ano seguinte perder o meu sogro – desta vez senti-me no inferno. enfureci-me. a tristeza galgou as margens e a saudade acomodou-se a magoar. e magoou muito – *“uma alegria exuberante (não moderada por nenhuma preocupação com a dor) e uma tristeza intensa absorvente (não mitigada por nenhuma esperança), ou desgosto, são emoções que ameaçam a vida.” – senti-me ameaçado e perguntei-me: que mal me chegará amanhã? parti então atrás de recordações e encontrei uma nostalgia que me fustiga num vagar cruel. absolutamente cruel – apesar da dor trazer habituação e aceitação. também traz confortação e aconchego às lembranças – o medo torna-se persistente e constante. e volto a perguntar-me: quem ainda me falta perder? que seja eu. que parta sem dizer adeus. com velocidade. como se fosse um foguetão. ou um astro que passa sem razão – e lá do sítio. quando a noite acontecer. que seja agora eu a pôr a mão por baixo dos meus borrachos – e nos segredos do universo a recomposição: o papá. a mamã. a zeza. o meu sogro joão. o meu tio joão. e não sei quantos anjos e querubins. guardiões das preces. a cantar: salve. hosana. nas alturas – o tempo flui. dobra-se. encolhe-se. curva-se. alimenta-se do futuro que há de vir. de mim também. os dias aparecem e desaparecem como navios fantasmas. e a saudade a trabalhar. a martelar. às vezes nos dedos. a magoar. às vezes a vergastar – avelhento. apenas eu e o meu espelho. vou ao passado. e regresso a mim perguntando-me: que missão me trouxe à vida? não sei. talvez nenhuma. ou coisa parecida – sei apenas que a família é a minha morada – “por essa razão, o homem deixará pai e mãe e se unirá à sua mulher, e eles se tornarão uma só carne - Genesis 2:24” – esta é a minha missão. acredito. senão o milagre dos filhos não tinha acontecido – nada mais em mim me parece útil – mesmo que as vozes na terra me pareçam distantes. mesmo que os olhos teimem em escurecer. mesmo que os braços não abracem nunca mais. aqueles que amo estão sempre em algures no meu tempo – nenhuma família se constrói sem sacrifícios. sem compreensão. sem tolerância. sem respeito. e sem memória – cada um de nós foi abençoado pelos seus antepassados – cumpramos o que somos. nada mais nos é dado
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**Cada um cumpre o destino que lhe
cumpre.
Cada um cumpre o destino que lhe
cumpre.
E deseja o destino que deseja;
Nem cumpre o que deseja,
Nem deseja o que cumpre.
Como as pedras na orla dos canteiros
O Fado nos dispõe, e ali ficamos;
Que a Sorte nos fez postos
Onde houvemos de sê-lo.
Não tenhamos melhor conhecimento
Do que nos coube que de que nos coube.
Cumpramos o que somos.
Nada mais nos é dado.
**ricardo reis
*immanuel kant