escrevo num
quase definido. um quase texto – percebi que o tempo
apesar de malévolo levou-me ao refinamento do supérfluo – escrevo – avalio o
tempo ao segundo de um quase – tenho quase a certeza de que vou acabar este
texto um dia – este quase não tem definição. talvez previsão. talvez adivinhação.
talvez ilusão. talvez desilusão. talvez alucinação. talvez um jogo de xadrez
onde o xeque à vida é diário e o mate é uma certeza absoluta – xeque-mate. e o
que há para fazer fica para sempre parado no quase – quase realizei aquele
sonho. quase – não sei explicar o quase – passei a vida encavalitado em muitos quase[s]
e agora resta-me quase nada
– sartre trata o nada em oposição
ao ser –
aceitamos a vida com uma palmada
no rabo. um biberão. o primeiro passo. o primeiro dia de escola e depois. de
repente. é como se tudo acontecesse em vinte e quatro horas – existo cunhado por
um nome. um número de existência e tudo se resume a uma impressão digital.
única. dizem os entendidos – pelo batismo. sou de um outro mundo. crente.
piedoso. justo. vigiado por um deus que está em todo o lado – a vida eterna é prometida
para lá da minha compreensão – um choro. uma concha. e água na cabeça iluminada
por uma luz que nunca iluminou coisa nenhuma – quase cheguei a acreditar que os
santos um dia me ouviriam – nunca me deram
importância. nem mesmo quando lhes prometi levar ao seu dono o meu peso em cera
pura – bastava que me tirassem este quase das mãos. bastava. para o mundo
sensível sou um pedaço de papel. existo em livros enormes de letras douradas. capa
rija. guardado por funcionários públicos indiferentes ao serviço de um estado também
indiferente – vivo ali até que o bicho da traça se alimente do meu número –
esqueço o nome. somos todos números e resido na página cento e cinquenta do ano
da santíssima trindade – sou filho de um ano – quase era um ano bom se não
fosse aquela tromba-d'água – ceifou a flor da árvore e o fruto apodreceu voltado
para um raio de luz vagaroso – quase lhe acontecia vida – não aconteceu. chegou
tarde. quase chegava a tempo. mas o céu escuro anunciava dúvidas e depois. sem
aviso. apareceram aquelas pedras enormes
de granizo –
– uma fotocópia por favor. frente
e verso –
no tempo uma reta sem fim. agarro-me
a uma equação de resultado infinito: quase era imortal aos vinte. quase era
imortal aos trinta e aos quarenta o corpo deixa de fazer somatórios e afinal
tudo se resume a resto zero – a fumarola acesa e a missa de corpo presente
agendada. falta apenas acertar a hora com os convidados – quem disse que as
retas não têm princípio nem fim? a força gravitacional não admite corpos
suspensos no ar por muito tempo – o centro da terra é humano. e o eixo
imaginário afinal existe. quase perpendicular a uma quase tangente. roda numa
espiral de morte anunciada e tudo se resume a tempo
– galileu afirmou que o movimento
só tem sentido quando comparado com outro ponto de referência –
não tenho ponto de referência. tudo
roda com o desinteresse do tempo pelo que acontece. o tempo consome-se em
voltas a um eixo que roda unicamente sobre si – quase não sou – quase saía a cor
branca. saiu vermelho vivo. e o meu quase preso aos caprichos de um jogo de
sorte ou azar – sorte. azar. sorte. azar. sorte e a roda a rodar – azar. quase fui
escritor – os polos iguais repelem-se. não deixam juntar as letras com perícia para
uma quase lucidez da arte de bem escrever –
– tudo é uma roleta de casino.
vermelho ou preto. par ou ímpar –
e a demência ganha tempo para
tomar de vez o corpo e tudo amarrotado dentro do pensamento – páginas de mim
agoniam numa quase morte no caixote do lixo – tudo morre. até a minha quase vida
feita em papel – morte gritam as palavras. morte gritam os verbos no gerúndio.
e o passado a rir distrai o futuro com um quase ser feliz – quem sabe. um dia.
tens o tempo dos homens justos numa árvore plantada na página dos fidalgos da
casa mourisca. e verás que os negrões de vilar dos corvos nunca foram assolados
por tragédias. quase eram. mas não foram – há um tempo para os homens que sabem
escrever. e um quase tempo para os outros – nasci e morri dentro de um quase.
quase fui afortunado. quase sabia ler. quase escrevia a frase mais bonita de
sempre. quase guardei as pessoas de que gosto para sempre. quase a vida foi
justa comigo. quase já não tenho medo. quase tudo aconteceu como imaginei.
quase não me arrependo de nada – quase –
– "Em todos os homens a consciência tem
só uma maneira de ser. Reprova sempre o mal, aponta sempre a culpa."
[júlio dinis] –
aprendi a contar o tempo de uma
forma estranha. não reconheço os dias. sei que aparecem pelo nascer do sol –
todos os dias ouço a chegada das manhãs – trazem penduradas ao pescoço umas quantas
estrelas famosas – todas mortas. digo que estão mortas. quer dizer. quase
mortas. soletram com dificuldade o seu nome – fico com a ideia de que o
sussurram para não serem enterradas em valas comuns –
– no fim da vida. as estrelas
guardam dentro si matéria degenerada –
todas as estrelas querem
pertencer a uma constelação e assim adquirir por direito próprio um nome na
lápide: ursa maior. nasceu e morreu para dar quase dimensão à arte –
cassiopeia. nasceu e morreu musa do quase surrealismo – ursa menor. nasceu e
morreu para dar norte a todos os quase homens errantes – pegasus nasceu e
morreu para dar asas à quase imaginação – hércules. nasceu e morreu para dar
quase força aos imperfeitos – cruz. nasceu e morreu para fazer quase perto o
longe –
– cinquenta –
ano a ano risco no calendário um
traço de trezentos e sessenta e cinco dias – já só o faço uma vez por ano.
tenho medo de ouvir dizer: quase chegava ao novo ano – não sei o que há do
outro lado deste quase