esta é a última crónica de cinco passagens de ano
que me ficaram em memória – à medida que envelhecemos. cresce em nós a
necessidade de guardar em papel o que tivemos de melhor e de pior durante o
nosso crescimento como pessoas – essa necessidade é. agora tenho a certeza. a
presença da finitude no nosso acordar –deixamos de fazer projetos a longo prazo
– agora. tudo é para o dia em que vivemos – escrever estas crónicas foi a forma
que encontrei de doar aos meus descendentes o que eu e a maria joão vivemos: um
mapa onde um dia se poderão rever. e assim perceber melhor o que nos liga.
independentemente do tempo e das vivências pessoais
quando somos jovens. todas as festas acendem os
dias por dentro. nós já somos alegres pela ausência de passado. e quando não há
passado. não há pecado. por isso. nada bate uma overdose de gargalhadas. uma
mão cheia de palermices. e uma constelação de sonhos na palma da mão. prontos a
partir ao ritmo de um mundo que ainda nos era estranho – quando a leveza dos
anos nos faz acreditar que já somos homens feitos. especiais não pelo que
fizemos. mas pela certeza do que ainda vamos alcançar. a vida torna-se numa correria
tonta. corremos em todas as direções e raramente chegamos a algum lugar -- foi
o que me aconteceu -- eu era um miúdo cheio de sonhos – quem não os tem aos
dezoito anos – sempre que olhava para as mãos. pensava: o que vós não podereis
fazer? e a resposta era sempre a mesma. nada – deixei a luz do dia pela sombra
da noite. frequentava o regime noturno – nas salas uns quantos como eu.
deslumbrados da vida. sonhávamos que o dia morria no anoitecer. fechava os
olhos e nada ficava para o dia seguinte – como estava enganado. como era tolo.
mas também era um rapaz encantado. porque só os bons rapazes é que acreditam
num mundo sem lamentos. com uma borracha capaz de apagar o que há de menos bom
– eu despertava sem culpa. sem sombra. com a inocência dos que ainda não sabem
o que perderam – depois. havia aqueles que na altura eram para mim velhos. e
pensava: o que fazem aqui. com mais três quartos da vida gasta – para que
precisam eles de conhecimento? hoje sei que um homem apenas pode morrer com o
que sabe. nunca com o que possui – sempre amei os meus amigos. sempre os achei
mais inteligentes. mais bonitos. mais íntegros. mais capazes de adivinhar o
futuro – eu não sabia nada do futuro. para trás eu não existia – e quanto mais
me apagava do rasto. mais o pouco de mim brilhava – e era tão pouco – os olhos
castanhos a cair para a incerteza. o cabelo virado a norte. os braços presos
aos bolsos. e as pernas a correr sem destino. só o coração batia. compassado.
como se marchasse numa parada militar – hoje era dia de mexer no calendário.
ano novo. estávamos em mil novecentos e oitenta. e eu com dezoito anos feitos –
bem sei. numa urgência. mas era adulto – tinha tirado a carta de condução. que
naquele tempo era quase um mestrado em tráfego rodoviário – e um carro capaz de
chegar a moscovo -- nem que fosse ao empurrão -- pela noite. eu e mais dois
amigos. o tiago e o quim. vagueámos pela cidade de braga numa toyota hiace de
três lugares. e com o aproximar da meia noite. parámos o carro onde diariamente
parávamos a vida – na praça do comércio – e fizemos a contagem decrescente para
a entrada no ano novo – com a última badalada abrimos uma garrafa de espumante.
e celebrámos o ano novo como se estivéssemos na times square. e a bola de
cristal a cair devagar sobre nós – e por incrível que pareça. desceu mesmo
dentro da hiace – jurámos amizade para sempre. e rimos de todos os disparates
que inventámos para o futuro – seríamos ricos. famosos. e ilustres cidadãos do
mundo – talvez até com direito a um mount rushmore. e as nossas faces talhadas
na pedra – por baixo. a inscrição: “os melhores amigos na melhor passagem de
ano de todo o universo” – aqui cozinharam-se os sonhos mais idiotas. mas também
os mais belos do mundo
P.S. falei acerca desta passagem de
ano com o meu amigo tiago. que me garantiu que foi a sua melhor passagem de
sempre – confirma-se assim como a juventude pode criar as mais belas imagens.
aquelas que acabam por ser as fundações de um entardecer sereno
tinha eu os meus dezasseis anos. e pela primeira
vez fui com a família passar a passagem de ano fora – era hábito juntar a
família em casa e contar em decrescente os últimos dez segundos do ano. depois…
uma barulheira infernal. como se o planeta terra tivesse sofrido um novo big
bang – ano novo e tudo continuava velho – mas não. neste ano. íamos estrear uma
passagem de luxo. o meu pai levava a família para um hotel. com direito a
jantar. gaitas e confeites para receber um ano com pressa de nascer – lá me vesti
com a melhor roupa. eu e a minha família – a minha mãe chiquérrima. com um
vestido bronze comprido sarapintado de dourados. a tapar os pés – mas ainda
deixando adivinhar o salto alto – o meu pai de fato e gravata. com o bigode à
henry flynn. aparado a fio prumo. certíssimo. camisa branca e gravata a dizer:
estou aqui. sou o chefe desta família. sou de braga. divertido. este é o meu
mundo – o dia correra em azáfama para os meus pais. mas para mim. o essencial
era simples: estar com os meus amigos – e rir. afinal. no próximo encontro já
não os veria desde o ano passado – assim foi. da parte da tarde encontrámo-nos
todos debaixo do alpendre do mercado municipal. era ali que passávamos as
noites. protegidos da chuva. do orvalho. e da idade adulta que nos rondava –
contava-lhes a minha expectativa para a noite do réveillon. e apesar de ir para
um hotel chiquérrimo. com banda de música e cantante para animar. tinha
preferido ficar debaixo daquele coberto de risos – no entanto. o mais certo era
também não ter amigos. naquele tempo era natural ficarem em casa dos pais – eu
ficava suspenso. como lâmpada sem corrente. sem luz – mas para que houvesse
emoção na juventude. ao fim da tarde. fui buscar uma carrinha de trabalho do
meu pai. renault 4L. e sem que ele soubesse. e obviamente sem carta. meti um
grupo de amigos dentro da carrinha – lá fomos dar a última volta do ano que
morria num vagar nostálgico – a 4L era uma carrinha sem confortos que hoje já
damos como garantidos: ar condicionado. suspensão aceitável. rádio. e outras
coisas a que já nem ligamos – dentro da carrinha o barulho era ensurdecedor.
todos aos tombos. com as palavras e a alegria também. e em cada curva. a
certeza de que a qualquer momento poderíamos ficar de rodas para o ar – mas que
importava isso. afinal tudo o que acontecesse ficaria no ano velho. e mais umas
horas. ninguém se lembraria do que ficou para trás – metemos o carro pelos
campos e veredas de terra batida. e logo ficou preso nas valas. o peso aninhou
a 4L. enterrou-se e não havia meio de a tirar dali. tivemos de tirar carga
amiga. mas como estávamos numa cangosta as portas não abriam. saíram todos por
detrás – porque na juventude somos todos por um – empurraram a 4L para o novo
ano – como se fossemos uma irmandade de heróis – entre risos e gargalhadas o
tempo esgotou-se mais do que devia. e a hora de chegar a casa atrasou-se –
entrei em pânico – felizmente a minha mãe também se atrasou. ainda deu tempo
para um banho rápido e para me aperaltar – lá chegámos ao hotel. e a noite
correu como tinha de correr. uma animação frouxa. a banda a tocar. o povo a
bater palmas por cortesia. o marisco a chegar à mesa já cansado da espera – à
meia noite o espumante. as uvas passas. as cornetas e os confeites – por um
instante tudo parou – contamos… 10. 9. 8. 7. 6. 5. 4. 3. 2. 1. 0 – e os
decibéis subiram até ao espaço – dois minutos alucinantes. vivas. abraços.
desejos de saúde e dinheiro – foi logo o cansaço a cair sobre todos. o ano novo
mal respirava e já todos pareciam esgotados – mais umas danças. uns goles de
espumante. e por volta das três da manhã voltei a casa com o mesmo peso do ano
anterior – para mim o ano novo tinha sido com os meus amigos. eu amava-os. eram
os confeites da vida. e a sua barulheira. as gaitas e os assobios – o tempo
passou. e hoje sei que mais nenhum ano novo trará de volta esse tempo – tenho
saudades dos meus amigos. tenho saudades de mim. tenho saudades dos meus pais –
e se um dia encontrasse uma lâmpada com um génio. e me desse três desejos.
saberia bem o que lhe pedir: um ano novo com os meus pais. mesmo que fosse no
hotel mais rasca. os amigos todos para a 4L. e o terceiro desejo… que nenhum de
nós envelhecesse. e que o génio tivesse um ano igual ao meu. talvez então me
compreendesse. talvez também ele soubesse que ser jovem não é idade – é um
instante que o tempo rouba sem pedir licença
nunca dei grande importância à passagem de ano.
para mim. o dia mais importante do ano sempre foi e será o natal – a passagem
do ano é apenas um momento. condensa-se a um único segundo. faz mudar o
calendário. e ao acrescentar um instante. permite que o ano mude. mas nem
sempre muda o ciclo de quem a vive – dividir o nosso tempo. é apenas a forma
que o homem encontrou para arquivar as memórias mais facilmente. uma gaveta
para cada ano. encaixadas em outra gaveta maior. como as bonecas russas. as
matrioskas. e em cada uma delas uma parte específica da nossa caminhada
terrena: a infância. a adolescência. a plenitude. a meia-idade. a velhice. e
por aí fora. até não haver mais gavetas – o homem tem uma necessidade profunda
de se renovar. de fechar ciclos – fazemos isso regularmente. sem festejos nem
fogo de artifício. a sexta-feira traz um fim da semana. a segunda-feira
renova-se a esperança de uma nova semana de trabalho – deitámo-nos à noite e
encerramos o dia. acordamos pela manhã. renovados de energia – o homem é tecido.
feito de linhas de recomeço. e não percebe que para recomeçar é sempre
necessário encerrar ciclos. porque todo o começo pede um fim. e todo o fim
esconde um recomeço – ressoam as doze badaladas. o ano velho despede-se em
silêncio. às vezes. sem deixar saudade. e entra o ano novo. carregado de
esperança – celebra-se em quase todo o mundo. nem sempre à mesma hora. nem sob
o mesmo céu. onde milhões de pessoas. em contagem regressiva. dão vivas de
alegria enquanto o céu se acende com a luz dos foguetes. iluminando o novo ano
de esperança – o recomeço dentro de outro recomeço. despertar. todos os dias.
para a vida – para trás ficam os dias em que apenas resistimos. alguns em
alegria. outros em agonia – o novo ano não é mais do que uma porta entreaberta
para o futuro. e a esperança de que a felicidade se apresente com maior
constância – no nosso país. comemos doze passas – representam os doze meses do
ano. e para cada passa pedimos um desejo. sabendo que o mais certo é que nada
se altere só porque a calendário mudou. mas por breves momentos. entre gritos
eufóricos nada lúcidos. fazemo-nos acreditar que será tudo diferente – a
passagem de ano é o momento em que somos. de verdade. e o momento em que ainda
seremos. e por mais que teimemos em ser plenamente honestos. acabamos sempre
por depositar no ano novo uma esperança que depende mais de nós do que do próprio
calendário – eu e a maria joão entramos no ano novo. creio que em 2005. duas
vezes – primeiro tivemos uma passagem de ano portuguesa em viagem. a caminho de
bayona. na galiza. onde uma parte do percurso foi feito à luz dos foguetes – um
pouco mais tarde voltámos a renovar a esperança de um ano novo mais próspero já
em bayona. com a vila então completamente deserta. os espanhóis estavam todos
recolhidos em suas casas. e eu e a maria joão. por aquelas ruas sem encontros.
