2.
hoje
confesso que não há domingo. não há missa. não há
roupa nova e muito menos carne assada. sou quase vegetariano e descobri no
palavrão uma forma de manter o corpo em alerta contra as injustiças – reforço a
pergunta: para que serve um deus na minha idade? para que quero um deus se já
não tenho roupa nova. nem carne assada. nem domingo. nem aqueles sapatos
apertados que por serem de couro só os podia calçar no dia do senhor – volto a
perguntar. para que serve um deus na minha idade? ele existe? algum dia
existiu? se existe que milagre ainda pode realizar num descrente que anseia pela
evaporação crematória – envelhecer é um aborrecimento. um enorme aborrecimento –
quanto mais velho mais dúvidas – sou mesmo um tonto. tanto saber desperdiçado
em boémias inúteis de palavras divinas – reflexões sem fim – já não acredito na
existência deste [meu] deus. um deus sem voz. sem retratos. sem aparições. sem
comprovativo de morada. sem NIF. sem nada a não ser pinturas em capelas sistinas
- - nos dias de hoje. se deus existisse. já um
qualquer paparazzo lhe tinha arrancado uma selfie – tenho a certeza
mas
vou aparentar que aceito a sua existência como certa – hoje estou virado para
este lado criativo. este lado fingido. o lado da indiferença. do faz de conta
de que tudo é divino. e quem sabe. se estiver enganado. a mão de deus talvez mexa
comigo – faço então uso de todos os ensinamentos cristãos. da catequese
assimilada. dar a outra face. do ressuscitar de lázaro. do enxugar os pés da
maria madalena a jesus. das moedas de judas. do ósculo fraternal a fazer
emergir a paz de cristo no coração do homem. do meu também – sou por momentos
um homem renovado na sua fé – estou assim. meio criança. meio adulto – e agora
a saudação da paz do senhor
-- deus que é deus não agrada a todos – recorro a
uma máxima da história para comprovar esta teoria: não se pode agradar a gregos
e troianos simultaneamente
deus
optou por não me agradar a mim – digo eu. conspurcado de pecados – vamos lá
então – imagino-o no seu gabinete rodeado de pilhas de documentos importantes. pessoais.
valiosos. altamente confidenciais – tudo “top secret” – tratados por centenas
de assessores de uma idoneidade inquestionável – estes assessores foram escolhidos
por meio de concurso celestial rigorosíssimo. e com a sua mão direita juraram
sobre a bíblia sagrada defender o catolicismo contra todas as investidas do
demónio – recuperar os crentes perdidos. renovando-lhes a esperança num mundo
eterno – deus é justiça – são estes servos leais que ajudam diariamente deus a criar
um mundo mais justo –
-- tudo dirigido sobre o mais rigoroso olhar de
deus e debaixo de um rígido sigilo – o sigilo é a alma do negócio
acomodado
no seu cadeirão. de óculos na ponta do nariz. despacha relatórios de alta
prioridade e confidencialidade. sem um único sorriso – os problemas do mundo
não lhe dão sossego – já não é aquele deus que me impingiram na catequese. com
ar feliz e sempre rodeado de criancinhas a pularem de alegria e segurança – nem
aquele que me protegia nas noites escuras. e debaixo dos cobertores lhe pedia
proteção contra as sombras demoníacas que cobriam as paredes do meu quarto – não.
infelizmente esse deus já não existe – o mundo tornou-se enorme para um deus
que não fala para ninguém – deus já não consegue chegar a todo o lado – o mundo
cresceu imenso – eu também
-- gosto deste meu lado de criatividade cínico mesmo
que não sirva para nada – sei que não sou nada
deus
também é cínico comigo – todo este cinismo apenas para conter a fuga de crentes
para o mundo do nada – o nada está cada vez maior. incontrolável – nada temo.
nada creio. nada me fará falta depois de morto. nada serei de olhos fechados – o
nada é sempre nada – e lá estou eu novamente no fundo do nada que é como quem
diz no fundo do lixo – o lixo fica sempre por baixo. fica no silêncio das
casas. dos cantos das salas angulares. dos quartos de hóspedes. dos tapetes
persas. dos quadros surrealistas. dos passepartout com retratos a preto e
branco. das gavetas de pau santo. das ruas empedradas. dos cantos da alma onde
os precipícios se tornam eternos – o meu nada é uma espécie de suicídio
assistido – vamos morrendo tão devagar que acabamos por ver partir tudo o que
nos é querido – quando damos conta estamos sem nada. sem nada capaz de nos
fazer morrer de uma só vez – e tudo isto num silêncio lacrimal que por não se
ouvir ninguém sabe que existe – existimos num nada e dentro do nada sangramos
pregados a uma cruz que não sendo a de jesus. é outra que nos implora fé em
alguém que nunca abraçou como um homem – fica então um deus assim como um
presidente da república. cheio de etiqueta. nunca sai do seu palácio e não faz coisa
nenhuma – não faz nada – como o nosso presidente – coisas da democracia que no
reino do céu deve ter outro nome qualquer. já que não me parece que haja
eleições para o ofício de deus – ouço dizer que deus está no céu desde que um
dia se lembrou de criar este pedaço de terra redondo. com mar. sol. sal e
pecados – culpa da pobre eva. coitada
-- raios te partam eva. toda esta chatice por um
orgasmo com o adão – espero que tenha valido a pena
perdoem-me.
mulheres. por este desabafo ingrato e injusto. mas estou cada vez mais certo de
que se não fosse homem seria mulher. e assim jamais seria nada – não acredito
na ressurreição e também não acredito na encarnação – sei que estou vivo porque
entendo o nada. sei escrever nada. dizer nada. desenhar o nada. sei até fazer
um funeral ao nada. mas não tenho quem o leve aos ombros. e sozinho já não sou
capaz – “com o suor do teu rosto comerás o teu nada. até que voltes ao nada.
pois do nada foste formado; porque tu és nada e ao nada da terra retornarás” – que
me perdoem todos aqueles que me abraçam com amor pois não é por falta da sua
presença que eu sou descrente – sou o que sou porque ao nada nunca se pode
acrescentar nada. a não ser matar a memória de um deus que verdadeiramente
nunca existiu a não ser na minha igreja – um dia. cada vez mais próximo. serás
definitivamente um grande mentiroso - sei
2ª parte de 3
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