.................................................................................não tirem o vento às gaivotas

19/03/2025

um dia. um pai. para sempre






1.

hoje. dia do pai. faz vinte e sete anos que o meu pai desceu ao ventre da terra – é dia de recordá-lo – nenhuma homenagem é suficiente para um pai – mas eu dei o meu melhor para que os meus filhos o recordem. digo. para que nunca o esqueçam. porque era um homem bom – e como fazem falta homens bons neste mundo

2.

o algodão doce dissolve-se aos poucos. e nas mãos resta apenas um pauzinho despido de açúcar – os olhos percorrem a romaria. os carrosséis giram. e eu de mão dada com o açúcar. sem saber ainda que por cada balão solto no céu. partia um dia de infância – e os lábios sugando vida. e o céu ainda azul. e os olhos a girar como os carrosséis. e os sonhos presos ao destino: um dia quero ser grande e ter um carrossel só meu – o açúcar na mão. efémero como as nuvens no céu. e a boca a sorrir. as mãos a pedir primavera. o corpo deitado para o dia seguinte. imaginando que tudo é eterno. que o que é dos olhos fica guardado para sempre. porque cada dia parece apenas um dia – os lábios presos ao algodão. e eu preso à mão que julgava eterna – até o açúcar azeda. até a doçura se esgota nas mãos que fogem para um destino que não controlamos. e o que era para sempre são agora memórias que me recuso a perder – hoje é o dia do pai e os carrosséis continuam a girar dentro de mim. e eu a girar em torno do algodão doce. sou o filho pedindo ao pai de hoje que não esqueça o pai das romarias. sou o pai pedindo aos filhos de hoje que não esqueçam o avô do algodão doce – eu cresci em festa – quando somos crianças. não sabemos que o açúcar. tal como os balões. sobe ao céu e nunca mais volta – tudo gira. os carrosséis. os romeiros. o homem dos balões. e a criançada garante à candura que o açúcar sem balão não chega ao céu – e as palavras a girarem de boca em boca enquanto os altifalantes gritam música que ninguém sabe quando termina – não há festa sem ruído. e não há ruído que o silêncio não acabe por engolir – ninguém quer saber de que árvore nasceu aquele pauzinho. ninguém quer saber que fruto deu. ninguém quer saber quem foi o lenhador que a cortou. ninguém quer saber da clorofila. ninguém quer saber de nada. mas aquele pauzinho é mais do que madeira. é mais do que um resto. são todos os filhos que recordam o seu pai. cada um tem a sua árvore. e cada árvore com o seu pedaço de terra sagrado – o meu pai escondeu-se de mim há vinte e sete anos. era dia do pai. hoje continua a sê-lo. porque todos os dias são dele. e a memória já não tem a certeza de quanto pesa um dia perdido no vazio do universo – quero acreditar que o tempo só conta para os que resistem. só vale para os que sobrevivem à dor – um dia. noutra dimensão. os anos serão apenas um sopro. o instante de uma chama acesa. e a luz iluminará para sempre o dia em que os carrosséis giravam sem pressa. sem rumo. porque. por mais voltas que dessem. o ponto de partida e chegada era sempre o mesmo – ali. naquele instante onde um filho se torna estrela aos olhos de um pai – esta luz que trago não é minha. é a dele. iluminando o caminho que ainda me falta percorrer para voltar ao seu lado – porque o caminho em falta é o nosso caminho – e assim continuará a ser: a família é uma âncora que nos prende à terra e à memória – feliz dia do pai!


01/03/2025

pratos rachados

 