caminhávamos felizes. uma vila inteira suspensa só para nós. como se o tempo
tivesse parado para nos esperar. como se o mundo tivesse adormecido. e a
certeza de que. em algum dos anos. havíamos de ter sorte – aos poucos. as ruas
foram-se enchendo. os bares começaram a abrir. os encontros foram acontecendo. e
uma onda de gente tomou cada recanto da rua. as bebidas começaram a rodar de
bar em bar. e nós também. rodávamos com elas. corremos e brincámos com o ano
novo. estávamos felizes por ter a certeza de que se não estivéssemos lá as ruas
permaneciam desertas e tristes – nós éramos. em si. o ano novo. a pura felicidade.
a renovação em carne viva. nós encarnávamos o ritual de transição mais antigo e
genuíno da terra – éramos a estrela central. e até o sol girava à nossa volta –
dormimos de frente para o mar. e pela manhã voltámos a casa. com a certeza de
que até poderia ser tudo igual. mas nós já estávamos diferentes. éramos muito
mais do que apenas dois seres felizes. éramos um casal feliz. inteiro. luminoso.
invencível – a nossa casa tornou-se. também ela. mais feliz – a verdadeira
passagem de ano não estava no calendário. estava em nós. e fomos nós que a
tornámos inesquecível. inquebrável ao tempo. refém da memória até hoje. dois
seres capazes de renascer na leitura do tempo passado. mas sempre tão presente
o meu pai morreu no dia 17 de março de 1998. foi sepultado
no dia 19. dia do pai – o dia dele e o meu – nesse dia percebi que um homem só
se torna adulto depois do pai sucumbir à luz – a nossa vida a seu lado é como estar
no topo de uma montanha. virados de frente para o ocaso – crescemos com o
nascer do sol – não o vemos. mas sabemos que existe. está ali. sentimos a emissão
da sua luz. e sempre que há luz há segurança. os medos recuam para o escuro. e
a coragem para viver é apenas claridade – um dia levantamos a cabeça e vemos
aquela esfera de luz sobre nós. admirámo-lo. e perguntamos: como é possível emitir
luz? de onde veio esta presença luminosa? não temos ainda resposta. mas não
importa. o importante é aquecer-nos. viver. iluminar com certezas o caminho que
percorremos – vamos envelhecendo. mesmo sem dar por isso. e acabamos a perceber
que o sol perdeu força. já não aquece como antes. nem ilumina o que escondemos.
somos jovens e julgamo-nos senhores de toda a luz do universo. tornamo-nos mais
exigentes com os outros. e menos connosco. vulgarizamos a virtude. pedimos à
honra que se modere. ridicularizamo-la. e seguimos em frente como se a luz
nascesse apenas de dentro de nós – egocentrismo. e todos os planetas orbitam à
volta de nós – e continuámos a envelhecer. e cada dia é um ano de corrida. e
sem que o relógio nos alerte. num ápice. quando estamos a olhar o horizonte.
que agora é cada vez mais perto. às vezes é já ali. percebemos que a todo o
momento o sol vai pôr-se. e o escuro permanecerá em nós sempre. olhámos em
volta e tudo não passa de suposições – será que vou conseguir ser como ele?
será que o meu feitio é igual ao dele? será que vou envelhecer como ele? e no
meio das interrogações o sol desaparece. apenas uns raios de luz perdidos
aceitam lutar com o escuro – mas o escuro vence. instala-se em nós para sempre.
e nunca mais sentimos o sol nascer pelas costas. já não aquece. no seu lugar
chega a saudade. já não ilumina. clareia o dia para sobrevivermos – o mundo
tornou-se num lugar estranho e por mais anos que passem nunca compreendemos a
sua perda – nasci e cresci com ele. como é possível perdê-lo? não é – é como
aqueles que são amputados de uma perna. podem ter uma muleta. prótese. até
correr ao pé coxinho. mas há noite. quando a tristeza desce. é a sua falta que persiste.
às vezes até dói o que já não existe. como aos amputados. que sentem a dor da
perna ausente – na passagem de ano de 1998. todos sabíamos que nunca seria
igual às anteriores. à décima segunda badalada. sobrou em mim um beijo. e a
certeza de que nunca mais nada seria igual – o natal nunca mais se repetirá – podemos falar dele. recordá-lo. contar os
seus feitos. até dizer-mos que temos muito dele. que o seu neto também tem
muito de si. mas ao deitar a dor fantasma volta. e magoa – ele não está mais
entre nós. e eu nunca serei como ele. nunca serei o seu exemplo – nunca serei
como ele porque para o ser teria que fazer o certo no momento certo. e eu não
fiz. eu não me construí a partir do todo. escolhi as partes que me davam jeito.
e só mais tarde é que percebi que sou como um lego. e para me construir
precisava das peças todas – não as tinha. ninguém consegue pôr uma laranjeira a
dar laranjas no mês de agosto – naquele ano. enquanto esperava pela passagem de
ano viajei para dentro do meu pai. instalei-me nele. e em silêncio. sentei-me
na minha montanha de emoções e deixei que o sol me voltasse a aquecer – as
saudades fizeram de mim um novo homem. e jurei que nunca mais deixaria de falar
dele aos netos. dizer-lhes que os miúdos inteligentes não são aqueles que tiram
as melhores notas. mas os que fazem o que está certo no momento certo. não
daqui a uma hora. um mês. ou um ano. o que está certo só tem um momento: é
aquele momento – depois. são apenas remendos. e o que está roto não volta a ser
novo
este
é um ciclo de cinco passagens de ano que vivi – tive muitas. estas são as que
guardei na memória porque de alguma forma se tornaram mais marcantes – viajar
no tempo é sempre especial. às vezes são viagens para sorrir. noutras o sorriso
não chega. apesar disso é um retalho da vida mesmo que amargurado – ainda
assim. porque amo a minha família. os meus filhos. escrever a minha vida é a
única forma que encontrei para que eles saibam mais de mim. de nós – ainda não
sei como escrever o amor que sinto por eles. mas sei quanto me deram para ser o
homem que sou hoje – sem eles nada seria – com eles sei que um dia serei
estrela. e quando olharem o céu. encontrarão sempre uma que me chame – e
depois. a minha companheira. por mais que escreva. e escrevo muito. nenhuma
palavra é forte. gentil. ou sábia bastante para a dignificar – o mais
importante. e é isso que tento. é levar aos meus filhos a medida do amor e do
sacrifício com que ela viveu as suas vidas – já são gratos. mas a idade ainda
não lhes revela o seu inteiro valor – espero que o tempo. como me aconteceu.
lhes traga a sabedoria para reconhecer que nada na nossa vida seria igual sem
ela – por fim. e nunca é demais dizê-lo. o prazer de partilhar estas viagens
com quem me segue nesta jornada diária de escrever – sempre que escrevo.
imortalizo-me
1 - 2016. renascer das cinzas no ano do silêncio
passagem
de ano 2016 – só nós os dois. eu e a maria joão. sozinhos. encrostados no sofá.
à décima-segunda badalada engolimos doze bagos de sobrevivência. cada um mais
amargo que o anterior – abrimos a garrafa de espumante. a rolha foi um tiro.
atravessou-nos o medo e a dor – desejámos um ao outro um ano-novo feliz.
cumprimos o protocolo das multidões – dentro de nós não havia nem uma centelha
de luz. estávamos moribundos. o escuro moldou-nos – amarrámo-nos a chorar e
fizemos prova de existência com as lágrimas – ficámos presos num tempo que já
não contava tempo – se por um lado ouvíamos o lacrimar profundo. por outro os
corpos apertavam-se num desespero nobre. honroso. porque dentro de nós não
havia um único arrependimento. teríamos feito tudo igual. eu escolheria a mesma
família. a mesma mulher. os mesmos filhos. a mesma vontade de fazer tudo certo
– o sofrimento era mais forte que a solução – a aflição esticava cada segundo
até virar horas – olhar para o céu não era recurso. só tinha as mãos para pedir
perdão. no fundo de mim o breu absoluto. negro. a cheirar a morte. nem um único
pirilampo a acender-me – se tivesse apenas um. talvez a sua luz exígua me
fizesse acreditar que era um farol – morrer era fechar os olhos. eu fechava-os
até desaparecer. deixava de me ver. escondia-me na parte mais distante de mim e
do mundo – as feridas dilacerantes. o grito pintado nas searas. e o ventinho do
inferno a perguntar-me se ainda queria continuar com a mutilação –no meu interior já pouco espaço havia para a
redenção. nem um único lugar que não estivesse em carne viva. nenhum vestígio
de esperança. tinha ingerido todo o ácido da vida. corroía-me ao microssegundo.
na minha cabeça o sussurro ecoava – perdoa-me – eu tinha obrigação de ser mais.
tinha jurado que para o bem e para o mal eu estaria presente. mas as pernas
fugiram. os braços caíram. a boca envergonhou-se. e os olhos cavaram escuro. e
eu moribundo. sem que uma única palavra me salvasse. me desse um recomeço. me
trouxesse de volta a dignidade – que mais precisa um homem na hora da morte
senão dignidade e honra? nada mais – e a cabeça a estilhaçar-se. e o tormento a
rasgar-me em pedaços que nunca mais se juntariam – na caverna que sou uma única
vontade: desaparecer. mergulhar no tártaro corrosivo e tornar-me labareda para
sempre. incendiar-me com o horror das palavras que me mordiam a mente. uma
régua de fogo a deslizar em mim por culpas imerecidas – que deus me suportaria?
nenhum – talvez o diabo – e nem esse eu carregava. eu era o próprio inferno. o
dono das labaredas. o senhor das trevas – quando acabámos de chorar disse: este
ano tudo vai ser diferente. vai correr tudo bem – sempre renasci das cinzas. e
a dilaceração foi a única fonte de energia que me fez aguentar a sorte maldita
– resta-me apenas o destino como companhia. por mais estradas que escolha. vive
em mim a chaga aberta. e ela sabe sempre o momento certo para fazer de mim um
sobrevivente. ela. os meus pais. a minha companheira. e os meus filhos – são o
fogo que me consome. a cinza de onde renasço
música de rodrigo leão no poema minha cabeça estremece de
herberto helder
crescemos a tentar entender o amor. criámo-lo primeiro na
cabeça. alimentámo-lo com as necessidades do nosso corpo. talvez da alma. se realmente
a tivermos – mais tarde fomos atrás dele. modelámos a forma de barro e
enchemo-la de desejo. às vezes luxúria. às vezes apenas um beijo. e nos dias
mais soalheiros demos-lhe também um abraço – no que somos. o desejo a pulsar. a
fabricação a trabalhar por dentro. o cheiro a cera quente a subir. pó de barro
nos dedos. sfumato das sombras a dissolver-se na luz – a deusa pronta – é
quando mudamos o amor para o espaço. ele torna-se infinito. como se fosse um
pedaço de terra a entrar no mar. ou no próprio universo – pintámo-lo. e a forma
ficou perfeita. porque nada esmorece a luz natural de uma escultura nossa. que
é sempre aquela que julgamos trazer nos olhos – damos então tratamento
anticorrosivo. selámo-la contra as intempéries da alma. guardámo-la para sempre
nas íris de olhos apaixonados. que são apenas as janelas do que julgamos ser
certo. a fusão do universo num único ponto de luz – por fim dei altura.
