.................................................................................não tirem o vento às gaivotas

30/04/2013

ai de abril que chegou o maio



sam jinks



ai. ai de terror. de pânico. de medo. ai de cerrar os olhos e fingir que não vejo o que vejo

ai. ai de bandido. de leproso. de excluído. de rejeitado. ai de saber hoje o que não sabia ontem

ai. ai de desânimo. de desistência. de desemprego. de fome. ai de não compreender o que me sai da boca para fora

ai. ai. ai… que é feito da minha fé? ai. ai… era do tamanho do dedo indicador  

ai. ai de silêncio. de descanso. de paragem. de pausa. de intervalo. ai de quem era e não volta a ser  

ai. ai de esgotado. de cansado. de louco. de raiva. ai de um sinal que é cruz  

ai. ai de adeus. de saudade. de suicídio. de covarde. de perdão. ai de quem parte para nunca mais voltar  

ai. ai cada palavra uma orelha. uma opinião. uma sentença. uma prisão. um abutre. e nunca sei onde chego

ai. ai. ai… que é feito da minha fé? ai. ai… era do tamanho do dedo indicador

ai. ai de solidão. de aperto. de miséria. de desgraça. ai da culpa que morre solteira quando há uma aparadeira

ai. ai de todos os ais.  de grito. de corda. de veneno. de guilhotina. e corta. e corta. e toda a seara morta

ai. ai. de balança. de justiça. de causa. de equidade. ai da espada que mutila a razão do pensamento

ai. ai. de religião. de terço. de salvação. ai de um deus surdo que não escuta a oração

ai. ai. ai… que é feito da minha fé? ai. ai… era do tamanho do dedo indicador

ai. ai de ânsia. de agonia. de pandemia. ai de aflição. ai de quem já não  acredita na multiplicação do pão

ai. ai de morte. de morte sem salvação… ai. um corpo sem fé é um corpo sem medo da morte

 

 tributo a mário viegas – cantigas dos ais de armindo mendes de carvalho



26/04/2013

o grito - declamado pela voz da minha vida







dizem por aí
que se diz muito em poucas palavras
às vezes acredito
penso que sou poeta
iludo-me
e quero acreditar
que sou fenomenal
único
e mesmo sem falar
basta-me um gesto
para ser um génio do amor
translúcido
penso eu.
então digo-me:
é verdade
não escrevas
não fales
sorri apenas
alguém acreditará que és especial.

 
mas depois
já nu
de tanto meditar
escolho um mundo:
redondo
azul
com mares
com alma. sol e sal
cheio de gente como eu
aqueles que são poetas só às vezes
esfrego os olhos
e vejo
lá no fundo
onde a luz é escassa
e as sombras são vida
o choro
esse…
que nunca se ouve
é onde os poetas de verdade se tornam homens
onde nascem as dores
as desilusões
as emoções
as perdas
as saudades
as pessoas perdidas
os tempos passados
ou mesmo um grande esforço
para se ser aquilo que nunca se será
e aí…
sinto a falta das palavras.

 
revejo os sons
do que poderiam ser palavras faladas
mas afinal são vaidades
de apenas terem tempo
para o ego


descubro então
que afinal
os poetas nada dizem
eles
dizem que dizem
porque escrevem
mas não transpiram
não ofegam
não sorriem
não tocam
não negam
não gemem
não olham
são papel…

 
mas eu
homem deste mundo
redondo
azul
com mares
com alma. sol e sal
cheio de gente como eu
esgotado para todos estes poetas
digo-lhes:
digam-me na cara
nos olhos
nesta alma que chora
nesta vida que também é vossa
digam-me
apenas mais que uma palavra
mesmo que seja
gosto de ti


mas não
não…
desculpem
não chega
eu quero mais
quero que falem
de vocês
de mim
do vizinho
do irmão
do vosso amigo
do meu amigo
do mundo
do vosso mundo
quero-vos sentados
quero-vos ao meu lado
quero esse vosso olhar
mesmo feio
ou bonito
não interessa
só quero que não escrevam
quero que falem
não se calem
falem
sejam poetas de verdade

ainda há tanto para te dizer. muito mais do que duas palavras. muito mais do que gosto de ti - gosto de estar no teu mundo


