.................................................................................não tirem o vento às gaivotas

08/04/2025

onde a luz não chega

 



é noite. tão profunda como o buraco negro que vive em mim – sofro. importuno a alma. treslado-a para um escuro que é só meu. cerrado. denso. de meter medo. e as escadas em caracol alumiadas por séculos de gente com o meu nome – sombras que nunca conheci. sobra-me um avô. e os meus pais – estes. resistem na memória – o que me leva ao abismo do medo. onde me interrogo: porque não sou um pouco mais digno desta herança? no escuro não se vive. sobrevive-se. alimentámo-nos de tortura. de um fel que se torna insuportável. e ali fico a perguntar-me: o que me falta nas mãos para ser merecedor na consciência? mas a escuridão impiedosa esmaga-me. arranca-me a carne dos ossos. e os gritos silenciosos ecoam como lâminas. retalhando-me o pouco que sobra de fé. humilhando-me. obrigando-me a suplicar por finamento. por alívio. por consolo. por compreensão. por aceitação para a sua última vontade – com o nascer do dia guardo a dor. sei que preciso dela para a próxima noite. sem ela não existiria. seria vazio. imbecil. um tolo. perdido na ausência de sentido – seria algo pior? tenho a certeza que sim – o que sei é que um homem com dor ainda não faleceu – por isso. como leminski escreveu. repito: não me toquem nessa dor. ela é tudo o que me sobra. sofrer vai ser a minha última morada – sei que sou feito de dor. mas também de resiliência. as duas juntas. fazem a história da minha vida – esta. é a herança que irei deixar para me perpetuar no tempo dos meus filhos – desistir… nunca



19/03/2025

um dia. um pai. para sempre






1.

hoje. dia do pai. faz vinte e sete anos que o meu pai desceu ao ventre da terra – é dia de recordá-lo – nenhuma homenagem é suficiente para um pai – mas eu dei o meu melhor para que os meus filhos o recordem. digo. para que nunca o esqueçam. porque era um homem bom – e como fazem falta homens bons neste mundo

2.

o algodão doce dissolve-se aos poucos. e nas mãos resta apenas um pauzinho despido de açúcar – os olhos percorrem a romaria. os carrosséis giram. e eu de mão dada com o açúcar. sem saber ainda que por cada balão solto no céu. partia um dia de infância – e os lábios sugando vida. e o céu ainda azul. e os olhos a girar como os carrosséis. e os sonhos presos ao destino: um dia quero ser grande e ter um carrossel só meu – o açúcar na mão. efémero como as nuvens no céu. e a boca a sorrir. as mãos a pedir primavera. o corpo deitado para o dia seguinte. imaginando que tudo é eterno. que o que é dos olhos fica guardado para sempre. porque cada dia parece apenas um dia – os lábios presos ao algodão. e eu preso à mão que julgava eterna – até o açúcar azeda. até a doçura se esgota nas mãos que fogem para um destino que não controlamos. e o que era para sempre são agora memórias que me recuso a perder – hoje é o dia do pai e os carrosséis continuam a girar dentro de mim. e eu a girar em torno do algodão doce. sou o filho pedindo ao pai de hoje que não esqueça o pai das romarias. sou o pai pedindo aos filhos de hoje que não esqueçam o avô do algodão doce – eu cresci em festa – quando somos crianças. não sabemos que o açúcar. tal como os balões. sobe ao céu e nunca mais volta – tudo gira. os carrosséis. os romeiros. o homem dos balões. e a criançada garante à candura que o açúcar sem balão não chega ao céu – e as palavras a girarem de boca em boca enquanto os altifalantes gritam música que ninguém sabe quando termina – não há festa sem ruído. e não há ruído que o silêncio não acabe por engolir – ninguém quer saber de que árvore nasceu aquele pauzinho. ninguém quer saber que fruto deu. ninguém quer saber quem foi o lenhador que a cortou. ninguém quer saber da clorofila. ninguém quer saber de nada. mas aquele pauzinho é mais do que madeira. é mais do que um resto. são todos os filhos que recordam o seu pai. cada um tem a sua árvore. e cada árvore com o seu pedaço de terra sagrado – o meu pai escondeu-se de mim há vinte e sete anos. era dia do pai. hoje continua a sê-lo. porque todos os dias são dele. e a memória já não tem a certeza de quanto pesa um dia perdido no vazio do universo – quero acreditar que o tempo só conta para os que resistem. só vale para os que sobrevivem à dor – um dia. noutra dimensão. os anos serão apenas um sopro. o instante de uma chama acesa. e a luz iluminará para sempre o dia em que os carrosséis giravam sem pressa. sem rumo. porque. por mais voltas que dessem. o ponto de partida e chegada era sempre o mesmo – ali. naquele instante onde um filho se torna estrela aos olhos de um pai – esta luz que trago não é minha. é a dele. iluminando o caminho que ainda me falta percorrer para voltar ao seu lado – porque o caminho em falta é o nosso caminho – e assim continuará a ser: a família é uma âncora que nos prende à terra e à memória – feliz dia do pai!