maneirinha para caber num abraço ainda que pequeno. teci o cabelo com os únicos
fios de ouro que encontrei em mim. dei-lhe gestos e formas de andar. igual ao
caminho que percorremos no íntimo de nós. desde que soube que viver sozinho não
podia ser solução – depois. dei-lhe um sorriso. da boca nasceu o éden onde as
deusas descansam para serem apenas resgatadas por amor – e por ali fiquei à
espera de que a palavra mágica nasça: amo-te – quando a deusa ganhou forma.
pedi-lhe que me moldasse segundo o seu desejo – e erguemos o altar onde o sol
nunca se despede – quando temos uma casa. quase sempre igual àquela onde eu
nasci. nunca onde as deusas nascem. encontrámos o local onde a devoção se torna
incondicional. em destaque. como uma montra virada para o mundo das sensações.
ajoelhámo-nos. rezámos para que ela nos compreenda: uma toalha branca na mesa.
joelhos no soalho frio. e as mãos a pedir mais um dia de si – às vezes. nos
momentos em que não sei escrever. peço-lhe que entre apenas uma vez mais dentro
de nós. e que se deite no lugar do amor. lugar que lhe pertence. porque é ali o
único sítio onde sei apresentar o amor que nasceu em mim. e peço que me dê um
pouco dela para preencher o que falta. para que a possa amar ainda mais – as
letras só servem para que as multidões se reconheçam. o amor de duas pessoas é
um universo inteiro. onde todos os astros vivem do que dizemos: às vezes é só te
desejo. outras… preciso de ti. faz amor comigo – um homem simples. que não sabe
escrever. ou que saiba. precisa da sua criação. porque dentro dele apenas
existe o que criou. e muitas vezes não sabe se criou demais ou de menos – -- é
preciso que a palavra amo-te não se esqueça de mim. necessito de ti. quero-te.
és o amor da minha vida -- – o tempo reza connosco e faz a oração da vida – por
isso a urgência – é preciso correr de encontro ao amor. andar também é solução.
mas correr traz urgência. traz a vontade de ganhar cada segundo à distância. de
poder segurar apenas mais um segundo nas mãos do que cresceu dentro si: o
relógio torto na cozinha. o casaco ainda húmido a pingar no cabide. e por não
saber o que é. porque o amor também se confunde. precisamos de nos fundir nele
para que o corpo. ou a alma se a tivermos. saiba que tudo valeu a pena – amar é
simplesmente uma criação humana. porque sem o amor nunca haveria consciência.
nunca saberia que perder é tão dolorosamente real. o que amamos é nosso. o que
é nosso nunca se perde. é sempre para sempre – um homem. na minha idade. já não
vive apenas das primaveras. ou de ver o mar. nem do sonho de ser gaivota. e
para que serve uma gaivota sem vento – um homem da minha idade anseia ouvir um amo-te
ao chegar. um homem precisa de entrar na casa. mais ou menos igual à dos seus
pais. e encontrar o mesmo sorriso que viu na mãe. porque a mãe simboliza a
virtude do certo. o cordão umbilical continua ali. um nó que nunca se desata –
um homem que é feito de amor. precisa de prova acústica. ou de toque. ou apenas
que os olhos repousem no universo da sua escultura. porque o tempo corre para o
esquecimento – precisa de um abraço à porta. de um olhar que acende a cama. e
pela noite. mesmo com o silêncio a pesar no corpo e a alma suspensa no medo da
perda. o leito. aquele retângulo feito de nós. onde um dia a morte nos
surpreenderá. seja o prelúdio de uma viagem sem pressa. onde a ressurreição do
amor compense o desalento da espera – o amor foi a escultura mais preciosa que
criei. mesmo sabendo que as mãos eram pequenas. mesmo sabendo que o que traziam
de nascença era apenas para caminhar de mão dada. ou falar se fosse preciso para
a perturbação abrir caminho – um homem da minha idade precisa de mais do que
ficar no miúdo que foi. porque o amor não é um papagaio de papel. nem uma
viagem em volta do mundo. o amor é vida. e a vida é interminável quando se ama.
a vida é a luz da criação – fui eu quem fez o amor dentro de mim. e fiz o
melhor que pude. e juro que ninguém saberia fazer melhor do que eu. porque tu
és tudo o que sonhei no corpo. ou no invisível. mas agora. principalmente nesta
idade. o que quero mesmo é saber que ainda me desejas. correr para o amor. porque
o amor não corre sozinho. precisa sempre de quem o acompanhe – por isso digo-te o que preciso. agora. nesta idade
em que me tornei homem – -- eu também sou a tua criação-- – ontem foi a nossa
história. amanhã será descoberta. ama-me com urgência. hoje
quarenta e quatro anos juntos. três filhos.
três noras. três netos. a nossa história parece longa. mas na verdade começou
ontem – o que falta em tempo é mistério. e mesmo assim. por mais labirintos que
atravessemos. encontraremos sempre o caminho que nos trará até aqui – o
universo há de conspirar a nosso favor – o nosso matrimónio é altar. família. e
a luz do amor que soubemos criar. dentro e fora de nós
e assim continuaram os dias. o boom é exatamente
como as grandes metrópoles. noite e dia as pessoas revezam-se. umas dormem.
outras seguram os astros sob o sol – quando escurece há nova romaria. chegam os
festeiros com energia renovada. acendem estrelas e cometas. a lua incha de luz
e a música corre pela imaginação de todos. os corações batem ao ritmo de cada
vida. alegre ou melancólica – quando cansados os corpos estendem-se pela relva
enquanto as almas continuam a saltar nas tendas: trance psicadélica. música eletrónica.
até música dos anos sessenta. um espaço em forma de ovo. onde a única entrada é
feita curvado. de gatas. entra-se e encontra-se um espaço com uma bola de
cristal no teto – batida de discoteca. completamente insonorizada do exterior.
e a surpresa é que quando te consegues endireitar dás contigo no meio de trinta
ou quarenta pessoas num outro ritmo. outro mundo. que tu jamais esperavas
encontrar ali – mas que em jovem conheceste e habitaste – o boom foi uma
experiência transformadora. num espaço onde a liberdadereúne as pessoas. toda a expressão é
individual. e quando ligadas cria uma conexão humana incapaz de ser descrita.
direi que se cria um núcleo de gente muito diversa. mas toda se sente una.
livre. sem julgamentos – há pessoas de todo o mundo. e isso cria um movimento
heterogéneo de culturas em partilha – música. arte. ligação à terra. à
natureza. bem-estar. vive-se um estilo de vida minimalista. que bem aproveitado
mostra que o mundo está inundado de coisas supérfluas. abrindo espaço à
renovação interior. à limpeza da alma e do corpo. permitindo à mente descobrir
novos eus. e expandir-se para lá do que a circunda – estar no boom significa
também fazer parte de uma nova geração que se preocupa com os valores
ecológicos. se entras no boom sem essa consciência. à saída já sentes que fazes
parte dessa comunidade – sei que vou voltar. não por nostalgia. mas porque há
lugares que se tornam espelho – e no boom vi o reflexo do que quero que
continue a acontecer na minha vida: reconheci-me livre. inteiro e vivo – o boom
não termina quando as luzes se apagam. fica em cada batimento. como já escrevi.
senti e vivi. basta fechar os olhos. e nos meus silêncios. posso sempre
preenchê-los com as suas batidas – estas batidas nunca se calam. e a água
continua a ondular – por isso sei que vou voltar – há viagens que não se
encerram. apenas recomeçam – voltar ao boom é voltar a uma aldeia sem
fronteiras. o que faz de mim um homem também sem fronteiras. sem medo. sem
guerras. e sem fome. onde cada rosto é diferente. mas todos se sentem parte da
mesma tribo – eu encontrei esse mundo aberto – por isso sei que vou voltar
a felicidade
é o presente. não é o regresso ao passado nem fuga para o futuro – não está num
interruptor nem numa cartola mágica. pelo contrário. é superação das
dificuldades. dos traumas. das noites sem dormir. dos objetivos cumpridos. e
dos que ficaram por cumprir. dos amigos que perdemos. dos que chegaram. a
felicidade é perda. mas também caminho – e é no caminho empedrado que muitas
vezes nos encontramos despidos de ilusões – nesse instante deixamos cair as
camadas que nos escondem – e sentimos o alívio de reconhecer quem somos –
precisamos de soltar essas camadas. para que se dissolva a matéria que nos
prende à forma – a felicidade acontece apenas porque caminhamos. porque tivemos
coragem para procurar. às vezes não sabemos o que. como um tabuleiro de xadrez
que pode ter todas as peças. mas se faltar um peão… já não há jogo –o dia de hoje é o mais importante da nossa
vida. porque fomos capazes de refazer o que somos quando o mais fácil era
desistir – a sociedade exige muito de nós. é preciso fabricar homens de um
sucesso global. para que possamos ser aceites: carro. casa. relógios.
doutoramentos sem conhecimento. a lista seria interminável – levantar e
caminhar é felicidade. isso é a única verdade. depois. estar onde queremos estar.
respirar a divindade que entra em nós. e partilhar do vento que mantém as
gaivotas no ar: liberdade – é obrigatório dar-nos ao agora. no boom não podemos
estar noutro lugar – ali sentimos a consciência a saltar connosco. estamos
todos interligados. um emaranhado de cordas. e essa interligação. talvez cósmica.
faz de nós um pouco de cada ser. ligados pela consciência. vibrantes e
cintilantes. e o planeta que se chama terra. um mero condutor. a esticar-nos
pela gravidade. e pelo sim. sim. é esta gente o dínamo da terra – ligados por
essa energia comum. percebemos que o mesmo magnetismo que nos une também nos
desafia – a física diz que polos iguais repelem-se. mas nós ligámo-nos. existe
dentro de nós uma porta que se abre ao desconhecido. ou é a própria energia do
planeta que a abre. e as suas pessoas empurram-nos porta fora – mesmo que não
compreendamos o mundo físico. é a nossa consciência. com os seus mecanismos
ainda desconhecidos. que nos diz: este é o teu momento. despe-te de preconceito
e vai. liberta o teu espírito. cumpre-te pelo chamamento. edifica-te nos
desaires. liberta-te dos sucessos. recupera a estrada que deixaste marcada – dostoievski
dizia: torna-te consciente de ti mesmo. mesmo que tenhas de enfrentar a tua
verdade interior. mesmo que sofras – eu acredito que o gerador da felicidade é
a dor. a desilusão. a perda. o medo. o fracasso. o trauma. a dúvida. o terror
de não podermos voltar atrás e emendar o erro. é também a decisão de percorrer
caminho. do movimento. e tal como um astro rodamos. e criamos o nosso próprio
campo magnético. atraímos o que em nossa volta roda. num outro campo magnético.
e sem que o corpo saiba trazemos para dentro de nós a consciência de alguém. a
sua vontade de nos inundar com o que é seu – e quando superamos essas
debilidades. somos felizes – bem sei que por pouco tempo. os desaires ficam
para toda a vida. a felicidade é efémera – porque será que a felicidade é passageira?
porque enquanto os desaires se contraem no corpo. e a nossa capacidade de
armazenamento é quase ilimitada. a felicidade expande-se. não a conseguimos
reter. esvai-se. como água com consciência – o corpo serve apenas para nos
diferenciar uns dos outros. as pernas para saberem que chegamos. os braços para
saberem que abraçamos. os olhos para saberem que reconhecemos. e a boca para gritar
ao universo que nos devolva a luz – e vamos à procura de mais felicidade. e
depois ainda mais. precisamos dela para sobreviver. e quando não a encontramos.