25/04/2013

abril. há amigos à tua espera nesta esquina do teu povo



frida kahlo

estamos a fechar o ventre da esperança – ouvem-se gritos inocentes e o céu embrulhado numa bola de fogo cega – há morte de gente boa. há jardins a secar. há medo. há mulheres com medo. há homens com medo. há povo com medo. o meu povo está com medo dos vampiros – o mundo já não fica grávido. não há primaveras. não há flores a nascer. não há cravos vermelhos – renasce. zeca. renasce com a tua voz. há amigos à tua espera nesta esquina do teu povo 



23/04/2013

a morte das flores


keukenhof - holanda
foto do autor


equidade – como se previa. depois da morte dos cravos. das magnólias. das estrelícias. das margaridas e dos malmequeres a morte chegou à banca das floristas – e o mundo a mirrar 


22/04/2013

daniel faria - ando um pouco acima do chão




daniel faria



Ando um pouco acima do chão
Nesse lugar onde costumam ser atingidos
Os pássaros
Um pouco acima dos pássaros
No lugar onde costumam inclinar-se
Para o voo

Tenho medo do peso morto
Porque é um ninho desfeito

Estou ligeiramente acima do que morre
Nessa encosta onde a palavra é como pão
Um pouco na palma da mão que divide
E não separo como o silêncio em meio do que escrevo

Ando ligeiro acima do que digo
E verto o sangue para dentro das palavras
Ando um pouco acima da transfusão do poema


Ando humildemente nos arredores do verbo
Passageiro num degrau invisível sobre a terra
Nesse lugar das árvores com fruto e das árvores
No meio dos incêndios
Estou um pouco no interior do que arde
Apagando-me devagar e tendo sede
Porque ando acima da força a saciar quem vive
E esmago o coração para o que desce sobre mim
E bebe



19/04/2013

sol


francisca bayardo


vamos todos rezar um credo a esta alma invernal – o inverno chegou ao fim. morto – tenho esperança. mantenho sempre esperança no que chega de novo



18/04/2013

bastou um abril... para encher o cantil de sede



vânia lopez


o abandono do céu no dobrar de uma gaivota, é música, para de joelhos rezar o silencio. nunca houve tanto silencio semeado com os dedos das mãos juntas. a hora se faz mais bonita nos momentos que testam a alma, sequestram os olhos no último limite da emoção, uma lamparina estremece. e de repente a gaivota some em queda livre, a música corre solta pelos jardins enluarando meu interior. nas pinceladas, o impacto. e a gente... até esquece-se de morrer.


para um amigo


respondi:

ouço – bach. ave maria – e questiono-me se o tempo é igual para todos – sei tão pouco sobre mim. sei tão pouco do mundo – abril. abril – cinquenta e um anos. e só me lembro dos invernos e desta dor nas mãos por não conseguir escrever o que sinto – sinto – sinto tantas coisas na carne e não sei se são minhas por amor ou fruto de doença maligna – restam-me as gaivotas e o vento


obrigado vânia. obrigado por estares sempre aqui



16/04/2013

abril. doente


james ensor

depois de uma análise cuidada aos exames radiológicos o médico. com um ar sério e inquieto. informou-me: essa falta de ar que lhe está a tirar o prazer de viver é provocada por um “linfoma-troikiano”. afeta não só o seu sistema imunológico. mas também os que partilham de perto a sua companhia. esta nova doença. ainda sem tratamento. é também conhecida por “necrose aguda” capitalista – Infelizmente. as notícias não são boas para si. a doença está descontrolada as ramificações espalharam-se pelo corpo. danificando gravemente o funcionamento normal dos principais órgãos da república – a solução. na minha opinião. é extirpá-lo integralmente – deve saber que esta intervenção cirúrgica é bastante melindrosa e perigosa – bem sei que não será a cura total. mas aliviará significativamente esse mal-estar generalizado. aumentando consideravelmente a sua qualidade de vida – mais do que isso. acredito piamente que. com esta abordagem global. mais cedo ou mais tarde. conseguiremos encontrar a solução definitiva para esta aflição. erradicaremos para sempre esta monstruosidade da superfície da terra – não ficaria de bem comigo se não o alertasse sinceramente para a possibilidade de existirem sérios riscos de recidivas complicadas – há imensos imponderáveis neste tipo de intervenção. ainda não é possível avaliar todos. o risco de uma septicemia generalizada é bem real – infelizmente. a ciência dos homens bons  ainda não encontrou solução para derrotar de vez os banqueiros. políticos ao serviço do capital selvagem. administradores de grandes empresas. multinacionais sem escrúpulos. entre outros – é verdade que o cancro do homem ganancioso ainda ganha terreno. no entanto. acredito que em breve a revolução que fará nascer um novo mundo. o mundo dos homens justos – até à vitória final 