01/03/2025

pratos rachados

 



no passado. há muito. muito tempo. quando os pobres eram realmente pobres e miseráveis. se um prato ou travessa se partia. colavam-no com resina. e de seguida. fixavam-lhes alguns agrafos para garantir que não voltaria a quebrar – cada prato era um bem precioso. faltava dinheiro para comprar comida. quanto mais para loiça – os tempos mudaram. e com eles. as nossas prioridades. hoje. qualquer pessoa pode comprar um prato. ninguém cola nada. o que se estraga vai para o RSU – é tudo descartável. a comida sobra vai para o lixo. o tempo sobra vai para as redes sociais. as amizades valem tanto quanto um like. os melhores amigos transformam-se em produto tóxico de um dia para o outro. os pais zangam-se com filhos. irmãos com irmãos. e a família a desmoronar-se como a torre de babel – os casais modernos evitam sacrifícios. trocam sentimento por aparências. compram amores descartáveis. como se fossem pacotes de dados móveis. só para impressionar os amigos. os colegas de trabalho ou a família. e quando a conexão se esgota. trocam por outro plano. com mais minutos e menos compromisso – tudo isto para vos dizer que as relações são como pratos rachados. podem ser coladas. mas a cicatriz do rompimento nunca desaparece. atenua-se com o passar do tempo. sem nunca desaparecer por completo – e a rachadela está ali para sempre. aos poucos. esmaece. escurece. só quem olha com atenção percebe que a imperfeição nunca desaparece. e acabamos acreditando que. talvez. essa fragilidade sempre estivesse ali. desde a fabricação – hoje. já ninguém aproveita nada. não há gratidão. nem honra. e o perdão é coisa dos livros sagrados – vemos casamentos a terminar ao fim de um par de anos. mulheres e homens cada vez mais preocupados apenas com o seu sucesso profissional. relegando para segundo plano os seus conjugues. os seus filhos. a família. e os seus amigos – e. neste ritmo acelerado e superficial. acabamos por esquecer aqueles que mais precisam de nós – vivemos todos para um sucesso aparente. trocado por uma felicidade mentirosa e frágil – é assim. e nada mais do que assim. os pais esquecidos. os filhos esquecidos e a sobreviverem de casa em casa. e a promessa de os proteger de todos os males resolve-se com silêncio e ausência – os amigos  partem sem deixar um adeus. olham para trás sem saber contar pelos dedos o valor de cada palavra. cada momento. cada ano. e a volatilidade é agora mais instantânea do que éter. acorrentada ao egocentrismo. e à falta de empatia – mas a maior doença da humanidade é a manipulação pela mentira. a indiferença pelo sofrimento. o perdão pelo erro. e a total ausência de gratidão e respeito pelos outros – passamos todos rapidamente ao tal produto tóxico – ainda há pouco tempo. eu escrevia sobre a necessidade de não querer perder mais nada. principalmente amigos. mas o tempo pode ser também uma traição. temos que estar preparados para tudo. principalmente para a ingratidão e perdão – hoje. percebo que tudo que surge sem tempo de amadurecimento. respeito pelas diferenças. e compromisso com a verdade. desaparece rapidamente – os ditos amigos raramente buscam a verdade; querem distração e absolvição. como num confessionário. rezam três pai-nossos e duas ave marias – saem em paz e regressam para pecar – o pior é que ainda acreditam que com um sorriso curam qualquer mal. ou então meia dúzia de palavras sem sentido. usadas pelos nossos antepassados. num arcaísmo obsoleto. e em desuso nos nossos dias. e que na sua ignorância saloia. manuseiam para tentar enganar o que resta do mundo ingénuo – mas percebo que ser autêntico de nada vale quando os outros se ocultam em passados nebulosos. muito menos vale dizer a verdade. se a maioria