.................................................................................não tirem o vento às gaivotas

29/04/2016

encómios


foto - sampaio rego
 
  

os elogios são sempre terríveis para quem gosta de escrever – primeiro. fazem soar as campainhas da satisfação. depois. quando o corpo retoma a forma do artesão. fica um ruído que mais não é do que um zumbido escrito nas mãos – o medo de errar transforma-se numa dor crescente. e o trabalho torna-se uma canseira insuportável – a imagem do belo está sempre ligada a cada instante do leitor – encontro-me agora na fase do zumbido persistente 

 

28/04/2016

lembranças



foto - sampaio rego



lembrar não é pecado
evoca-lo não é sofrimento
apenas vemos o passado
lembrando o agrado


lembrar é sentir novamente
amar o perdido
passear nas recordações
rir no coração


lembrar é dar as mãos
passear pelos campos
flutuar nas memórias
viver nas alegrias


lembrar é saber que existiu
aprovar o tempo
ganhar os segundos
valorizar o que temos
 

lembrar é fantasiar
poder chorar em companhia
partilhar o que tememos
com quem queremos


lembrar é eterna recordação
fruto do nascimento
edificado com o crescimento
num espaço que não é nosso


lembrar é uma música nossa
uma melodia de sonhos
uma canção real
um piano de soluços


lembrar é ramo de flores
colhido no campo da primavera
numa manhã de eternidade
num sonho sem fim


lembrar é perdurar o sorriso
é saber que valeu
é escrever poesia
num livro só nosso


lembrar é saber que perdemos
é saber que já tivemos
é ter uma estrela
um destino nosso


lembrar é olhar para dentro
esconder a atenção
disfarçar a dor
dizer adeus ao presente

 

lembrar é olhar para a frente
é subir a montanha
erguer as mãos ao céu
e dizer um olá


lembrar é retribuir
é poder ver, sentir, chorar
agradecer por ter sido eu
sentir-me distinto
memorar para a eternidade
dizer que valeu
dizer até já
até já...
até já.


 

poema dedicado a dois homens muito especiais - meu pai e tio joão evangelista – 31.12.2002


17/04/2016

tudo o que me resta é a memória – 17 de abril de 2016





prefácio de autor

tudo o que me resta é a memória e dentro desta guardo uma vida de incontáveis vidas – sei que não me posso recordar de cada fragmento de tempo. de cada voz. de cada face. de cada sorriso. de cada flor que me ofereceram. ou de cada lágrima perdida em estados de alma que nunca serei capaz de explicar – de manhã sou um. de tarde outro e à noite sou o da manhã. o da tarde e outros tantos que não vivem em nenhuma parte do dia – sei que estou a envelhecer. na alma também. sei que os olhos teimam em ver o óbvio. que o amor é toque. e que as mãos resistem cada vez mais a trazer a dor ao corpo – não se escreve sem dor – faço anos. envelheço. sei. sei. e sei que este saber arde – sei que me rasgo em cada aniversário. sei que corto os pulsos. sei que arranco a língua. e sei que me suicido por cada vela. por cada voto de muitos anos de vida. por cada desejo de que viva o dobro do vivido – sei que cada aniversário me traz a confirmação da falência dos órgãos. da imobilidade. das rugas. dos cabelos brancos. da dependência e da perda de autonomia – a morte também acontece em fascículos – estou a ficar sem tempo para tanta coisa que ainda gostaria de vos entregar. coisas minhas. simplicidades que no vosso sentir podem parecer irrelevantes – mas creiam-me. se hoje vos escrevo é porque amo a vida com todos os seus humanos. todos mesmo. pois a cada um de vós eu devo tudo o que aos vossos olhos sou – hoje é um dia especial. sei-o porque tenho memória e é dentro desta que vos guardo em gratidão – e por isso vos digo: obrigado por partilharem este caminho comigo

 

1.   pretérito

o meu mar – a primeira vez que senti a imensidão do meu mar tinha os meus doze anos – as recordações anteriores não eram do meu mar. eram de um mar de todos: da família. dos amigos de verão. das barracas de pano listado. do homem de branco a gritar “língua da sogra”. do cabo-de-mar. dos chocolates “regina” e de uma areia capaz de guardar para sempre cada amor descalço ali enterrado – no passeio alegre os altifalantes anunciavam uma tristeza que não existia. “o toque de silêncio” era abafado pelas brincadeiras da miudagem. dos castelos de areia. da bola da “nívea”. das caricas. dos búzios. da chegada dos gelados “OLÁ” que se derretiam em mil e um encantos – é disso que se faz a infância – éramos felizes – o sol sucumbia num vagar que só o mar entendia e os barcos no horizonte diziam-nos que o mundo é um ciclo. infinito. imutável. redondo. permanente e inesgotável – as ondas recolhiam-se num silêncio tímido enquanto o vento norte sacudia do areal as últimas toalhas de praia – era hora de voltar para casa – chegava o banho quente e o salitre desfazia-se preso a milhares de grãos de areia polidos pela alegria de quem tinha passado o dia aos mergulhos – a toalha entre as mãos da minha mãe limpava-me de todos os males – o mundo era eu – pela noite a sarronca anunciava mau tempo para os adultos – era hora de ir para a cama. os sonhos das crianças não esperam pela manhã – boa noite papá – chegara o momento de receber de volta o beijo do meu pai que às primeiras horas da manhã partia em silêncio para o trabalho – acercava-se o sono. o silêncio. e as estrelas sussurravam aos anjos para me levarem a alma para a dimensão do faz de conta – nunca mais encontrei esse mundo – ali permanecia eu enroscado nos sonhos e nos agasalhos dos meus pais – a família é um compromisso de afetos – à família acrescentei os amigos e com estes construí a utopia do meu mundo – hoje sei que é o desejo silencioso de todas as crianças do universo – agosto sempre será um mês de saudade e de encontros de mares

