.................................................................................não tirem o vento às gaivotas

29/08/2025

eu. os colecionadores. e os calendários de bolso

 




cerca de quarenta anos. era eu um jovem promissor no setor industrial que. no começo de cada ano novo. encomendava a empresas de publicidade pequenos brindes para oferecer aos clientes – eram coisas simples. esferográficas. lápis. agendas. calendários de parede. de secretária. e os de bolso. objetos que hoje despertam pouco interesse. tornaram-se obsoletos com o avanço das novas tecnologias. principalmente com o surgimento dos primeiros computadores. seguidos pelos telemóveis – mas havia um brinde muito procurado e amplamente distribuído: os pequenos calendários – encomendava-os com o logótipo da empresa. bem sei que hoje isso possa parecer ridículo. estamos habituados a consultar tudo no telemóvel. mas naquela época acreditem que ter um calendário de bolso era extremamente útil. diria indispensável. isso e uma “short list” com os contactos telefónicos mais importantes. apesar de sermos obrigados a decorar muitos números. nomeadamente os dos familiares e amigos mais próximos – guardávamos também datas de aniversário das pessoas mais chegadas. tudo transportado na nossa carteira de pele. onde cabiam cheques. bilhete de identidade. cartão de saúde. cartão de sócio do clube. e vários outros documentos essenciais – sim. sei. com as novas ferramentas de hoje parecemos pré-históricos. mas. não. para a época éramos já surpreendentemente desenvolvidos – nesses tempos. diferentes dos de hoje. havia alguns adultos estranhos. agora também existem. até talvez com mais maradas. mas é diferente. a sociedade está mais recetiva a novos padrões de vida – naquele tempo éramos quase todos iguais. com rituais e rotinas muito semelhantes. as noites eram sempre mais longas. apenas uma televisão nacional. dois cinemas. teatro de circo. a sala nobre da nossa cidade. cine-teatro são geraldo. e mais tarde surgiu o acil – diversões poucas. bilhares. matrecos e as primeiras máquinas de flippers – era um tempo contido – e estávamos a dar os primeiros passos em liberdade – estes indivíduos adultos. pais de família. que à primeira vista pareciam personagens normais. tinham um vício. colecionavam obsessivamente – tal como agora há viciados em jogos online. raspadinhas e redes sociais. na altura o colecionismo reduzia-se a uma caderneta de jogadores de futebol. coleção de chávenas de café. esferográficas. calendários de bolso. todos com as respetivas marcas impressas das empresas – assim. a cada novo ano. os colecionadores voltavam à porta a solicitar calendários e esferográficos. eram mesmo habituais. cheguei até a reconhecê-los – bem sei que isto pode parecer um pouco antiquado. para os mais novos será mesmo difícil perceber. mas era normal ter na nossa carteira um destes pequenos calendários. e uma mini-lista de contactos telefónicos – quem não tivesse mostrava que a sua vida não tinha nada de interessante para registar ou ninguém relevante com quem falar. e havia muita gente que não tinha telefone em casa. sem luz elétrica. sem saneamento básico. sem água canalizada. eram tempos difíceis – os pobres eram mesmo pobres. e os recursos analógicos pouco acessíveis ao comum trabalhador – a televisão a cores em portugal foi inaugurada a 7 de março de 1980. com a transmissão do festival da canção desse ano. e lembro-me perfeitamente de o meu pai chegar a casa com uma televisão a cores – foi uma noite em grande – as cores saltavam do ecrã como se a sala tivesse aberto uma janela para outro mundo – não saímos do pé da TV – a luz pintava-nos a pele e até o silêncio parecia ter outra cor – tínhamos agora a verdadeira caixa mágica em casa – e recordo-me bem: nesse dia. creio. que nenhum dos meus amigos próximos teve a mesma sorte. o dinheiro era raro e valioso – mas voltando aos brindes. passavam pela empresa uns quantos sujeitos. alguns bem maduros e chefes de família a pedirem calendários de bolso. dizendo apenas que eram colecionadores – eu achava aquilo inacreditável. e interrogava-me: o que leva homens feitos a andar de porta em porta em busca de calendários? nunca encontrei uma resposta clara para os compreender. via-os como adultos presos ao mundo do peter pan. ou. talvez. vítimas de um curto-circuito na massa encefálica – mas. agora. passados tantas décadas. envelhecido e depois de muito ter aprendido com o tempo. finalmente. compreendo o que os movia – arrogância da juventude é um mal que tende a passar com o envelhecimento – tal como eu escrevo crónicas quase todos os dias. poemas apenas para espairecer. esta arte. mesmo sendo rara. faz de mim um desses colecionadores dos calendários – guardo frases como quem guarda um calendário com um erro de impressão – raro e inútil para muitos – mas para mim um tesouro – de página em página mergulho nos dicionários. antigamente de papel. agora digitais. a suplicar por palavras para a minha coleção de crónicas – e assim capitulei. porque. tal como eles. também a minha coleção tem pouco valor. e mais uma vez. sendo cada vez mais parecido com esses adultos de quem eu troçava. sigo diariamente a implorar mais – mantenho a crença. que o importante não é o valor da coleção. mas o esforço que vamos repetindo todos os dias para que a nossa coleção fique mais completa – hoje. depois de várias décadas. talvez aí uns trinta. já não avalio o caminho alheio. e como diz mia couto. cada ser humano é uma raça. e eu acrescento. com o seu caminho. único. com a sua verdade. e sem que ninguém tenha o direito de a questionar – não gosto de envelhecer. nunca gostei. nem sei se alguém gosta. mas às vezes sinto-me feliz por ter envelhecido o suficiente para me reconhecer como um ser mais inteiro – cada um tem os seus sapatos – e o caminho que percorre pertence apenas a eles – tal como aqueles homens feitos a pedir calendários – hoje percebo que não pediam datas – pediam um pedaço de si mesmos para guardar no bolso