acordei
traga nos olhos um sonho
uma flor
colheste-a
[para a matar?]
amor?
bem sei
é um sonho
acordei sobressaltado – puxei-me para cima
dos quadris e sentei-me no topo da cama. virei-me para sul fugindo do mau
olhado. o norte traz sempre ventos frios e húmidos – há uma janela quase
quadrada que me dissipa a solidão. é lá que ponho os olhos a sossegar – lá
fora. nos socalcos do olhar. mesmo ao junto ao beiral. já há gente a correr
atrás da vida – pego num dente de alho e penduro-o ao pescoço. talvez precise de
proteção contra os demónios. não tenho medo das suas crueldades. mas irritam-me
contra absurdo que nem sempre compreendo – pressinto dentro de mim umas
cogitações. querem ganhar forma. flutuando no espaço entre o que vejo e o que
penso – são como ondas nesta cabeça: ora ourada. ora torta. ora inclinada para
a loucura – são ideias como barcos à deriva oceano. sobem. descem. mas sempre
ao correr de ventos que ninguém sabe onde nasceram – neste mar sem fim. há
peixes. peixinhos e peixões que se alimentam deste emaranhado de ideias. nadam
como se tudo fosse águas calmas. tranquilas. águas sem predadores ou mesmo sem
leões marinhos – nem sei se são estúpidos ou arrogantes. talvez as duas coisas
– habituaram-se a refúgios seguros que tenho por detrás dos olhos – sempre que
os fecho. nada mais é capaz de perigar dentro deste oceano de pensamentos
loucos – há profundezas que desconheço completamente – é nestas alturas que
sinto a morte nos dentes. fico com medo. vejo tanta coisa estranha. e nomes que
chamam por mim. ruídos que me são familiares – certo dia. até ouvi a campainha
da escola. aquela que me fazia correr à procura da vida – nestas memórias.
meias loucas. permanece a imagem de um sargaceiro vestido de fato amarelo.
trauteia umas quantas canções de sereias que já morreram – eram do tempo de
ulisses. meias mulheres. meias feiticeiras. das profundezas dos mares. faziam
sonhar homens destemidos. mesmo aqueles que nunca foram embalados e amamentados
por peitos secos de amor – coitado! esqueceu-se que está com água até à cintura
e a maré continua a subir – as algas que em tempos eram abundantes são agora
meia dúzia de ideias desprendidas de um cérebro em decomposição – talvez seja
melhor içar a bandeira vermelha. talvez assim volte a subir às dunas onde
costuma descansar o corpo coberto de sal – também ele quando fecha os olhos
consegue ver as gaivotas a bicar as incongruências da imaginação – um dia
morrem os dois. e nem as ideias com guelras sobreviverão. morrerão sentadas no
areal da praia a chorar a morte do corpo
passei
pé ante pé.
o giz
no quadro negro
tremeu.
sabe?
sabe de mim coisas.
pequenas e banais
anormais para quem passa
tremeu
e os cegos?
[alguém pensou neles?]
esses. sim
os cegos sem olhos
leem o mundo com as mãos
roubam palavras
com a mente
ah. se fossem só palavras!
tremeu
mas o giz
o giz
nunca mais o vi
não sei se estou triste
estou
por agora. aqui
uma parte de mim descansa na mão
os olhos perdidos na chuva
os pés dançam na lua
lá longe
amália trauteia saudade
é domingo
e eu todo em silêncio