foto - sampaio rego
1.
hoje penso em deus
– confesso-me – cada vez tenho mais dificuldade em pensar no criador – já lá
vai o tempo em que todas as noites. sem esquecimento. lhe devotava um pai nosso
– o tempo passou. muito tempo. tanto que já poucas memórias me restam desse
miúdo devoto – estou a entrar numa nova etapa existencial: olho-me pela vida e
faço o balanço entre o deve e o haver – necessito urgentemente de encontrar um
novo silêncio. olhar para trás sem medo. compreender os chamamentos recentes do
corpo envelhecido. os apelos atuais da alma em questões de fé – o que mudou no
rapazinho imortalizado pela fé para um adulto descrente na eternidade dos céus?
chegou a hora de pesar e contabilizar os meus acertos. e os meus erros – a vida
é uma corrida feita em tempo supersónico onde a meta é sempre alcançada – a
questão é saber de que forma a vamos encontrar – aqui estou perante mim
-- estou certo de que necessitarei de um grande
contrapeso para equilibrar os pratos da balança
a
interrogação que coloco nos dias de hoje não é tanto sobre acreditar ou não
nesse deus do passado. ou nessa eternidade prometida – com os meus cinquenta
anos feitos a dúvida coloca-se de forma diferente – para que serve um deus na
minha idade? – na minha juventude. quando ia à missa do carmo. igreja que
servia os paroquianos da minha freguesia. ouvia o padre carlos dizer: deus está
em todo o lado. deus recompensa a justiça e a fidelidade de cada um. deus é
justo. quem serve a deus de verdade nele descansa
-- ora eu nunca descansei. culpa minha? talvez não
o tenha servido com a fé de um verdadeiro crente
dizia
aquilo com tal convicção que não havia alminha que não acreditasse na palavra do
eclesiástico – este padre era quase tão importante como os santos parados nas
paredes. parados. mas vigilantes. nunca tiravam os olhos dos seus paroquianos. e
ai daquele que ousasse pronunciar o nome de deus em vão – o sr. padre carlos
também não arredava os olhos dos seus fiéis – a igreja repleta. de silêncio
também. e aquelas almas todas inclinadas para o lado de deus: oremos senhor. ámen – todos de joelhos
– um gesto ao de leve da mão do sr. padre e todos os crentes de pé. um exército
de fé incondicional pronto a marchar contra as injustiças satânicas sob o comandado
da omnipresença do senhor – ele estava ali. e está em todo o lado
-- oremos ao senhor pelos jovens da nossa diocese
que sentem o chamamento de jesus
já
não me lembro desse chamamento – o tempo apaga quase tudo. o caminho é agora assente
em recordações a avulso. e a perceção da justiça feita na perspetiva de uma alma
pecadora recauchutada – não tenho medo do que significa morrer em pecado – a equidade
já não é exclusiva do meu deus – agora também eu decido o que está mais certo.
e decido não pelos olhos do senhor. mas pelos meus. alimentados pelo mundo que
consumi – somos tempo. e este muda tudo. principalmente o discernimento entre o
certo. e o errado – a justiça é feita à medida da vida que escolhemos – pavlov
chamou à correlação entre o estímulo incondicionado e a resposta incondicionada
de reflexo condicionado – as crianças reproduzem o comportamento que observam. o
medo também pode ser aprendido – com a idade destruí a teoria e hoje nenhuma
sineta me faz salivar – não tenho medo de julgar contra a vontade de deus
-- o acólito toca a campainha e dá-se o início da
oração eucarística e a consagração do pão e do vinho em corpo e sangue de jesus
cristo.
quem
na minha meninice teria a ousadia de dizer que deus não era justo – ninguém.
nem alma viva. todos temiam a eternidade do inferno – ninguém ousava altear a
voz contra o meu deus. o deus de toda a minha rua. de todo o meu bairro. de
todo o meu país – até a ideologia do estado novo tinha deus como chefe-mor –
salazar mandou publicar: deus. pátria e família. por esta ordem de importância
– ai de quem não acatasse a doutrina. a P.I.D.E. tratava-lhe da religião – e
assim se cumpria a palavra de deus e do ditador – também eu sou agora um
ditador. e a ordem das coisas alterada pela vontade da minha falta de fé em
deus e na pátria. só me resta a família – éramos todos crentes. e o céu a nossa
eternidade – não era fácil questionar ou duvidar uma fé que nascia com a
primeira golfada de ar
-- a hora foi pequenina e graças a deus é
perfeitinho. com a graça do senhor
tudo
era obra do senhor – assim nasci aos olhos de quem me queria bem: perfeitinho –
ai. se me pudessem ver por dentro – mas lá fui andando e vivendo com os olhos cravados
na fé. queria acreditar no meu deus. no deus que sacrificou o seu único filho
para que todos aqueles que nele acreditassem não perecessem. mas tivessem a
vida eterna – a minha vida encurta-se a cada dia. a idade não perdoa – questionar
era pecar e as portas do inferno abertas para uma perpetuidade a arder em
chamas demoníacas – mas toda a criança cresce e com o crescimento do corpo
cresce também as incertezas da fé – com a idade a religião fica cada vez mais
complexa. mais complicada de entender e explicar – deus não quer saber das
nossas incertezas. não dá cavaco a ninguém – tudo o que permanece em mim é o seu
silêncio. como sempre – habituámo-nos – mas sempre acabei por encontrar uma
justificação para a sua mudez – imaginava-o com falta de tempo. ocupado. atarefado.