na maior parte das vezes por nossa culpa. o trabalho cega-nos. as distrações
dos amigos. a família consome-nos. e sem dar conta estamos perdidos no tempo.
não do universo. esse não se perde. está em nós desde o nosso primeiro dia. mas
de nós. passamos a ser o que na verdade não somos. vestimos a armadura de aço e
resistimos. morremos de olhos abertos – e a felicidade logo ali. tão perto. tão
simples. tudo se resolve com uma equação de três simples: despoja-te. liberta o
peso. entrega-te ao desconhecido. acredita no invisível. entrega-te a ti. e
vive inteiro – foi assim que cheguei ao boom – a minha consciência fundiu-se
com outra. e com mais cem mil que tiveram o mesmo desejo que eu: ter uma nova
experiência de vida. iluminar-me por conta dos seus astros. da estrela a que
cada um pertence – com a minha idade pensei: vais sofrer. aquela malta vai-te
trucidar – mas não. fui eu que me trucidei. abri a porta e as cordas partiram
em debandada. interligaram-se. teletransportei-me para cada uma daquelas consciências.
e todas. me entregaram o melhor de si – tornei-me o núcleo do universo. porque
só quando somos muitos temos força suficiente para nos tornamos um núcleo.
ligamo-nos como se juntam os átomos. talvez da água. e balançamos – depois subimos
como bolinhas de sabão ao universo… e por ali ficamos. a ver-nos como somos. e
na verdade. somos muito menos do que uma bolinha de sabão. inexplicavelmente
perdida entre estrelas sem nome – e talvez bóreas. sentado numa galáxia
distante. tenha percebido. quanto pode ser importante uma pequenina bolinha de
sabão. e levantou um ventinho fininho. que me levou para o infinito de mim. e
percebi que ainda hoje não sei onde termino. sou muito mais do que pensava. e
muito menos do que uma bolinha de sabão – tirou-me a pele. e senti o frio de
viver livre. dancei como os meus ancestrais dançavam. e tornei-me no peão que
faltava no tabuleiro de xadrez. e o jogo começou. e compreendi que sem mim. sem
peão. não haveria boom. mesmo invisível as cordas deram-me forma. tornei-me
espírito. e saí do meu corpo sem medo de não voltar – isto é liberdade. isto é
consciência. isto é dar a mão ao mundo. e tal como paulo de carvalho. cantor
português. fiz uma fogueira dentro de mim. e dancei numa consciência coletiva –
e fiquei com a certeza de que pelo menos uma estrela daquele céu era minha – eu
estava no único lugar onde poderia estar e com as pessoas que deveria estar. a
minha conexão era total. percorri mil vezes cada uma daquelas pessoas. e todas
me visitaram mais de mil vezes. dei e recebi. e nenhuma teoria física seria
capaz de resolver esta equação. só a consciência tem a fórmula – neste segundo
dia vagueei pelo espaço – era tudo tão novo – às vezes parecia que durante o
sono as fadas tinham mudado tudo. as pessoas tão diferentes e tão iguais. famílias
com crianças. pais jovens. amigos em bando. solitários. velhos que pareciam
novos. namorados apaixonados. todos a girar. como se fossem planetas. talvez caminhassem
por si. ou pelo chamamento da consciência. talvez coletivo. ninguém levava
mapas. não havia guias no chão. nem setas: olha ali uma tenda gigante. uma
escultura. uma árvore. estas formas simbólicas. relembrando uma conexão
profunda com o sagrado e o ritual. luminosas. às vezes abstratas. mas tão
parecidas comigo. identificámo-nos com tudo. porque tudo é o que somos – para
onde quer que se olhe os olhos giram. a consciência gira. e as luzes a cores
pintam a nossa tela interior: era como se dissesse em silêncio: não me levem
daqui. quero aqui ficar para sempre – a massa do corpo não altera com o lugar.
mas aqui eu não me peso. a alma não pesa. a consciência não pesa. vive. sonha.
ri. sossega. é feliz. sem dores e sem medo. afinal. talvez sejamos imortais.
talvez só a carne apodreça. apenas viajamos. talvez o tempo seja relativo.
talvez só aqui todos nós estejamos certos com o que somos – e assim andei. até
deparar com uma projeção de imagens em vapor de água – no lago um repuxo enorme
lançava água a dezenas de metros de altura. que no seu processo descendente. já
em gotículas pequeníssimas. recebia a projeção de frames de várias imagens. que com a gravidade se deformavam aos poucos. até desaparecerem
no espaço dos olhos. enquanto outra imagem se sobrepunha. e assim
sucessivamente – sentei-me na relva com a minha maria joão. os meus amigos e
desconhecidos – todos absorvidos. todos sugados para dentro da viagem animada
de um preto e branco nostálgico – silêncio absoluto – apenas a água e a música de
fundo – estávamos suspensos. entre vida e silêncio – deixei-me embalar pela
magnificência daquele cinema em tela de água. e quando dei por mim chorava
copiosamente. não sei quanto tempo chorei. sei que foi o suficiente para voltar
ao passado e encerrar um momento da minha vida que sempre imaginei estar
fechado – este é o único retalho da minha vida que partilho aqui. haveria
muitos. mas cada um deve viver as suas viagens em solidão. ou então encontrar
as pessoas certas para partilhar – há vinte e sete anos o meu pai faleceu. e a
minha família. como uma outra qualquer. estava em pranto absoluto. devastados.
eu era o mais novo. mas velho o suficiente para ser forte. tinha trinta e oito
anos – eu sabia que era o mais resistente. quando somos novos pensamos ser
sempre o que em verdade não somos – não deitei uma lágrima à frente da minha
mãe. irmãos. esposa. e filhos – foram três dias de superação interior – pela
noite. descia para a rua e entrava no carro. punha a cassete a tocar. charlie
haden & pat metheny – spiritual. e chorava copiosamente. berrava até que os
ouvidos serem só ruído. a dor era tão forte que dilacerava-me o corpo. a alma
em pasta. retorcida. e assim estava horas aos murros ao volante. a insultar
deus e o universo de tudo o que pudesse magoar. a água escorria-me dos olhos –
corpo ensopado de mim – de raiva. de ira. de revolta e jurava nunca mais lhes
perdoar – pois bem. naquele espaço mágico chorei as mesmas lágrimas. senti as
mesmas dores. exatamente a mesma dor. a mesma raiva. tudo era tão real. tão
daquele dia. o corpo sentiu a mesma vontade de morrer. de destruir o mundo. o
mesmo sentimento de perda. o meu pai ali deitado. e eu de pé. sem que a dor
pudesse mexer em mim um músculo. uma lágrima – quando acabei tinha enterrado definitivamente
o meu pai. tinha cicatrizado uma ferida que não sabia que estava aberta. por
fim. depois de tanto tempo. fiz as pazes desse dia – quando me levantei disse
aos meus amigos que tinha que me recolher. estava cansado. estava completamente
vazio. oco. não sentia nem o corpo. nem a mente. mas senti paz. senti que
estava no meio do universo. sem peso. sem nada a reclamar de mim e do mundo – se
tinha dúvidas foram todas dissipadas. se não fosse por mais nada a minha ida ao
boom tinha sido recompensado com algo que nunca imaginei que fosse possível –
fiz as pazes desse dia – é preciso acreditar na evolução do mundo. das pessoas.
e da sua consciência – é preciso compreender a física – há cem anos a física
explicava menos do que hoje. se não acreditarmos. só nos resta a teologia – foi
isso que a física quântica nos trouxe. a oportunidade de trazer para dentro de si
a consciência – nós somos alma. energia revestida por um corpo – estamos emaranhados
num universo de energia – assim podemos sentir-nos ao mesmo tempo em vários lugares.
dentro ou fora do corpo. as batidas marcam o ritmo das viagens. e os lugares ligam-se
pela velocidade das vibrações – podemos viajar por vários lugares ao mesmo
tempo. mas no boom aprendi a ficar onde estava feliz. se viajei. isso foi
apenas porque as forças do universo me levaram. cintilante fiz-me estrela. iluminei
os que comigo preferiram ficar ali. e todos nos ligamos ao universo por cordas
que vibram em nós – e assim fechei mais um dia no boom – e abri mais uma
estrada em mim – envelhecer tem a sua vantagem. o corpo mirra. mas a mente já
não me trai – voa em viagens de reconhecimento. para um dia saber. qual a
estrela que me pertence desde o nascimento
pois bem. depois de cerca de trezentos quilómetros de
caravana e de muitas horas de expectativa para entrar na quinta da herdade –
uma noite de espera e parte do dia – lá chegamos – eu. maria joão. minha
companheira há quarenta e quatro anos. os amigos luís e mariana ainda a começar
a contar os anos de ligação. e maddy.
minha amiga há quase vinte anos – uma vistoria rápida na entrada para garantir
que cumpríamos as regras. zero tolerância para vidro. álcool e drogas. e lá nos
indicaram o local onde estacionar. no topo do monte que protege a norte o
espaço do boom – já era noite. e à nossa volta apenas eucaliptos. pó e o
desconhecido pela frente – de noite todos os gatos são pardos – uma refeição
rápida. um banho e toca a descer para a festa. a expectativa era imensa. perder
a primeira noite não era opção – lá fomos. e seguimos a regra de quem viaja sem
mapa. seguir quem já caminha com sentido – uma descida íngreme de quase dois
quilómetros. e a meio já se ouviam as batidas. e ao longe uma constelação de luzes
mágicas – com a aproximação ao recinto começamos a sentir a grandeza do espaço
– o primeiro olhar colado ao rosto – o espanto na alma – a intuição instantânea
de que ia ser feliz – confesso. a minha escrita não alcança. não chega. não
toca o que me foi oferecido. era muita luz a invadir-me os sentidos. com cores
e projeções que nunca tinha imaginado – diria que é a disney dos adultos – era luz. era música. era cor. era tudo a
acontecer de uma só vez – era tudo a acontecer em mim – para ser verdadeiramente
feliz basta perder o preconceito e lançarmo-nos sem medo para cada apelo da
alma – e havia muitos apelos. o problema era saber para onde olhar e caminhar –
pela primeira vez senti-me verdadeiramente livre. ligado às pessoas. ligado à
natureza. ligado às galáxias. fazia parte de um organismo uno que me recebia
inteiro no ser. como se renascesse ali naquele instante – o corpo e a mente
deixaram de magoar. e partimos à deriva para cada bolha artística. um oceano de
luz. um oceano de música. um oceano de vibração. um oceano de vida. um oceano
sem fim. ligado às pessoas. ligado à natureza. ligado às galáxias. ligado a
tudo. e eu a navegar à bolina – preso e solto ao mesmo tempo – como se o ar
fosse água. como se eu já não tivesse corpo. como se fosse apenas alma. apenas
vibração – e as ninfas do lago em chamamentos para sair de onde estava. porque
o outro lugar chamava mais forte – senti-me mágico. também eu tinha mordido a
maçã do encantamento – a questão era quanto tempo ia durar o efeito – para
minha surpresa dura. dura até hoje – revisitar o boom é apenas necessário
fechar os olhos – em cada esquina um misto de estruturas iluminadas. algumas do
tamanho do adamastor. talvez maiores – nenhuma cabia inteira na cabeça. nenhuma
cabia inteira no peito. olhar para uma parte era deixar outra de fora – e eu a
mergulhar nas luzes de cada escultura. algumas abstratas. cintilantes. que nos
lançavam para o espaço sem nunca tirar os pés do sagrado – figuras
antropomórficas que nos prendiam. nos sacudiam de todas as maldades do mundo –
e em cada passo a sensação de já não caminhar. mas voar preso a cada feixe de
luz – talvez peter pan. talvez um duende – uma alma transfigurada por um
sentimento de felicidade que nunca tinha conhecido – e ainda hoje vibra – de
seguida entramos nas tendas gigantes. eram três. separadas por um manto
sagrado. apesar dos decibéis. nenhuma batida fugia para outra tenda. como se
houvesse um muro invisível. uma mão que separasse as notas de música. e dentro
delas milhares de jovens e não jovens a baloiçar os corpos. iguais aos de beach
party by nova era. o corpo para um lado. e o cardume inteiro em movimento.