deseja apenas bajulação – querem ser enaltecidos pelo que não são. carregados de virtudes que não têm. e respeitados pelo que julgam valer. mas raramente valem o que imaginam – um homem honrado. na maior parte das vezes. é obrigado a sacrifícios. a muita humildade e gratidão. a bater com a mão no peito e dizer: por minha culpa. tão grande culpa. a sofrer pelo erro. a pedir perdão a si mesmo e aos outros. e mesmo com os novos propósitos do mundo moderno. estas virtudes devem ser valorizadas. cultivadas e respeitadas. mas não são – esta malta que aparece do nada vive o momento. e à primeira dificuldade esquece tudo. como se o que valesse fosse aquele ar de quem não carrega o mundo às costas. com sorrisos mal adornados. numa felicidade tão grande que. se fosse verdade. deixaria qualquer ser humano invejoso e a perguntar: por que raio não tenho eu uma felicidade assim? eu aprendi que o amor e as amizades necessitam de alicerces fortes. baseados na verdade. na comunicação. e no perdão. é nossa obrigação também ouvir. colocar-se no lugar de quem nos fala. e perceber que nada pode ruir por uma palavra perdida – viver também é seguir em frente. a não ser que o seu íntimo se estruture na falsidade e se esconda no passado – todos precisamos de um amor que nos trate com afeição. respeito e atenção. de uma família que nos ame. e de um amigo que nos ouça e nos socorra quando a brisa vira ventania. todos precisamos de nos sentirmos humanos e visíveis – o amor com a minha companheira é feito de tempo. de um abraço. de um olhar. de rir muito das palermices que só os dois conhecem e valorizam. de chorar juntos para a dor ser menor. ou apenas dizer: hoje estás bonita. ou estar no sofá e num impulso olhá-la e sentir uma palpitação. sentir o corpo todo a ser preenchido de uma sensação boa. sem que o seu amor imagine como aquele microssegundo preenche quarenta anos de mão dada – para se amar. é preciso ter capacidade de sacrifício. optar pelo que está certo. não hoje. mas daqui a um dia. a dez. ou vinte anos. perceber como bate o coração de medo só de pensar que a podemos perder. e rogar ao destino que seja o próprio a deixar saudade – é preciso amar a nossa companheira. compreender e aceitar que todos os dias o amor vai exigir compromisso. pois só assim o belo se torna mais belo. mesmo nos dias de silêncio – eu tenho o meu belo. a minha companheira tem o dela. difícil é fundir um ao outro. felizmente para nós basta apenas uns retoques e temos a obra tão perfeita como a pietà de michelangelo – lealdade. perdão. compromisso. verdade. comunicação. bondade. e companheirismo é a receita para tudo. também para as amizades. e quando assim é. os casamentos são para sempre. a família é para sempre. e os amigos são para sempre – e sim. é melhor aceitar as perdas inevitáveis do que viver alimentando ilusões sobre o que nunca foi real – no fim. aceitamos essas perdas. como pratos que nunca mais colamos. porque. mesmo que tentemos. sabemos que certas rachaduras estarão sempre lá – talvez seja isso que nos torna humanos. a busca constante por remendar o que já foi quebrado. mesmo sabendo que nunca voltará a ser como antes – nunca irei desistir da minha companheira. da família. dos amigos. encontrarei sempre um pouco de resina para colar o que a vida quebrou – é assim. e nada mais do que assim

 

11/02/2025

é urgente o amor





 


preciso de te amar

sem demora

sem que uma palavra tua me faça parar

sem que uma mão tua me possa amarrar

sem que os teus olhos me digam

já é tarde

 

o amor é urgente

mas não pede pressa

nem loucura

nem um corpo que se perca

no fogo do desejo

 

tudo isto é um poema de amor

para ser lido sem demora

porque o amor é urgente

e nunca espera

 