no passado. há muito. muito tempo. quando os pobres eram realmente pobres e miseráveis. se um prato ou travessa se partia. colavam-no com resina. e de seguida. fixavam-lhes alguns agrafos para garantir que não voltaria a quebrar – cada prato era um bem precioso. faltava dinheiro para comprar comida. quanto mais para loiça – os tempos mudaram. e com eles. as nossas prioridades. hoje. qualquer pessoa pode comprar um prato. ninguém cola nada. o que se estraga vai para o RSU – é tudo descartável. a comida sobra vai para o lixo. o tempo sobra vai para as redes sociais. as amizades valem tanto quanto um like. os melhores amigos transformam-se em produto tóxico de um dia para o outro. os pais zangam-se com filhos. irmãos com irmãos. e a família a desmoronar-se como a torre de babel – os casais modernos evitam sacrifícios. trocam sentimento por aparências. compram amores descartáveis. como se fossem pacotes de dados móveis. só para impressionar os amigos. os colegas de trabalho ou a família. e quando a conexão se esgota. trocam por outro plano. com mais minutos e menos compromisso – tudo isto para vos dizer que as relações são como pratos rachados. podem ser coladas. mas a cicatriz do rompimento nunca desaparece. atenua-se com o passar do tempo. sem nunca desaparecer por completo – e a rachadela está ali para sempre. aos poucos. esmaece. escurece. só quem olha com atenção percebe que a imperfeição nunca desaparece. e acabamos acreditando que. talvez. essa fragilidade sempre estivesse ali. desde a fabricação – hoje. já ninguém aproveita nada. não há gratidão. nem honra. e o perdão é coisa dos livros sagrados – vemos casamentos a terminar ao fim de um par de anos. mulheres e homens cada vez mais preocupados apenas com o seu sucesso profissional. relegando para segundo plano os seus conjugues. os seus filhos. a família. e os seus amigos – e. neste ritmo acelerado e superficial. acabamos por esquecer aqueles que mais precisam de nós – vivemos todos para um sucesso aparente. trocado por uma felicidade mentirosa e frágil – é assim. e nada mais do que assim. os pais esquecidos. os filhos esquecidos e a sobreviverem de casa em casa. e a promessa de os proteger de todos os males resolve-se com silêncio e ausência – os amigos  partem sem deixar um adeus. olham para trás sem saber contar pelos dedos o valor de cada palavra. cada momento. cada ano. e a volatilidade é agora mais instantânea do que éter. acorrentada ao egocentrismo. e à falta de empatia – mas a maior doença da humanidade é a manipulação pela mentira. a indiferença pelo sofrimento. o perdão pelo erro. e a total ausência de gratidão e respeito pelos outros – passamos todos rapidamente ao tal produto tóxico – ainda há pouco tempo. eu escrevia sobre a necessidade de não querer perder mais nada. principalmente amigos. mas o tempo pode ser também uma traição. temos que estar preparados para tudo. principalmente para a ingratidão e perdão – hoje. percebo que tudo que surge sem tempo de amadurecimento. respeito pelas diferenças. e compromisso com a verdade. desaparece rapidamente – os ditos amigos raramente buscam a verdade; querem distração e absolvição. como num confessionário. rezam três pai-nossos e duas ave marias – saem em paz e regressam para pecar – o pior é que ainda acreditam que com um sorriso curam qualquer mal. ou então meia dúzia de palavras sem sentido. usadas pelos nossos antepassados. num arcaísmo obsoleto. e em desuso nos nossos dias. e que na sua ignorância saloia. manuseiam para tentar enganar o que resta do mundo ingénuo – mas percebo que ser autêntico de nada vale quando os outros se ocultam em passados nebulosos. muito menos vale dizer a verdade. se a maioria deseja apenas bajulação – querem ser enaltecidos pelo que não são. carregados de virtudes que não têm. e respeitados pelo que julgam valer. mas raramente valem o que imaginam – um homem honrado. na maior parte das vezes. é obrigado a sacrifícios. a muita humildade e gratidão. a bater com a mão no peito e dizer: por minha culpa. tão grande culpa. a sofrer pelo erro. a pedir perdão a si mesmo e aos outros. e mesmo com os novos propósitos do mundo moderno. estas virtudes devem ser valorizadas. cultivadas e respeitadas. mas não são – esta malta que aparece do nada vive o momento. e à primeira dificuldade esquece tudo. como se o que valesse fosse aquele ar de quem não carrega o mundo às costas. com sorrisos mal adornados. numa felicidade tão grande que. se fosse verdade. deixaria qualquer ser humano invejoso e a perguntar: por que raio não tenho eu uma felicidade assim? eu aprendi que o amor e as amizades necessitam de alicerces fortes. baseados na verdade. na comunicação. e no perdão. é nossa obrigação também ouvir. colocar-se no lugar de quem nos fala. e perceber que nada pode ruir por uma palavra perdida – viver também é seguir em frente. a não ser que o seu íntimo se estruture na falsidade e se esconda no passado – todos precisamos de um amor que nos trate com afeição. respeito e atenção. de uma família que nos ame. e de um amigo que nos ouça e nos socorra quando a brisa vira ventania. todos precisamos de nos sentirmos humanos e visíveis – o amor com a minha companheira é feito de tempo. de um abraço. de um olhar. de rir muito das palermices que só os dois conhecem e valorizam. de chorar juntos para a dor ser menor. ou apenas dizer: hoje estás bonita. ou estar no sofá e num impulso olhá-la e sentir uma palpitação. sentir o corpo todo a ser preenchido de uma sensação boa. sem que o seu amor imagine como aquele microssegundo preenche quarenta anos de mão dada – para se amar. é preciso ter capacidade de sacrifício. optar pelo que está certo. não hoje. mas daqui a um dia. a dez. ou vinte anos. perceber como bate o coração de medo só de pensar que a podemos perder. e rogar ao destino que seja o próprio a deixar saudade – é preciso amar a nossa companheira. compreender e aceitar que todos os dias o amor vai exigir compromisso. pois só assim o belo se torna mais belo. mesmo nos dias de silêncio – eu tenho o meu belo. a minha companheira tem o dela. difícil é fundir um ao outro. felizmente para nós basta apenas uns retoques e temos a obra tão perfeita como a pietà de michelangelo – lealdade. perdão. compromisso. verdade. comunicação. bondade. e companheirismo é a receita para tudo. também para as amizades. e quando assim é. os casamentos são para sempre. a família é para sempre. e os amigos são para sempre – e sim. é melhor aceitar as perdas inevitáveis do que viver alimentando ilusões sobre o que nunca foi real – no fim. aceitamos essas perdas. como pratos que nunca mais colamos. porque. mesmo que tentemos. sabemos que certas rachaduras estarão sempre lá – talvez seja isso que nos torna humanos. a busca constante por remendar o que já foi quebrado. mesmo sabendo que nunca voltará a ser como antes – nunca irei desistir da minha companheira. da família. dos amigos. encontrarei sempre um pouco de resina para colar o que a vida quebrou – é assim. e nada mais do que assim