todos em transe. e a cada batida uma perna para a frente. logo outra para trás.
ninguém sai do sítio. e todos caminham pela imensidão do espaço sideral – e eu
ali. a caminhar com eles. primeiro a medo. depois já no cardume. deixei-me
apanhar pela música. deixei que ela me levasse para onde o meu espírito se
encontrasse com o que sou verdadeiramente. sem medo. sem preconceitos. nunca
deixei de ser quem sou. mas passei a ser mais. mais do que sabia. mais do que
pensava. mais do que sonhava ser. e completei-me. trouxe dos outros o que pude.
e em vez de me sentir cheio. senti-me vazio do que pensava ser essencial. e
passei eu mesmo a ser um ser tribal. feito de batidas e sentimentos que
desconhecia – as gavetas abriram-se. as janelas abriram-se. as portas
abriram-se. tudo se abriu. eu também me abri. e fiquei apenas água. a ondular.
a amar tudo o que me rodeava. e a certeza mais uma vez de que havia escolhido a
mulher certa para a vida – estávamos felizes. estávamos os dois livres. e
livres. nunca nos conseguimos separar. voamos para o luar. iluminamos o caminho
que escolhemos. e brilhamos como dois pirilampos. como duas centelhas no
escuro. como dois sóis a nascer – beijamo-nos como adolescentes. e dissemos: os
nossos filhos deveriam um dia experimentar esta liberdade – por fim. cansados.
já depois das cinco da manhã partimos à procura do descanso. subimos em direção
ao céu. e dormimos como anjos – tínhamos a certeza de que tínhamos feito a
opção certa. estar no boom fez-nos bem. aproximou-nos. e fez-nos recordar o que
de melhor trouxe a nossa união: os filhos. nossos deuses. nossa glória. nossa
virtude. nossa eternidade. nossa razão de ser. nosso infinito. nosso
além-túmulo dentro de nós
estaterceira parte será preenchida com uma das maiores experiências da
minha vida. o festival boom. bienal. em idanha-a-nova. herdade da granja – não
será fácil descrever esta minha participação no boom. para ser honesto nem sei
bem por onde começar. mas vou com coragem. vou com tudo – o que é o boom? bem.
o boom é muito mais do que música. arte e cultura: é uma experiência
internacional. um evento de carácter único e transformador. celebrado como um
dos maiores e mais originais da europa – centrado na trance psicadélica goa.
acabou por evoluir para um festival multidisciplinar que abraça música
eletrónica. artes visuais. performances. workshops. conferências. cinema.
manifestações culturais diversas. meditação e práticas espirituais. oferecendo
uma experiência holística e sensorial – a organização do boom não aceita
patrocínios. talvez por isso seja tão pouco divulgado nos nossos canais de
informação – todos sabemos que as companhias de telecomunicações. todas juntas.
faturaram no último verão mais de sessenta milhões de euros. estamos a falar de
um negócio muito lucrativo. e obviamente. com o seu ramo poderosíssimo junto
das estações de TV. tudo fazem para não ser divulgado. e quando é. acaba quase
sempre por ser por motivos pouco nobres – o boom promove a consciência
ambiental. a sustentabilidade. a multiculturalidade. a espiritualidade. a
liberdade. e a diversidade artística – eu. no meu trabalho estou ligado ao
ambiente. e sinceramente. fiquei muito satisfeito com o seu compromisso
ecológico: energia solar. energia eólica. sanitas ecológicas. reciclagem.
tratamento de águas. tudo está pensado em favor da natureza – o boom reuniu
participantes de 220 países. sendo os festivaleiros estrangeiros a grande
maioria. cerca de 85%. com diferentes faixas etárias. famílias. crianças. todos
em harmonia. como se o tempo nestes oito dias parasse de existir – junta mais
de cem mil pessoas. os bilhetes esgotam rapidamente. mas podia ter o dobro ou o
triplo de participantes. não o permitem apenas porque. no seu entender. o espaço.
225 hectares de terra deserta. apenas ocupada pela natureza. seria seriamente
afetada pelo excesso de gente – pode chegar ao boom apenas com um cobertor.
acampar. ou se preferir estar mais cómodo chegar de caravana. e não se preocupe
com comida. há tendas com todo o tipo de pratos. de todas as partes do mundo. e
se for vegan ou vegetariano. também encontra – se entender criar as suas
próprias refeições. há também um supermercado para o ajudar e locais próprios
para cozinhar – vidro e fogões de campismo a gás são proibidos – há um hospital
de campanha. com primeiros socorros em permanência. médicos e enfermeiros vinte
e quatro horas por dia. e uma tenda especial para testar drogas. a prioridade é
a sua segurança. saber o que consome é fundamental para que a sua experiência
seja uma boa recordação – o boom é um universo vivo de cultura e partilha. onde
cada experiência abre caminhos de transformação interior. no qual os laços
humanos se entrelaçam e a terra é celebrada com consciência – o boom acontece
sempre no final de julho ou início de agosto. durante a lua cheia. com o luar a
servir de holofote. junto a um lago refletido no deserto da beira baixa. a dar
brilho aos corpos em transe. como se o céu descesse para dançar – os bilhetes
geralmente são postos à venda no fim do ano que precede o festival. e a
sugestão que deixo. é se quiser participar neste grande evento. incluído entre
os dez melhores festivais do mundo. e considerado o melhor da europa. esteja
atento. e corra. pode mesmo assim não chegar a tempo – o boom não é apenas um
festival a que se vai. é um lugar dentro de nós a que se regressa sempre – mas
por mais que se fale do boom. nada se compara a estar lá – e é isso que vou
partilhar a seguir. mostrar-vos que o boom é uma arca de noé erguida sob a lua
cheia. onde as pessoas se encontram consigo mesmas: para dançar. meditar e
contemplar a diversidade do mundo e. por fim. para acolher cada uma dessas
partes como sua. sem preconceito. sem temor. sem medo do amanhã e das suas
diferenças
há pouco mais de um ano. mais propriamente em
28 de junho de 2024. um amigo. luís silva. convidou-me para ir a um festival de
música eletrónica. beach party by nova era. em leça da palmeira. na praia do aterro. a sua empresa
hoteleira era um dos patrocinadores. e deste modo. tínhamos acesso aos lugares
VIP – não era o meu tipo de música. muito longe disso. mas quando um amigo
convida. é nossa obrigação dizer presente – uma coisa é certa. não o
acompanhava pela música. mas sim pela companhia. ainda para mais sou avesso a
multidões – em local privilegiado. pensava eu. em cima de um palanque com vista
direta para DJs. e ali ficamos um pouco a beber uma cerveja – algo de que também
não morro de amores – sem perceber muito bem a ligação daquela juventude.
ligada a ritmos sincronizados das batidas. entreguei-me em consciência – e
interroguei-me. o que faz esta malta vibrar com estes graves barulhentos? de um
momento para o outro. o meu amigo sugere que fossemos para o meio dos
festivaleiros. e assim fizemos. descemos as escadas. o medo também. e
misturámo-nos na multidão – eu nas massas sinto-me sempre despido. prensado. e
fico sem saber o que fazer comigo – ao princípio estranhei. depois entranhei.
estava preocupado com a minha presença. pensei: vou desarrumar esta malta.
todos tão jovens. e eu. sénior. ali metido no meio deles – aos poucos fui-me
sentido mais tranquilo. e comecei a dar a minha atenção à música. mais
especialmente ao movimento dos jovens. aos seus comportamentos. à forma como se
agitavam. particularmente tentar perceber se os seus movimentos estavam ligados
de alguma forma ao ritmo das batidas – ali fiquei em busca da razão destes
juvenis. deixei cair o preconceito e pensei: se esta massa humana está toda a
vibrar e são milhares. tem que haver uma razão sólida e válida para esta
agitação. e para que mundialmente haja cada vez mais adeptos
deste tipo de música. não pode ser apenas a juventude a influenciar este
movimento – e no meio daquelas batidas loucas. com as luzes psicadélicas a
fermentarem a minha íris. como se os olhos fossem depósitos de cores em
agitação. senti os graves. ligados entre si por uma cadência ritmada.
envolvente. ao ponto de criar uma ondulação. também ela com ritmo. dentro do
corpo. que como todos sabem é setenta e cinco por cento água – ao fim de algum
tempo percebi que os festivaleiros moviam-se todos eles de uma forma
sincronizada. quando tombavam para a direita. todos tombavam. se atiravam o
corpo para a esquerda. mais uma vez todos tombavam para esquerda. e a cabeça em
oposição sempre a contrariar o corpo. como se quisessem deixar os pensamentos
fora do desequilíbrio. talvez o que tivessem em mente não pudesse ser abanado.
talvez tivessem medo de perder a felicidade. talvez com medo de voltarem para
as azafamas do mundo – ser jovem nem sempre é fácil – no meu tempo era mais
fácil – ao fim de algum tempo criei uma analogia. eram cardumes invisíveis.
ondas de carne e respiração em geometria perfeita. possivelmente para enganarem
os predadores. moviam-se como se todos fizessem parte de um bailado de
rudolf nureyev.talvez marguerite and armand criando um movimento
sincronizado. belo. que no seu limite. criava ilusão de segurança. ou de fuga
para um outro planeta – talvez estes jovens. com os seus movimentos ordenados.
criem esse tipo cardume. todos fazem parte de um todo. um organismo uno
celular. e assim capaz de se defenderem deste mundo desengonçado. um mundo onde
todos somos desconhecidos uns dos outros – foi uma grande experiência. e
durante muito tempo deixou-me a pensar: porque não fui eu capaz de entender esta
malta radical? a resposta é simples. por preconceito. por ter envelhecido. e
por achar que esta música era para os jovens. e que eu. adulto envelhecido. já
não tinha direito a invadir o seu espaço – o que aprendi. e hoje sei o bem que
me fez. é que música é música. tal como um livro é um livro. não podemos dizer
que não se gosta sem pelo menos tentar compreendê-la. sem lhe dar uma
oportunidade de nos ocupar – o mundo só é perfeito pela sua diversidade. de
outra forma não haveria evolução. ainda estaríamos a fazer fogo com duas pedras – este festival viria mais tarde
a proporcionar-me um dos momentos mais fantásticos da vida – eu mereci-o.
derrubei os meus próprios muros. e encontrei um novo mundo. encontrei a
liberdade inteira. sem preconceito. a baloiçar o meu corpo de água – e por fim.
estou grato ao meu amigo por me oferecer uma parte do seu conhecimento. da sua
vida – é essa coragem que todos nós precisamos em algum momento da nossa
existência. nada mais fantástico do que chegar por alguém que me conhece bem –
é nesse transe de palavras que vou contar como a música me encontrou. e como me
levou ao boom. festival em idanha-a-nova
nos próximos dias vou partilhar convosco seis
capítulos de um mesmo texto – eu no boom festival – não é apenas o relato de um
evento de música – é a história de uma viagem interior – onde cada batida. cada
encontro. cada silêncio. se transformaram numa das experiências mais marcantes
da minha vida – escrevi para que se leia como quem ouve música – no ritmo das
palavras. no compasso das pausas. no fluxo das emoções – espero que encontrem
nestas páginas não só a descrição de um festival único. mas também ecos de liberdade.
de pertença. e de descoberta – convido-vos a acompanhar esta aventura comigo –
que a leitura vos seja tão intensa quanto foi a vivência – e que de algum modo
vos inspire a procurar os vossos próprios caminhos de vibração e
consciência
1.
