.................................................................................não tirem o vento às gaivotas

15/10/2011

instantes à sombra da luz





j. rafael pintos lopez




olho

submeto-me ao dia de sol

a esplanada toma a cidade

óculos ray-ban

perna cruzada

costas no chão

onde vivem todas as dores

pela frente

o sol e o “garçon”

reclamo atenção aos dois

pssssssssss

um café curto como o raio

de luz

o dia já vai longo

olho

os que não me olham

estamos todos ao mesmo

sol

finalmente o pedido

atiro-me ao café

preciso de um excitante

cafeína

com adoçante

tenho medo da diabetes

de seguida um raio de sol

este é meu. escolhi-o  

pelo sorriso

pela luz

é vida

olho

nestes dias só sei olhar

estou fora do corpo

da roupa

da intelectualidade

dos óculos graduados

há quem pense por aqui

livros abertos

jornais enormes

revistas cor-de-rosa

todos menos eu

a diferença

mais uma vez marginalizo-me

não sei ler com o sol

os raios queimam palavras

olho

não faço nada

sinto umas dores

vivem por detrás

às costas do que vejo

é a vida

olho

para a frente

vento ameno

olhos frágeis

ao tempo

à idade

à cidade

para onde caem os sonhos  

há sol em qualquer canto

nos hospitais. nos asilos. nos olhares

há sol onde há medo e morte

é a vida

olho

cimento negro desbotado

irritado

o cão matou o marido por ciúme

crime passional 

dizem os jornais diários

gente que cuida do que vê

correm carros

correm pessoas

correm cafés

só mendigos permanecem fieis a si mesmo

olho

é a vida

olho

é verão

corre o “garçon”

corre o copo

com água pelas bordas

mais uma  

e é o fim da gota

mas é de equilíbrios o “garçon”

equilibra o copo

o sorriso

no ouvido

o francês com sotaque

da porta da casa:

“un café très rapide”

de seguida o lisboeta:

“uma bica curta se faz favor”

está com pressa

diz a boca

no olhar

no gesto

o suor

é a vida

e os olhos

dos clientes extasiados

seguram o copo como se fosse o mundo

talvez seja

afinal somos feitos de água

e da água não há medos

só quando os sorrisos se afogam

no tempo

no próximo mês

depois das férias

perdem-se de todos os raios de sol

e há tantos pelas ruas

perdidos no calor

abandonam-nos

partem para “vacances”

é a vida

olho

e os candeeiros estáticos

agarrados às placas de trânsito

sentidos obrigatórios

obrigações impostas

rotundas que não os deixam circular

e o polícia vestido de pistola

acena com a mão para dizer:

“mais rápido”

mas estamos de férias

o país está de férias

as matrículas amarelas estão de férias

temos que andar ligeiros

é a vida

olho

o sol cai

a água do copo não

cai a cidade

não cai o “garçon”

caem os óculos ray-ban

não caem os olhos leitores

cai o descanso

não cai a vida

ergo as costas

desdobro as pernas

levanto o corpo

olho a cidade

morta. escura

escura

vivos só eu e o "garçon"

tudo o resto fugiu

do escuro ou de medo

aproxima-se uma nuvem

talvez chova

e eu sem guarda-chuva

talvez fique aqui para amanhã

a cidade voltará com o sol

e o “garçon” também

 


11/10/2011

vou começar um grito com: era uma vez




                                                             gottfried helnwein

 


sem saber o que trazia dentro da pele. nasci – com a primeira palmada. o primeiro grito. de vida. arreliei-me – o peito encheu. o corpo inchou e. em protesto. gritei – gritei alto – foi aí que aprendi a gritar. não a chorar. a gritar – grito por tudo e por nada. de tanto gritar. já ninguém distingue os meus gritos de revolta – noite. sempre noite – vou criar um novo grito para matar os silêncios que nunca acabam – vou começar um grito com: era uma vez – ter um grito com história. um príncipe encantado. montado num cavalo branco. com asas de gaivota. apaixonado encontra a princesa mais bela de todo o universo. mais bela que a branca de neve. e os gritos altos nascerão ainda mais dentro da pele. quebrando todos os sapatos de vidro. todas as abóboras-carruagens encantadas. e as ratazanas. agora homens mentirosos. que inventam finais felizes num mundo intolerante - gritos sem som – malditos ruídos silenciosos – quero um grito apocalíptico. um grito que faça estalar todos os tímpanos da terra. quero um grito que envenene todas as maçãs podres – grito. tudo o que ninguém ouve. grito até que a boca. os lábios. a língua. e as cordas vocais se disformem. rebolo. entrelaço os pés pelas mãos. arranho. arranco os cabelos. os ouvidos. o cérebro. o coração. e por fim os pulmões. para tirar a respiração ao próprio ar – grito pelo castigo que deus me deu: saber-me – sempre soube – um dia. quando cortar os pulsos. os gritos serão sangue aos pés de todos os surdos  



10/10/2011

nada. nadas. ninguém



                                                      mário cesariny


alguém me dá uma ajuda a encontrar o meu nada - isto que me está a acontecer não é nada bom - há nadas por tudo quanto é nada e não consigo reconhecer o meu – talvez esteja por aí misturado com os vossos nadas 



04/10/2011

nos ouvidos a faca




lucian freud


foto: em cima de um banco de pedra a faca sangra. ao seu lado a língua jaz - reconheci a faca. usava-a sempre que não podia falar. com esta cortava a língua junto às cordas vocais. guardando-a depois no bolso da conversa de surdos – anémico pela repetição constante dos sons fónicos. caía em silêncio – assassinado o ruído. entorpecia  o tempo até que o sangue estancasse a morte – ali ficava. adormecido pelas ninfas da morte. ouvia os cânticos da vida dos felizes. refletidos na lâmina. polida e brilhante. projetava imagens de gente que nunca cheguei a conhecer – o melhor era fingir que já não estava vivo. enganar o chamamento da morte por mais um dia. levar os sons a uma nova vida. dobrar o cabo das tormentas no fio da lâmina – as pestanas apodreceram. caíram perdidas no desejo de não ter mais surdos a meu lado – só eu sei que ainda não estou morto. só meus ouvidos morreram entre amigos – eram exclusivos estes amigos. eram meus: dizia a faca. muitos. chegados de todos os lados – sou apenas um. quase morto. sem olhos. a um pequeno nada de cegar – aninho-me. deixo o corpo entrar dentro do meu outro corpo. protejo-me – para trás ficavam as mãos amarradas à cabeça – os olhos quase mortos anunciam outras mortes à gargalhada – todos estaremos mortos. mais cedo ou mais tarde – enterrado entre o braço e o antebraço. a vergonha de ver o que nunca devia ter visto – apontei o dedo indicador para dentro de mim: culpado – não havia piedade naqueles corpos. vaidosos. arrogantes. pretensiosos. presunçosos. elitistas. racistas e anormais de profissão – por fim parava o sangue com um garrote feito de coisas que ouvia. sem valor. nas veias deixava de circular tudo o que era revolta. suspendia a respiração. enroscava-me na posição fetal e hibernava até a memória esquecer a existência dos pequenos nadas – ali ficava. dia após dia – e a primavera chegou com palavras