12/04/2013

sinto. abril




lucian freud


 
o céu caiu no mar – sinto – o vento veste agora uma “fininha melancolia” que não sei descrever – talvez este vento estranho traga dentro de si a partida dos dias pequenos. dos corpos cansados da luz tímida. dos agasalhos. ou quem sabe um anjo arrependido por ter entregue a alma ao diabo – não sei. não sei mesmo nada. agora só sei o que vejo com estes olhos escancarados à espera do que der e vier – vejo a boca acorrentada a um naco de pão. o corpo a tombar incerteza e uma deusa inútil com mil mãos. mora num mundo que não conheço. não sei se as usa para dar trabalho ou roubar a pouca fé capaz de ainda de me segurar a carne aos ossos – não há céu. não há estrelas. não há nuvens. não há nada que faça acreditar os homens neste tempo maldito. no seu lugar um vazio-nada que as mãos não sabem escrever. nada de nada – sinto – há um novo tempo. um novo escuro-tempo dentro de um corpo velho – sem céu não há noite. e sem noite não há estrelas. os fantasmas são agora de carne em putrefação – bate o relógio. bate tempo. bate sem parar. bate caminho. desequilibrado. desengonçado. desgovernado. um dia atrasa. outro adianta. e a corda presa a um peso de ferro envelhecido pelo bater sem parar – bate. bate. bate por bater. bate para não estar parado – marcha o tempo em guerra contra soldados de papel. e os dedos apontam palavras amarguradas para gente que não sabe o que é partilhar – e os homens bons morrem maus. e os filhos renegam o pai. e o cão sem dono. e os deuses sem leis naturais e o que era verde esperança é agora terra queimada – não haverá sobreviventes o tempo está a mudar e ao vento norte não resistirá – para trás nada. nada. só memórias sem valor para a história – há tanto silêncio no tempo que fica para trás – sinto – os olhos cerrados. as mãos esmagadas. os ouvidos apertados. o sol a pique e a sombra a rir do futuro. – o tempo-ladrão saqueia para sempre as recordações de um corpo que nunca estimei – já não há dia nem noite. há tempo. vento. apenas tempo-vento num corpo apeado de tudo. vazio – sinto – sempre gostei de sonhar. sonho para criar verdade á vida que escolhi – não sei se sonho muito ou pouco. não sei mesmo. sei que sonho porque acredito que há sempre uma boa razão para viver a vida com sonhos-paixão – sinto – sonho porque necessito de dar sentido à vida que escolhi. sonho para que a linhagem saiba sonhar. sonho porque os meus antepassados também sonharam – sinto – sonho para que os sonhos saibam que existo. sonho para explicar o porquê de ainda estar vivo – não há homem sem sonho. não há céu sem gente que sonhe – sinto – sonhar é fazer caminho. de tanto caminhar fui perdendo os pés. depois perdi as pernas. e agora o tronco arrasta-se pelo chão que levantei – não há homens sem esperança – sinto. sinto as gaivotas no ar. o vento a empurrar o corpo para baixo. e o ar a entrar aos soluços sufoca a vida com coisas cravadas entre a boca e um tempo de esperança – não há vento que me carregue para fora desta coisa maldita que cresceu comigo. sina – entre o tudo e o nada está um mundo que deixei de querer ver – mas sei que há em algures deste mundo um pedaço de terra marcada a cinza da minha carne – sinto  



11/04/2013

abril. mentiras mil



eugène delacroix


tenho o corpo preso entre a alegoria da caverna de platão e as teorias económicas de karl marx – revolução. marchar. e as mãos no ar



09/04/2013