1. ler é sentir
não uso vírgulas – os pontos tomam-lhes o lugar e
seguem o compasso do que escrevo – também não uso pontos finais – são os
travessões que me servem de pausa – algumas mais longas outras mais breves. mas
sempre abertas como o tempo – deixo ao leitor a liberdade do ritmo – é ele quem
dita a cadência da leitura – como numa peça de música clássica onde as notas se
soltam conforme a emoção de quem ouve – e de quem sente – escrevo para que me
leiam como se ouvissem uma balada – se será triste ou luminosa não me diz respeito
– a escolha é de quem lê – o meu papel é oferecer-lhe o caminho – um caminho
feito de palavras que vibram. assim partiram de mim – não uso maiúsculas –
essas guardo para os nobel e para os que precisam de gritar para serem ouvidos
– prefiro o sussurro – o sussurro que entra pelos olhos e acorda a água que
vive dentro de nós – escrevo para essa água. os 75% do nosso corpo. para que se
mova e liberte serotonina. e devolva ao leitor aquilo que o corpo mais pede:
bem-estar – também não separo os parágrafos. porque a vida não se separa em
blocos – a vida é fluxo. contínuo – mesmo quando estamos parados ela avança. e
o texto deve acompanhar esse fluxo – como um rio onde não se repete margem –
apenas corrente – escrevo com essa corrente – ora mais prosa ora mais poesia –
sem lhe dar nome – apenas som – a minha escrita nasce do mesmo lugar onde
nasceu a música dos nossos ancestrais. quando ainda não havia letra nem palavra
– só ritmo – só pancadas – só batimentos – uma música psicadélica-transe tribal
– feita de pulsações constantes – de movimentos hipnóticos – de vibração que se
ouve com o corpo antes da mente – é essa música que procuro recriar com as
palavras – um transe silencioso que se lê – e que ecoa no interior de quem ousa
escutá-lo – e porque tudo o que escrevo nasce do ritmo. todos os textos são
acompanhados de áudio – é no som que se completa o que ofereço – por isso
sugiro sempre que se ouça pelo menos uma criação – para que quem lê compreenda
não só o que lê. mas o que sente – para que a nossa água ondule. vibre. e leve
ao cérebro outra parte do invisível que vive connosco – para que entenda o
gesto que lhe é dado. um gesto de escuta – um abraço invisível feito de
palavras em vibração
ao fim de quarenta
e um anos voltaremos a ser novamente dois. eu e maria joão – este sábado. o meu
filho mais novo. joão antónio. vai desposar a minha nora sofia direito – será
um dia perfeito para eles e para nós – nunca pensei. nem desejei que os filhos fossem
pertença dos seus progenitores. sempre sonhei em filhos livres e independentes
dos seus pais – a nossa tarefa essencial era dar-lhes condições para que. um
dia. pudessem abandonar a casa sem medo do futuro – nunca. eu ou a mãe
interferimos no seu percurso de vida – sempre o vimos como algo sagrado – o seu
caminho foi e será sempre o que escolhem – a nossa interferência resumia-se
apenas aos seus estudos – foi a única preocupação. terem um percurso de
aprendizagem dedicado ao conhecimento. não lhes pedia estudo pela obrigação. mas
conhecimento pela vida – porque o conhecimento já carrega dentro de si estudo.
dedicação. e afirmação da sua personalidade – outro ponto em que nos focámos na
sua educação. para além dos seus estudos. era prepará-los para também. um dia.
serem pais – ser pai é a função que mais enobrece um homem – a felicidade não
está em possuir. mas em libertar – assim foi com os meus três filhos. e também
nós pusemos de parte a nossa vida para que nada lhes faltasse. vivemos a
escolaridade deles com muito sacrifício. mas também com muito orgulho pelo que
alcançaram – merecemos a nossa família. honrámo-la tanto quanto nos foi
possível. e hoje. vivemos este último matrimónio com a sensação de dever
cumprido – cedo percebi que o meu desígnio nesta minha passagem terrena era ser
pai. adoro ser pai. e tenho a certeza de que será a minha única obra que permanecerá
para além do túmulo – hoje já quase não os consigo recordá-los. primeiro como
recém-nascidos. depois crianças e adolescentes – a memória controla-nos os
desejos. e se o meu foi que eles nunca dependessem de nós. ela castigou-me.
resumiu tudo a duas linhas. e o que guarda agora são os homens que criei: bons.
honrados. trabalhadores. e para dois filhos. excelentes pais e maridos – assim
se cumprirá com o joão antónio – durante este último ano fartei-me de brincar
com o meu filho dizendo-lhe que já faltava pouco para sair de casa. ou para que
finalmente voltássemos a ter sossego. paz – mas a verdade. é que é este
casamento que mais me está a custar viver. não será fácil entrar em casa e
saber que ninguém nos espera. que não haverá mais ninguém a fazer-nos companhia
no descanso. ou mesmo poder chamar pelo seu nome e ouvir: dá-me cinco minutos –
eu e a mãe estamos um pouco perdidos. agachados um no outro. sabendo agora que
só nos teremos a nós os dois – bem sei que os filhos são para toda a vida. e os
medos que aprendemos a silenciar. continuarão silenciados. mas presentes. estão
encrostados na carne. saber que está tudo bem é e será sempre a nossa paz – por
isso estamos felizes com a sua felicidade. pois apenas assim faz sentido. sem a
sua felicidade. dos três filhos. a nossa vida não faria sentido – três irmãos
que se adoram. respeitam as diferenças. amigos. cúmplices. com três noras que
os completam. e tudo isto numa harmonia celestial. quando juntos a nossa casa
parece um conto de fadas – construímos este lar com muito sacrifício. com
muitas noites sem dormir. em terror e em lágrimas. que eu e a mãe segurámos um
ao outro. mas se voltássemos atrás. se o mundo tivesse marcha-atrás. faríamos
tudo na mesma. colocaríamos cada pedra no mesmo lugar – nós estaremos sempre
aqui. no lugar onde os críamos. viveremos as suas alegrias. e pediremos ao
universo que lhes dê tudo o que merecem – essa será a nossa maior recompensa –
nós recomeçaremos de novo. viveremos agora um para outro. sabendo que as noites
encontrarão silêncio mais cedo. e que as únicas falas serão as nossas – também
não será difícil. os meus filhos sabem que amo a sua mãe. desde os seus quinze
anos. eles não poderiam ter uma mãe mais bonita. que sempre foi a deusa
encantada dos filhos e. agora. dos netos – não há forma de não gostarem da
minha maria joão – mérito meu que soube escolher. talvez o meu maior feito –
foi assim que começou a minha epopeia – o que peço ao meu filho é que ame a sua
mulher até a exaustão. e que nos dias mais encobertos que nunca desista da sua companheira.
que fale sem nunca se calar. que nunca durma uma única noite ofendido sem a
perdoar. ou sem se perdoar. que adormeça de mão dada. e mesmo quando dormir.
que lhe diga ao ouvido que é o amor da sua vida – o casamento é uma estrada. e só
o casal a pode construir. colocar todos os dias uma pedra. pequena ou grande.
mesmo sem sentir no momento que cresce. um dia. quando olhar para trás. não
verá o princípio. mas saberá que é a sua estrada. e em cada pedra verá um ato
de amor. de partilha. de comunhão. de companheirismo. e poderá também ele
dizer. esta é a minha única obra. a que me honrará. a que permanecerá para além
do túmulo – espero que o dia seja abençoado. sagrado. para sempre. nós somos
homens de uma única mulher. assim foi com os vossos avós. assim foi com os
vossos pais. e sei. que assim continuará – gostava muito que o avô e a avó
estivessem presentes. quem sabe os desígnios do universo – de alguma forma
estarão. levaremos dentro de nós o estandarte da família. que agora será apenas
vosso
bênção
filhomeu – hoje deixas a nossa casa para construir a
tua – não partimos contigo mas caminhamos ao teu lado – o teu caminho é sagrado
e só a ti e à tua companheira pertence – ser pai foi a minha maior obra – e
agora a minha herança é ver-te marido – peço-te apenas que ames a tua mulher
até à exaustão – que nunca te deites ofendido sem perdoar ou ser perdoado – que
adormeças de mão dada – que mesmo dormindo lhe digas ao ouvido: és o amor da
minha vida – o casamento é uma estrada – pedra a pedra se constrói – cada gesto
pequeno é amor – cada partilha é comunhão – quando olhares para trás não verás
o princípio – mas reconhecerás a vossa obra – e ela será eterna – somos homens
de uma única mulher – assim foram os teus avós – assim fomos nós – assim serás
tu – que o universo vos abençoe – hoje e sempre
há cerca de quarenta anos. era eu um jovem
promissor no setor industrial que. no começo de cada ano novo. encomendava a
empresas de publicidade pequenos brindes para oferecer aos clientes – eram
coisas simples. esferográficas. lápis. agendas. calendários de parede. de
secretária. e os de bolso. objetos que hoje despertam pouco interesse. tornaram-se
obsoletos com o avanço das novas tecnologias. principalmente com o surgimento
dos primeiros computadores. seguidos pelos telemóveis – mas havia um brinde
muito procurado e amplamente distribuído: os pequenos calendários – encomendava-os
com o logótipo da empresa. bem sei que hoje isso possa parecer ridículo.
estamos habituados a consultar tudo no telemóvel. mas naquela época acreditem
que ter um calendário de bolso era extremamente útil. diria indispensável. isso
e uma “short list” com os contactos telefónicos mais importantes. apesar de sermos
obrigados a decorar muitos números. nomeadamente os dos familiares e amigos
mais próximos – guardávamos também datas de aniversário das pessoas mais chegadas.
tudo transportado na nossa carteira de pele. onde cabiam cheques. bilhete de
identidade. cartão de saúde. cartão de sócio do clube. e vários outros
documentos essenciais – sim. sei. com as novas ferramentas de hoje parecemos
pré-históricos. mas. não. para a época éramos já surpreendentemente desenvolvidos
– nesses tempos. diferentes dos de hoje. havia alguns adultos estranhos. agora
também existem. até talvez com mais maradas. mas é diferente. a sociedade está
mais recetiva a novos padrões de vida – naquele tempo éramos quase todos
iguais. com rituais e rotinas muito semelhantes. as noites eram sempre mais
longas. apenas uma televisão nacional. dois cinemas. teatro de circo. a sala
nobre da nossa cidade. cine-teatro são geraldo. e mais tarde surgiu o acil –
diversões poucas. bilhares. matrecos e as primeiras máquinas de flippers – era
um tempo contido – e estávamos a dar os primeiros passos em liberdade – estes
indivíduos adultos. pais de família. que à primeira vista pareciam personagens
normais. tinham um vício. colecionavam obsessivamente – tal como agora há
viciados em jogos online. raspadinhas e redes sociais. na altura o colecionismo
reduzia-se a uma caderneta de jogadores de futebol. coleção de chávenas de
café. esferográficas. calendários de bolso. todos com as respetivas marcas
impressas das empresas – assim. a cada novo ano. os colecionadores voltavam à
porta a solicitar calendários e esferográficos. eram mesmo habituais. cheguei
até a reconhecê-los – bem sei que isto pode parecer um pouco antiquado. para os
mais novos será mesmo difícil perceber. mas era normal ter na nossa carteira um
destes pequenos calendários. e uma mini-lista de contactos telefónicos – quem
não tivesse mostrava que a sua vida não tinha nada de interessante para
registar ou ninguém relevante com quem falar. e havia muita gente que não tinha
telefone em casa. sem luz elétrica. sem saneamento básico. sem água canalizada.