a correr de um lado para o outro. uma mão aqui. uma criança salva. outra mão
acolá. uma cura milagrosa. e o mar aberto mais uma vez para engolir todos os
males do mundo. enquanto os mandamentos da lei de deus são agora gravados no
céu. onde todos os homens são justos – o mundo perfeito – um sinal nas alturas
divinas a indicar o caminho merecido aos seus seguidores – o homem em plena harmonia
terrena – deus era todo poderoso e o mundo dos homens era justo – a fé estava
por todo lado – na parede do meu quarto um terço enorme. em madeira. protegia-me
de todos os males das trevas. enquanto na mesinha de cabeceira um terço de
nossa senhora de fátima. benzido com água sagrada. guardava-me do medo do
escuro – tantas vezes adormeci amarrado à fé da senhora de fátima – a noite é
sempre tão escura para os inocentes – não havia aposento em minha casa que não
ostentasse um sinal de fé. uma cruz. um azulejo com um dos mandamentos de deus.
um santo contra o mau olhado. e na sala de jantar uma tela enorme com a última
ceia do senhor com judas em destaque – sempre existiram judas no meu mundo – era
aqui que dávamos graças ao senhor por nunca nos ter faltado o pão – o milagre
da multiplicação num lar de crentes agradecidos – vivíamos em estado de graça: fé.
amor. saúde. trabalho. uma mesa feita de fartura. e tudo isto obra de um deus
maior. dono de todas as vontades na terra – pecar era proibitivo para tanta
gentileza divina – se me saía da boca uma palavra mais atrevida logo a minha
mãe me dizia: isso é pecado. nosso senhor não gosta dessa linguagem
-- sábado vais-te confessar para domingo receberes
o senhor sem pecado
ir
ao confesso para libertar o espírito. a alma do pecado. do erro. da desonra. ou
da ignomínia da pior imperfeição do mundo – um palavrão dava direito à passagem
pelo purgatório. e acrescentava:
-- uma alma deve estar sempre limpa. nunca sabemos
quando se cumpre a vontade de deus de nos chamar para o seu reino –
domingo
lá recebia eu o senhor. o padre carlos no topo da igreja. ar seríssimo. tudo ali
era sério. e os crentes todos alinhados. limpos. na roupa também. confessados.
sem um único palavrão. caminhavam passo a passo. solenemente. os olhos no altar
em jeito de misericórdia. e a boca entreaberta em benignidade pronta a receber
o senhor purificador
-- o corpo de cristo: ámen
e
lá vinha eu de cabeça baixa. expurgado de todos os males do mundo. limpo por
dentro e por fora – finalmente puro. renascido para o mundo dos justos e do
perdão – ajoelhava-me e ali ficava dois ou três minutos até que o ritual de
purificação tivesse o tempo suficiente para não ser olhado de soslaio pelos
meus parceiros de fé – nestas coisas da religião tudo tem o seu tempo – cristalino
e lavado de todas as impurezas olhava agora o padre carlos olhos nos olhos –
sentia-me gigantesco e grato com a divindade no corpo. tanta fé e a alma a
inchar de orgulho. com o senhor cada vez mais apertado dentro de mim –
sentia-me diferente. um estado de paz e alegria silenciosa que nunca saberei explicar
– muito menos escrever – finalmente os santos ganhavam vida. olhos largos. sorrisos
abertos. apontavam-me o dedo enquanto os lábios pronunciavam em uníssono: és um
bom menino – afinal os santos não eram apenas figuras de barro – estava em
harmonia com a vontade de deus
-- ide em paz e que o senhor vos acompanhe
neste
dia do senhor todo o cristão veste a sua melhor farpela para entrar na casa de
deus – eu não era diferente – ali estava todo ajanotado. o orgulho da minha
mãe. camisa engomada. sapato polido e um casaco a cobrir todas as imperfeições
do corpo. enquanto o cabelo caía para o lado de deus em perfeita geometria com
a orelha. metade coberta e outra metade pronta a ouvir a pergunta sacramental
da matriarca ao chegar a casa: de que cor era a batina do sr. padre – a minha
mãe tinha que confirmar a minha lealdade aos mandamentos do senhor – ela sabia
que satanás era mestre em desviar os menos devotos do caminho da virtude – os
seus cuidados nunca eram demais para um filho que se quer como exemplo – é
domingo e deus disse: ao sétimo dia descansarás. para que descanse o teu boi e
o teu jumento – não tardava nada estava em casa a almoçar uma belíssima carne
assada enquanto o meu pai descansava fazendo a vontade ao senhor – só a minha
mãe não respeitava a palavra do senhor. era ela que cozinhava – as donas de
casa nessa época tinham uma bula pontifícia para poderem alimentar a família de
pão e amor aos domingos
1ª
parte de 3