há cerca de quarenta anos. era eu um jovem
promissor no setor industrial que. no começo de cada ano novo. encomendava a
empresas de publicidade pequenos brindes para oferecer aos clientes – eram
coisas simples. esferográficas. lápis. agendas. calendários de parede. de
secretária. e os de bolso. objetos que hoje despertam pouco interesse. tornaram-se
obsoletos com o avanço das novas tecnologias. principalmente com o surgimento
dos primeiros computadores. seguidos pelos telemóveis – mas havia um brinde
muito procurado e amplamente distribuído: os pequenos calendários – encomendava-os
com o logótipo da empresa. bem sei que hoje isso possa parecer ridículo.
estamos habituados a consultar tudo no telemóvel. mas naquela época acreditem
que ter um calendário de bolso era extremamente útil. diria indispensável. isso
e uma “short list” com os contactos telefónicos mais importantes. apesar de sermos
obrigados a decorar muitos números. nomeadamente os dos familiares e amigos
mais próximos – guardávamos também datas de aniversário das pessoas mais chegadas.
tudo transportado na nossa carteira de pele. onde cabiam cheques. bilhete de
identidade. cartão de saúde. cartão de sócio do clube. e vários outros
documentos essenciais – sim. sei. com as novas ferramentas de hoje parecemos
pré-históricos. mas. não. para a época éramos já surpreendentemente desenvolvidos
– nesses tempos. diferentes dos de hoje. havia alguns adultos estranhos. agora
também existem. até talvez com mais maradas. mas é diferente. a sociedade está
mais recetiva a novos padrões de vida – naquele tempo éramos quase todos
iguais. com rituais e rotinas muito semelhantes. as noites eram sempre mais
longas. apenas uma televisão nacional. dois cinemas. teatro de circo. a sala
nobre da nossa cidade. cine-teatro são geraldo. e mais tarde surgiu o acil –
diversões poucas. bilhares. matrecos e as primeiras máquinas de flippers – era
um tempo contido – e estávamos a dar os primeiros passos em liberdade – estes
indivíduos adultos. pais de família. que à primeira vista pareciam personagens
normais. tinham um vício. colecionavam obsessivamente – tal como agora há
viciados em jogos online. raspadinhas e redes sociais. na altura o colecionismo
reduzia-se a uma caderneta de jogadores de futebol. coleção de chávenas de
café. esferográficas. calendários de bolso. todos com as respetivas marcas
impressas das empresas – assim. a cada novo ano. os colecionadores voltavam à
porta a solicitar calendários e esferográficos. eram mesmo habituais. cheguei
até a reconhecê-los – bem sei que isto pode parecer um pouco antiquado. para os
mais novos será mesmo difícil perceber. mas era normal ter na nossa carteira um
destes pequenos calendários. e uma mini-lista de contactos telefónicos – quem
não tivesse mostrava que a sua vida não tinha nada de interessante para
registar ou ninguém relevante com quem falar. e havia muita gente que não tinha
telefone em casa. sem luz elétrica. sem saneamento básico. sem água canalizada.
eram tempos difíceis – os pobres eram mesmo pobres. e os recursos analógicos
pouco acessíveis ao comum trabalhador – a televisão a cores em portugal foi inaugurada
a 7 de março de 1980. com a transmissão do festival da canção desse ano. e
lembro-me perfeitamente de o meu pai chegar a casa com uma televisão a cores –
foi uma noite em grande – as cores saltavam do ecrã como se a sala tivesse
aberto uma janela para outro mundo – não saímos do pé da TV – a luz pintava-nos
a pele e até o silêncio parecia ter outra cor – tínhamos agora a verdadeira
caixa mágica em casa – e recordo-me bem: nesse dia. creio. que nenhum dos meus
amigos próximos teve a mesma sorte. o dinheiro era raro e valioso – mas
voltando aos brindes. passavam pela empresa uns quantos sujeitos. alguns bem
maduros e chefes de família a pedirem calendários de bolso. dizendo apenas que
eram colecionadores – eu achava aquilo inacreditável. e interrogava-me: o que
leva homens feitos a andar de porta em porta em busca de calendários? nunca
encontrei uma resposta clara para os compreender. via-os como adultos presos ao
mundo do peter pan. ou. talvez. vítimas de um curto-circuito na massa
encefálica – mas. agora. passados tantas décadas. envelhecido e depois de muito
ter aprendido com o tempo. finalmente. compreendo o que os movia – arrogância
da juventude é um mal que tende a passar com o envelhecimento – tal como eu
escrevo crónicas quase todos os dias. poemas apenas para espairecer. esta arte.
mesmo sendo rara. faz de mim um desses colecionadores dos calendários – guardo
frases como quem guarda um calendário com um erro de impressão – raro e inútil
para muitos – mas para mim um tesouro – de página em página mergulho nos
dicionários. antigamente de papel. agora digitais. a suplicar por palavras para
a minha coleção de crónicas – e assim capitulei. porque. tal como eles. também a
minha coleção tem pouco valor. e mais uma vez. sendo cada vez mais parecido com
esses adultos de quem eu troçava. sigo diariamente a implorar mais – mantenho a
crença. que o importante não é o valor da coleção. mas o esforço que vamos
repetindo todos os dias para que a nossa coleção fique mais completa – hoje.
depois de várias décadas. talvez aí uns trinta. já não avalio o caminho alheio.
e como diz mia couto. cada ser humano é uma raça. e eu acrescento. com o seu
caminho. único. com a sua verdade. e sem que ninguém tenha o direito de a
questionar – não gosto de envelhecer. nunca gostei. nem sei se alguém gosta. mas
às vezes sinto-me feliz por ter envelhecido o suficiente para me reconhecer como
um ser mais inteiro – cada um tem os seus sapatos – e o caminho que percorre
pertence apenas a eles – tal como aqueles homens feitos a pedir calendários –
hoje percebo que não pediam datas – pediam um pedaço de si mesmos para guardar
no bolso