eram tempos difíceis – os pobres eram mesmo pobres. e os recursos analógicos
pouco acessíveis ao comum trabalhador – a televisão a cores em portugal foi inaugurada
a 7 de março de 1980. com a transmissão do festival da canção desse ano. e
lembro-me perfeitamente de o meu pai chegar a casa com uma televisão a cores –
foi uma noite em grande – as cores saltavam do ecrã como se a sala tivesse
aberto uma janela para outro mundo – não saímos do pé da TV – a luz pintava-nos
a pele e até o silêncio parecia ter outra cor – tínhamos agora a verdadeira
caixa mágica em casa – e recordo-me bem: nesse dia. creio. que nenhum dos meus
amigos próximos teve a mesma sorte. o dinheiro era raro e valioso – mas
voltando aos brindes. passavam pela empresa uns quantos sujeitos. alguns bem
maduros e chefes de família a pedirem calendários de bolso. dizendo apenas que
eram colecionadores – eu achava aquilo inacreditável. e interrogava-me: o que
leva homens feitos a andar de porta em porta em busca de calendários? nunca
encontrei uma resposta clara para os compreender. via-os como adultos presos ao
mundo do peter pan. ou. talvez. vítimas de um curto-circuito na massa
encefálica – mas. agora. passados tantas décadas. envelhecido e depois de muito
ter aprendido com o tempo. finalmente. compreendo o que os movia – arrogância
da juventude é um mal que tende a passar com o envelhecimento – tal como eu
escrevo crónicas quase todos os dias. poemas apenas para espairecer. esta arte.
mesmo sendo rara. faz de mim um desses colecionadores dos calendários – guardo
frases como quem guarda um calendário com um erro de impressão – raro e inútil
para muitos – mas para mim um tesouro – de página em página mergulho nos
dicionários. antigamente de papel. agora digitais. a suplicar por palavras para
a minha coleção de crónicas – e assim capitulei. porque. tal como eles. também a
minha coleção tem pouco valor. e mais uma vez. sendo cada vez mais parecido com
esses adultos de quem eu troçava. sigo diariamente a implorar mais – mantenho a
crença. que o importante não é o valor da coleção. mas o esforço que vamos
repetindo todos os dias para que a nossa coleção fique mais completa – hoje.
depois de várias décadas. talvez aí uns trinta. já não avalio o caminho alheio.
e como diz mia couto. cada ser humano é uma raça. e eu acrescento. com o seu
caminho. único. com a sua verdade. e sem que ninguém tenha o direito de a
questionar – não gosto de envelhecer. nunca gostei. nem sei se alguém gosta. mas
às vezes sinto-me feliz por ter envelhecido o suficiente para me reconhecer como
um ser mais inteiro – cada um tem os seus sapatos – e o caminho que percorre
pertence apenas a eles – tal como aqueles homens feitos a pedir calendários –
hoje percebo que não pediam datas – pediam um pedaço de si mesmos para guardar
no bolso
às vezes dedicamo-nos em demasia aos amigos. deixem-me dizer
isto em voz alta. bem sei que um amigo verdadeiro deve ter sempre o nosso tempo
por inteiro. mas o problema. está na forma como os categorizamos. e alguns não
merecem estar à nossa frente. não merecem que paremos de viver para sofrer-lhes
a vida. nem merecem que lhes demos aquilo que tantas vezes nos falta a nós
mesmos – a amizade. hoje. parece estar sempre em liquidação. todos gostam de
estar bem com todos. e cada um cria os seus círculos de amizades: são amigos de
cem personagens por causa de um clube. mais mil pelos matrecos. e porque hoje
só existe quem se faz rodear. tem-se então mais dez mil. que são os que gostam
das noites. e mais cem mil. os que querem ser palhaços. que servem para os dias
mais tristes. para logo de seguida surgirem aqueles que apenas servem para os
dias sem um grupo definido. impossíveis de contar – a minha interrogação é se
devo continuar integrado nestes grupos. ou a permitir que continuem a
considerar-me amigo. se não devo dizer basta. ser frontal e afirmar: eu sou
esses todos e ainda mais uns quantos que. por olharem apenas para fora. ainda
não se deram conta de que estou em todos os grupos. não poderei estar apenas
num. sou feito de todos – sem essa mistura. os dias pesam. e os amigos.
tornam-se cópias – um dia acordo. e digo. preciso de um tempo que seja só meu.
inteiro. talvez o dia todo. sem barulho. apenas eu. num silêncio que. para além
dos medos e interrogações. me traga tolerância e compreensão pelo que me é diferente
– com tanto barulho por dentro e por fora. ninguém se encontra. nos dias mais
complicados temos mesmo que ajudar a nascer o que pensamos. como um parto. e
por vezes só com ferros conseguimos trazer à luz o que nos vai mais fundo. que
é o mesmo que dizer o que sentimos. o que nos magoa – o que é gerado por nós.
no que há de mais íntimo. tem que ser ouvido. respeitado. primeiro por nós.
porque se não formos nós os primeiros. então ninguém mais ouvirá. depois por
aqueles que consideramos nossos amigos. ou nos são chegados. um tipo assim de
quase-amigos. estão na lista de aferição. em testes de afinidade e
compatibilidade: avaliar a ética. a bondade. a tolerância. a capacidade de dar.
quando casal a forma como se tratam. como se respeitam e protegem. como educam
os seus filhos. o exemplo que transmitem. e depois. somar tudo. e colocar em
letras gordas: aprovado – muitas vezes queremos mesmo ser amigo de determinada
pessoa. esforçámo-nos. admitimos a evolução da relação. acreditamos que seremos
exemplo. à nossa medida. que nos ouvirão. respeitarão. e não raras vezes
tentamos nós adaptar-nos ao seu modo de ser. alongar a nossa tolerância. mas
depois de todas as manobras para nos moldarmos. não adianta. é aquilo para
eles. é a sua essência. está ali. são as suas fundações e. tal como diz clarice
lispector: "não sei que viga me sustenta – se eu mudar de posição.
desmorono." para nós. a sua sustentabilidade é o que é. e mais nada
poderemos fazer a não ser partir. aceitá-los no seu mundo. seguir o nosso. sem
culpa. sem rancor. e sorrir – este fim-de-semana ouvi uma expressão de um amigo
que me deixou a rir durante muito tempo: podem beber whisky. mas arrotarão
sempre a bagaço – é uma grande verdade. por isso. seguimos em trânsito.
finalmente. chegou a hora de nos bastarmos
2.às vezes. é só
isso: presença
juntamos todos os amigos no mesmo saco – e depois.
ingenuamente. esperamos que todos nasçam iguais. no mesmo dia. com o mesmo
rosto – claro que não pode correr bem. hoje as amizades constroem-se com base
num naipe enorme de interesses – uns querem-nos engraçados. porreiros. são os
palhaços. que estejamos sempre prontos para as borgas. para as aventuras. vivem
como se estivessem num filme de ação. sempre a mil. sempre com sede de mais –
outros. analisam-nos pelo que temos para oferecer. são os interesseiros. a
forma como podemos gerar sinergias positivas. principalmente se trouxer
economia financeira. isso é fantástico. particularmente se também criar
amizades tipo pontes: se conhecer aquele gajo é porreiro porque ele conhece o
gajo que me interessa – depois temos os anónimos. querem-nos apenas em
determinados contextos. quanto mais discreta for a nossa ligação. melhor para
eles. acreditam que já estamos um pouco “démodé”. e não encaixamos com a linha
moderna dos móveis de sua casa. ou dos seus amigos – portanto passas a ser
importante consoante o local. de quem está presente. do estatuto financeiro. e
da idade. não da que aparentas. mas a que tens no cartão único – depois temos o
confidente. só nos procuram para desabafar. duas horas de telefone e estamos livres
para meses. o que nem sempre é mau. o problema é que quando voltam já não
gastam duas horas. às vezes. são dois dias – mas os amigos são mesmo para
quando são precisos – também temos o conselheiro. procuram-nos para perguntar
como estará o tempo na próxima semana. e mesmo sabendo que não tenho uma
estação meteorológica. respondo-lhes que o mais certo é estar sol. mas pelo
sim. e pelo não. o melhor é levarem guarda-chuva – por fim acabam a perguntar:
se for ao casino. aposto no vermelho ou no preto? a minha resposta é sempre a
mesma. se fores obrigado a ir a jogo aposta nas duas cores. se não. volta para
casa – e termino dizendo-lhe: às vezes tento adivinhar o meu próprio futuro.
mas falho sempre – e em grande quantidade temos o digital. não o conhecemos pessoalmente.
mas está sempre presente. enchem-nos de likes e corações. sempre aos montes.
sem pedir nada em troca. esporadicamente pede-nos unicamente que demonstremos
que não somos um computador. e é quando lhe enviamos um like via expresso. e o
assunto fica arrumado por uns tempos – no entanto. se os enumerasses. estes
estariam no pódio. os mentalistas. são aqueles que. quando lhes digo que não
gosto de hienas. concordam. sempre com o seu ar sério. não perdem uma palavra.
ouvem tudo sem pestanejar. como se fossem os gurus do universo. mas. por trás.
dizem com a certeza que nos conhecem melhor que nós: ai não gosto. gosta. e
gosta muito. se pudesse. até as levava a passear na rua. pensa que nos leva na
pandeireta. conhecemos bem a sua laia – acreditem. não há nada que possamos
fazer. estão tão traumatizados pelas pessoas que lhe surgiram na vida. para
eles. apenas a sua própria voz merece crédito – mas o que gosto mais é da
amizade dos inteligentes. são aqueles que se acham crânios. dito melhor.
génios. são os melhores em tudo. no seu emprego o patrão não subsistia se eles
não existissem. se são patrões o mundo sem eles era miséria. acham-se o centro
do universo. dominam a política nacional e internacional. embora vivam alheios
às páginas que contam o mundo e aos ecrãs que lhe dão voz. são catedráticos das
redes sociais. doutorados em quase tudo. só não sabem cozinhar ou coser meias –
com estes sabichões não há nada mais a fazer. a solução é ficar em silêncio e
abanar a cabeça. fingirmo-nos de burros. ou mortos. e esperar que se cansem – a
questão é que envelhecemos. e na maior parte das vezes já não desejamos este
tipo de diferenciação. precisamos das pessoas pelo seu todo. simplesmente as
melhores. aquelas que sendo inteligentes. se resguardam na simplicidade. sendo
ricas cultivam discrição. aquelas que mesmo podendo afastar-se. permanecem por
perto. com afetos. com atenção. com cuidado pelos outros. aquelas que
perguntam. e ficam para ouvir. não queremos pontes. nem grandes. nem pequenas.
