22/02/2014
retalhos – número de série 27012014s(r)ego08
21/02/2014
para uma amiga com áfricas na língua
com
que então. a menina anda metida nas aftas. a vida da treta é dolorosa para quem.
como nós. gosta de dar à língua a qualquer custo – escutamos então o mundo em
silêncio – mas não desesperes. isso passa rápido e logo estarás de volta à
tagarelice – quando era pequeno. dizia que tinha “áfricas” na boca. talvez
venha daí o meu primeiro passo em direção ao continente africano – adoro áfrica
e o seu povo. o “selvagem”. o “virgem”. o “puro”. o das savanas. das florestas.
dos rios. onde pirogas esculpidas como lanças se deslizam como anzóis – gosto
das suas mulheres de seios nus. sentadas num almofariz de pedra gigante. catam as
cabeças da criançada. presas num tempo sem números – nesta terra. o dia acaba
com as árvores a engolir o céu. como se fossem feijoeiros mágicos. devorando um
sol que nunca viu o mar. e os peixes cobrem-se de rugidos ferozes.
aterrorizando o escuro. e o silêncio é quebrado pela fogueira. a dançar rezas
de um feiticeiro amamentado pelo leite de hiena – hoje. quero acreditar num
deus que fez o mundo em sete dias. só hoje – estou a falar de homens bons. sem
pecado. estou a falar de áfrica. do cheiro à terra queimada. da noite às cinco
da tarde. do calor a deslizar pelo corpo em gotas pegajosas onde os mosquitos
se amarram como se fossem aquelas fitas do antigamente que se penduravam nas
portas das casas. dos leões. das gazelas. dos rinocerontes e toda a bicharada
amiga do tarzan – gosto de áfrica. dos
homens que usam uma tanga para tapar o que ninguém quer ver. gosto das velhas.
com as mamas a cair no umbigo. e riem-se da cara de parvo do caixeiro viajante
que lhes quer vender um soutien – lá estou eu a divagar – queria apenas dizer-vos
que uma amiga tinha “áfricas” na língua – mas afinal o que são umas quantas “áfricas”
na ponta da língua. nada. uma mesquinhez. umas minúsculas borbulhas excitadas
com algum condimento mais apurado. afrodisíaco na construção excessiva de
ditongos orais numa necessidade quase orgásmica para poder atingir o prazer
supremo da comunicação – não basta falar com os olhos. não. não basta. e mesmo
que as mãos pulem dos bolsos e se amarrem em abraços aos corpos que nos pedem
socorro por um beijo que lhes diga: gostamo-nos – nenhum beijo substitui a
palavra atirada de uma língua mesmo com aftas – sou louco. dizem – grave mesmo
é se nos aparece um leão entre os dentes. a correr atrás de uma gazela. e uns
quantos canibais. de ossos enrolados no cabelo. com gritos de fome a dizer: os restos
da carne do almoço nos dentes são nossos– lá estou eu novamente a vaguear – a
fantasiar tipo peter pan – por falar nisso. hoje comi peixe ao almoço será
possível ter um canibal sentado no dente do siso. de cana de pesca na mão. a
lançar o anzol para a boca do estômago à procura de uma qualquer lombriga
pré-histórica – não sei. talvez o remédio para estes meus devaneios cerebrais
seja mesmo internar-me numa casa de saúde mental – descansar nas paredes
brancas. curar-me. penso eu – quartos brancos. janelas brancas protegidas por grades
verdes-esperança. paredes brancas. aparadeira branca. escondida numa mesinha de
cabeceira também branca. chinelos
brancos. pijama branco com o bolso bordado a letras douradas: casa de saúde dos
aflitos. fundada em 1790 e inaugurada por sua excelência o marquês de pombal.
columbófilo. dono de vários pombais e outras excentricidades com aves de rapina
– tudo branco. e um homem preso a um colete de forças negro feito por escravos
embarcados na nau catrineta – e lá vem a nau catrineta anónima a navegar nas
paredes do meu hospício. em ângulos de noventa graus. como se o mundo ainda
tivesse um bom fim num dos cantos da minha imaginação – mas não. para a cada
ângulo de visão uma reta com fim noutro ângulo – vejo tudo em ângulos a que não
sei dar nome. são ângulos meus. onde. nas dobras. faço acontecer sonhos
estúpidos em histórias de coragem duvidosa. protegidas por roupagem branca lavada
com omo – com omo. toda a roupa e imaginação fica mais branca do que o branco –
dentro destas casas brancas nenhum homem é culpado de nada. somos mesmo brancos
dentro de olhos pretos – não sei onde estou. perdi-me. sei que estou a escrever
uma resposta a umas quantas “áfricas” na ponta da língua – quem me dera ter na
ponta da língua agora umas respostas para todas as dúvidas brancas com que me
embrulharam à nascença –talvez seja doença. talvez os diabetes em formação de
ataque. excesso de doce. e as espadas empunhadas em gritos aflitos avisam o cérebro
que está para breve o fim da lucidez e finalmente o triunfo do eterno sobre
a vida terrena – no céu os anjos são
brancos. tão brancos que até se confundem com as nuvens e todos os homens são
transparentes. e os poemas a rimar com palavras que nunca foram usadas por
poetas de olhos encovados de dor na procura das palavras certas. é preciso
sobreviver para além do cabo da boa esperança. o fim do mundo – e as andorinhas
brancas fazem ninhos de algodão nas mãos dos que querem escrever e não sabem.
talvez um dia nasça uma capaz de voar para lá do que os homens sabem – não
quero mais ter a cabeça no inferno. quero ir para o céu. para as nuvens que não
vejo desde aquele dia em que me empurraram para o mundo cerebral – não quero
cérebro. um homem sem cérebro não tem maldade e quando não há maldade não há
lombrigas e sem lombrigas não há canibais a pescar e sem canibais não há leões.
nem gazelas e muito menos carne no meio dos dentes e sem dentes não há
mordeduras e as marcas não são nódoas. são beijos loucos nascidos para amar –
eu gosto de amar. amo tudo. até o candeeiro da minha rua que fundiu por viver
ao abandono de gente como eu – um dia. pego num escadote e mudo-lhe a lâmpada –
e depois. quem sabe. me enforque num filamento iluminado de esperança – e agora
vou fazer o jantar. cabrito assado no forno com batata a murro. não gosto de
cabrito. mas apetece-me dar uns murros – o mundo é cego. e eu vivo dentro dele
- // -
Não basta abrir a janela
para ver os campos e o rio.
Não é o bastante não ser cego
para ver as árvores e as flores.
É preciso também não ter filosofia nenhuma.
Com filosofia não há árvores: há ideias apenas.
Há só cada um de nós, como uma cave.
Há só uma janela fechada, e o mundo lá fora;
E um sonho do que se poderia ver se a janela se abrisse,
Que nunca é o que se vê quando se abre a janela.
alberto caeiro
03/02/2014
retalhos – número de série 20012014s(r)ego07
se
pudesse calar este silêncio da noite. talvez me visse à lupa de sherlock holmes
– quem sabe. descobrir-me-ia sentado na cauda da ursa maior