07/01/2025

carta a uma amiga

 




espero que a cada dia que passe a solidão se torne num chocolate quente. revigorante e reconfortante – hoje comecei a ver uma série na netflix – renascer – passa-se em florença onde uma jovem procura renascer para um novo desafio. estudar arte – acabei por me lembrar de ti. do teu gosto pela história. pela arte. pelo belo. bastou isso para me levar de volta a veneza. onde a beleza de séculos resiste à modernidade. entre canais silenciosos e pontes que guardam histórias. permitindo que nós quatro fôssemos felizes – nunca tive um amigo que gostasse de arte. o que. hoje. acredito. foi a minha tragédia grega – a maior parte dos meus amigos sempre procuraram o belo nas mulheres. nos carros. e no futebol. eram outros tempos – o que se pode fazer quando somos novos e procuramos aceitação e sucesso? nada. a não ser. ser um deles. mesmo que muitas vezes num silêncio-crítico – florença é uma cidade belíssima. onde fruto do meu trabalho me levou dezenas de vezes. todos os anos. e foram vinte – vinte anos é muito tempo. mas eu não sabia – o mais engraçado é que. durante a visualização dos episódios. teletransportei-me para florença: passei a revisitar alguns daqueles lugares mágicos. e senti uma nostalgia que era quase dor – queria mesmo estar lá. no berço do renascimento. sorver toda aquela magia da família medici. de leonardo da vinci. de michelangelo. do campanário de giotto. da cúpula de brunelleschi. da ponte vecchioe. e o inesquecível pôr do sol na piazzale michelangelo com o céu a adquirir as tonalidades de laranja. rosa e paz – mas o mais engraçado. ou talvez não tão engraçado assim. é que percebi que daquele miúdo não resta nada. digo. quase nada. cresci e fiz as pazes com o tempo e com o novo homem que despertou em mim – hoje. nesta série que é um romance entre dois jovens. compreendi que vi mais de florença sentado no meu sofá do que em todas aquelas viagens idiotas – sempre procurei o belo. mesmo quando trabalhava a confecção das peles. mas infelizmente não sabia nada de arte. talvez me faltasse uma amiga para me apontar o belo dos artistas. das sombras e da luz – dizem que o meio onde crescemos acaba por determinar o que somos – acredito que seja essa a minha verdade. nasci numa fábrica. filho de patrão. mas nunca me senti patrão de coisa alguma. nem de mim. mas era o meu meio. a família sempre foi o único lugar onde me senti perfeito – mas é o que é. e com o desenrolar do filme. dei comigo a magoar-me por cada ano estragado. e a interrogar-me: quanto tempo me sobra para ser o que quero ser – não sei. como ninguém sabe. mas sei que não devemos estragar o que a vida nos oferece. e no meu caso. não foi pouco. mesmo sentindo que não foi totalmente justa – lá terá as suas razões – e. agora. cheguei a uma idade que já não aceita renascimentos. o novo homem envelheceu. cresceu em demasia – a memória é a única fonte de conhecimento. eu tenho a minha. e esta leva-me ao arrependimento. tardio bem sei. mas é ao que me apego. descobrir em mim os enganos para que os meus filhos os contornem sem sobressaltos – mas se não fosse este caminho. duro. e eu sofri imenso. ainda sofro. mesmo já se tornando um hábito que aparece todas as noites. e se cura com o amanhecer. ou com uma aspirina de fé. como teria conhecido tanta gente boa que passou por mim e vive em mim – é a isso a que me agarro. às pessoas que me chegaram por bem. aos amigos que me aceitam como sou. à maria joão. minha companheira de riso e sofrimento. aos filhos que são uma bênção. às noras que adoro. e agora aos netos. que me tornam pai duas vezes – é o que me sobra para ser feliz. e não é pouca coisa – e quando te escrevo este pequeníssimo desabafo estou a ser feliz – tu e o teu companheiro fazem parte das minhas boas memórias – foi pena não vos ter conhecido trinta anos antes. talvez me procurasse melhor. quem sabe. florença tivesse sido a cidade que encontrei hoje – amarremo-nos então ao que sobra. às vezes acho que é pouco. mas talvez esteja a ser mal-agradecido – falta de gratidão seria tão grave como perder a memória. pois ambas são fontes de conhecimento que devemos preservar – é na memória que guardamos todos aqueles de quem gostamos – saber que existiram na minha vida é fazerem parte do meu belo