só queremos as pessoas como são. sem máscaras. sem adereços. só pedimos
respeito. tempo para escutarem. porque o que nos falta nos outros. é só o bem
que nos possam oferecer – não pretendemos saber se são ricas ou pobres. se são
altas ou baixas. se são bonitas ou feias. pretendemos simplesmente que se
expressem com sinceridade. e principalmente. que não desperdicem as suas
palavras com pessoas que não lhes interessam – não precisamos de elogios. eu.
por exemplo. nunca sei onde os pôr quando mos dão. e acabam quase sempre por pesar
mais do que deviam. de tudo o que me possam dizer. o que mais me toca é
isto:és boa pessoa – ser boa pessoa é
das poucas coisas leves que ainda vale muito. e mesmo que um dia nos caia o
estado de graça. podemos sempre voltar a tê-lo. ser humano é também erro. não
preciso que me digam que sou mágico com uma chave inglesa. ou que falo truques
com o pensamento. ou sei lá que mais. coisas. inúmeras. a amizade. às vezes. é
só isso: presença. estar ali. nada mais. ali – todos gostamos de ser
valorizados. mas para fazer efeito. tem de ser na medida certa. senão é como
nos darem umas calças uns números acima. caem-nos pernas abaixo – recuso ser
avaliado por rótulos de importância. porque isso raramente exige verdadeiro
sacrifício ao amigo. não me avaliem nem pela casa. nem pelo carro. bem sei que
agora tenho um carro novo. mas é unicamente porque o último partiu o motor. se
assim não fosse ainda continuava com o meu ferro-velho. e este. também irá
envelhecer. e depois. como estarei eu? novamente esfarrapado? para alguns sei
que sim. o sucesso é a ostentação – confesso-vos com humildade. eu tenho pouca
coisa que se recomende nesse mundo de aparências. a única obra que considero um
feito. a minha maior obra-prima. é a minha família. e ainda não está terminada.
creio até que nunca estará. é ali que mora a amizade verdadeira. quando a
construímos no seu seio com solidez. torna-se muito mais fácil levá-la aos
outros
2.quando os amigos
calam
os amigos de hoje parecem a suiça. sempre neutros. nunca dão
opiniões. nunca se posicionam. nunca questionam. o que eles querem mesmo é
darem-se com todos. como se isso fosse possível. como se os valores essenciais
da existência pudessem ser neutros. e depois vem aquela velha história: fez-lhe
a ele. mas eu sou diferente. a mim não me faria – pois bem. eu já estou naquela
fase das avaliações objetivas. e também já percebi que. “vemos nas costas dos
outros as pancadas que devíamos ver nas nossas” – em tempos tive um amigo que
me fez uma sacanice. foi de tal maneira grave que quase me atirou para a
miséria. podia ter acabado completamente com a minha vida. a vida dos meus
filhos teria mudado drasticamente. teriam saído das escolas privadas.
possivelmente passariam por graves problemas financeiros. a minha casa teria
implodido. eu com ela – resistimos porque as suas fundações tinham sido
erguidas com lealdade e amor – mas o ser humano é surpresa. e quase sempre.
infelizmente. para pior. e este… nem sei muito bem o que lhe chamar. este homem
doente. se me tivesse feito a sacanice porque precisava de sustentar a sua
família. ou o seu negócio estivesse a correr mal e precisasse de o salvar. ou
qualquer outra coisa mais mortal. salvar a vida de alguém. ainda poderia tentar
compreender. mas não. não foi nada disso. um tipo rico. que cresceu comigo.
vizinho de infância. frequentava a sua casa sempre que havia celebrações.
casamentos. batizados. aniversários. com um lugar de topo numa empresa
camarária. a ganhar imensamente bem. casa na praia. barco. carros de alta gama.
viagens sem fim. férias várias vezes ao ano. não lhe faltava nada. exceto algo
que. para ele. era imensamente valioso: ter mais dinheiro que os seus amigos –
mesmo tendo tudo. ainda não era suficiente rico para os acompanhar – aqui volto
ao texto que escrevi recentemente. em que falei de invejosos com esta
definição: “um invejoso vive em permanente desassossego. um ressentimento
constante. e ao fim do dia descansa no inferno ao lado de satanás – se o amigo
ou vizinho faz aviõezinhos de papel. é porque quer ser astronauta; se joga o
euromilhões. é porque quer comprar o iate do abramovich e estacioná-lo na
rotunda mais próxima; se assopra preservativos. é porque quer ser balonista; se
abre os braços. é porque quer ser gaivota – um invejoso é uma alma extraviada.
doente. vê nos outros o que realmente medra dentro de si – na vida de um
invejoso só há ambição desmedida. doentia e perigosa – a cobiça medíocre de um
invejoso nasce da sua vaidade”. in a inveja é um visa vencido”. então. para
ele. a solução seria acabar com a minha atividade. obrigar-me a fechar portas.
para que um dos seus parceiros de negócios pudesse comprá-lo por tuta e meia. e
como era diretor de uma empresa com fundos públicos. adjudicar-lhe o trabalho e
ter direito a milhões de subornos e comissões – não é fácil perder dez anos de
uma vida que já não é nova. mas foi o que me aconteceu. zanguei-me. perdi-me na
raiva e denunciei tudo ao ministério público. toda a trafulhice. e aqui
continuo sentado. à espera que se faça justiça. mesmo acreditando que é aqui na
nossa passagem terrena que tudo se paga – precisava mais do que justiça divina.
precisava da justiça dos tribunais. mas o meu país é assim: quem rouba uma
carteira vai logo preso. mas quem rouba o estado… espera sentado – o ódio
cresceu e viveu dentro de mim durante muitos anos. partilhar este caso não me
liberta a alma. custou-me imenso arrancá-lo de dentro de mim. adormeci muitas
vezes com raiva. magoei-me até à exaustão. persegui-me quase até à morte. senti
vontade de o agredir. de o crucificar em praça pública – confesso. nunca foi
julgamento fácil. eu conhecia os filhos. a esposa. praticamente toda a sua
família. mas uma coisa sei. os filhos não têm culpa de ter um pai assim. nenhum
filho merece um pai sem escrúpulos. um bandido – com o tempo a passar fui
percebendo que carregá-lo era demasiado pesado. eu não merecia. a minha família
ainda menos. e por isso. aos poucos. fui desfazendo na máquina de cortar papel
as resmas de raiva que lhe guardava. ainda não o tracei todo. mas já falta
pouco. mais umas folhas. e tudo terminará – preciso da secretária limpa – a
minha família. principalmente os netos. não podem crescer com o seu avô enleado
em ódios. não é isso que nos une como família. é preciso libertar a mente para
o amanhã. o corpo para o sol. todos os dias há um novo amanhecer. e um dia
diferente à nossa espera. é obrigatório seguir em frente. e que o exemplo do
perdão perdure. para os que de mim cresceram – mas o motivo por que vos entreguei
este “amigo”. por que o escrevi para vós. é que hoje. o que mais me preocupa.
não é o que ele fez. é o que os amigos em comum deixaram por fazer – e o que
fizeram?
3.quando a
neutralidade nos trai
começo como terminei o último capítulo. o que mais me
preocupa não é o que ele fez. é o que os amigos em comum deixaram por fazer – e
o que fizeram? coisa nenhuma – ficaram calados. imóveis. nem uma pergunta. nem
um gesto. e ele pôde continuar a andar por aí. como se nada tivesse acontecido.
e obviamente com caminho livre para continuar a fazer o mesmo a outros – não
houve censura. preocuparem-se comigo? nem pensar. como se a minha ruína não
contasse para nada. nem foi importante saber o que teria acontecido se me
tivesse destruído. já não digo a mim. mas à minha família. não me disseram
coisa nenhuma. nem se preocuparam em saber se estava bem? nem como te estás a
aguentar? fizemos do silêncio a nossa trincheira. foi com a família que
segurámos tudo – à volta. uma cerca. para resistir. e resistimos heroicamente –
o que cada vez me convenço mais. é que a maior parte dos meus amigos. não
teriam o mesmo comportamento se um desgraçado roubasse um saco de cimento. os
que são patrões não hesitariam em pô-lo na rua. e os que não são. aplicavam-lhe
a xaria. apedrejavam-no em público – por isso. hoje. analiso ao detalhe cada
novo amigo. e como escrevi há pouco tempo. não quero perder amigos. mas também
já não me esforço por os ter. se tiverem de sair da minha vida. eu próprio lhes
abro a porta. sem remorsos – não voltarei a ser amigo de alguém que me
catalogue. isto é. sou amigo para ir à bola. mas já não sirvo para o cinema. é
um bom amigo para jantar com a maria. mas com o manuel já não dá – que se danem
esses pseudos amigos. todos. o meu castelo continua firme. e eu continuo a
resistir. a estar todos os dias melhor. e continuando a citar a marisa. “sei
que o melhor de mim está pra chegar” – os amigos que se tornarem neutros a
partir de hoje. só o serão um dia. não terei mais paciência. nem espaço para
desculpa. se alguém me prejudicar. for incorreto. não levar em conta quem sou e
o modo como vivo. educado. tolerante. a tentar juntar-me. pedaço a pedaço. de
forma mais inteira – estou a aproveitar cada dia para me reconciliar com a
verdade que carrego. não tenho que ser igual a ninguém. mas também não
permitirei mais que me magoem ou desvalorizem – aos amigos de hoje direi. quem
quiser ficar. tem de escolher. não há mais dois lados para mim. não se
conseguirão esconder no silêncio. nem na mentira. terão que escolher um lado.
mesmo que seja o lado das coisas fáceis. instantâneas. ou o lado do bem que
exige esforço. preocupação. camaradagem –os meus amigos de hoje têm que escolher. ou me querem por inteiro. ou
por partes já não estou disponível. não lhes posso dar o melhor de mim à sexta.
e depois ao sábado já não dá. porque para mim. domingo vem sempre depois de
sábado. não separo os dias como separo pessoas. se não sirvo para umas coisas.
então não sirvo para nada. se não me defendem. então. não me servem. nem como
presença. nem como ausência – se não me ouvem. então para que falar com eles.
se só se lembram de mim para dizerem que não estão esquecidos. então
esqueçam-me de vez. não me falem. ignorem-me. aceito a vossa decisão. e até
darei valor à vossa coragem – porque é a coragem que nos guia para o certo. e a
neutralidade apenas prolonga o erro no tempo
4.o que ainda
guardo em mim
eu sei que o tempo passou por mim. e a paciência ficou mais
curta. não quero à minha volta quem só sabe medir a amizade com régua de
interesse. sei que não posso ser amigo de toda a gente. chegou a altura das
escolhas. cada um sabe o lugar que ocupa. não tenho casa na riviera francesa.
castelo? nem no portugal dos pequeninos. não tenho nenhum navio porque onde
vivo não há mar. muito menos foguetão. e se tivesse. iria para onde? o que levo
comigo está cá dentro. e chega. chega bem. e cada vez tenho menos espaço para
acolher as novas vivências que me vão surgindo. e também confesso que. às
vezes. para guardar o novo. tenho de deixar ir memórias que me eram queridas –
por isso peço: se sentirem que estão em mim sem merecer vão. libertem-me.
libertem-se. só quero viver leve. sem sobras do que ficou para trás – há quem
diga. como nietzsche. que a amizade é uma força que nos desafia. e é disso que
preciso – e é exatamente o que espero dos amigos. que me ajudem a sarar o
passado. e que estejam no meu futuro. limpo. sem peso. com verdade