 

2.   encontro

final da tarde. sozinho. como sempre gostei de estar – as gaivotas num voo planado sacodem o vento norte em várias direções. enquanto eu. sentado num corpo dorido. descubro pela primeira vez um mar que nunca sonhara meu – ali estávamos os dois: eu e um mar imenso – para mim tão misterioso quanto os mares de vasco da gama – naquele momento. toda a solidão do mundo estava no molhe da póvoa de varzim – foi ali que descobri a infelicidade – tomado pelo vento. ali estava: tranquilo. estático. perdido entre o partir do sol e a chegada de uma noite que nunca mais teve fim – pela primeira vez percebi que a felicidade é o sal da vida. uma pitada a mais e somos amargamente infelizes. uma a menos. e ficamos perdidos para sempre numa infelicidade sem sabor – nunca mais me desliguei do mar. da infelicidade. do vento e da noite – adotei o mar e as gaivotas para me acalmar. e é junto deles que me sinto sempre mais perto da inteireza com que me quis construir – mas mar é mar. ninguém por mais destemido que seja. pode escolher o mar que lhe toca – o meu mar é apenas o meu mar e a mais ninguém interessa o seu estado – no meu mar só eu aprendi a navegar

 

3.   essência

no meu mar haverá sempre um pai. uma mãe. filhos. netos. nora e uma mulher que é maior do que todos os mares que inventei – há uma ua [lurdes] maternal. uma irmã de luz e um irmão de paz – há sobrinhos. sobrinhas. e outras sobrinhas que vi nascer e são sangue do nosso sangue – há cunhadas. cunhados. sogra e um sogro que podia ser meu pai – há amigos que nunca mais regressam e há outros que vivem dentro de mim – há amigos de cá e outros amigos de acolá. e há aqueles que são de cá e de acolá – há amigos especiais que não sabem falar. mas que dizem tudo num único latido – há uma família enorme que vem de tempos e terras que a história não sabe contar. trazendo nos gestos a essência do que melhor há em nós – no meu mar há uma família desde o nascimento até à morte – é no meu “mare nostrum” que um dia encerrarei o meu corpo – e nada levarei comigo além do seu perdão

 

4.   epílogo  

no meu mar há gaivotas de todas as cores e desejos enterrados em ilhas imaginárias – há marujos de camisetas listadas. há piratas bons e piratas com perna de pau – no meu mar há deus. fé. oração. pecado. perdão. ato de contrição e milagres ainda por cumprir – há sonhos grandes. pequenos e sonhos que nunca se tornaram realidade. e realidades que nunca foram sonhadas – no meu mar há peixes apetecíveis. horríveis. ferozes. meigos. contrafeitos. autênticos e outros que por serem bonitos não pertencem a mar nenhum – no meu mar há peixes negros. amarelos. brancos. e também há peixes com cores que não sei explicar – há gaivotas tristes. felizes. assim assim. e há gaivotas que querem partir para terras que nunca vi – no meu mar há peixes como eu e peixes que não são como eu – há peixes miscigenados com amor de outros peixes e peixes que por serem apenas peixes nunca conheceram o amor – no meu mar há peixes grandes a comerem pequenos e pequenos a comerem o que podem para crescer o suficiente e não serem comidos – há peixes esguios. não esguios. redondos e não redondos. quadrados. e outros que ninguém sabe ao certo como são – no meu mar há peixes que nunca tiveram um livro e há livros que nunca foram lidos por não haver um único peixe que o quisesse ler – há ilhas cercadas de sol todo o ano. e ilhas cercadas de coisas inúteis – no meu mar há barcos com gente a olhar os peixes e há gente à procura de um único peixe – há medo. mistério. naus. fantasmas. tesouros e amores enterrados num areal perdido no tempo – no meu mar há canhões. arpões e mosquetes com palavras que. uma vez disparadas. são balas – há lugares de luz e lugares onde as sombras escondem fragmentos de uma juventude que nunca esqueci – há lua cheia. estrelas do mar e de fora dele também. e há ondas gigantes que carregam amigos que já não voltam – no meu mar há uma única varanda voltada a sul e muitas outras a contemplar o norte – há desgosto por coisas que não fiz e também há desgosto por coisas que fiz – no meu mar há homens que nasceram do mar e há homens que um dia o mar levará – neste meu mar sou isto tudo que vos escrevo. mas também sou o que cada um escolher levar de mim – aceitarei o vosso olhar. aceitarei o vosso juízo. aceitarei a vossa pena – peço-vos perdão por tudo que não consegui ser – estou quase de partida. há mares que não sabem esperar

 


12/04/2016

putrefação


foto - sampaio rego



nas palavras
silenciosas
sofro

[...]
putrefaço-me
[...]

e do cheiro pestilento
o corpo reclama
mais dor
por não as declamar

[covarde. digo eu]


08/04/2016

símile


foto - sampaio rego
 

rabisco
afolho as palavras
na armação do tempo
o arval suspira
alinho as sementes ao sol
adubo-as com pequenos reparos
gulosas em minúsculas
é hora do lusco-fusco
entrego-me ao sono

jornaleiro

05/04/2016

o grito


 
voz - maria joão
  
 

dizem por aí
que se diz muito em poucas palavras
às vezes acredito
penso que sou poeta
iludo-me
e quero acreditar
que sou fenomenal
único
e mesmo sem falar
basta-me um gesto
para ser um génio do amor
translúcido
penso eu.
então digo-me:
é verdade
não escrevas
não fales
sorri apenas
alguém acreditará que és especial.

 

mas depois
já nu
de tanto meditar
escolho um mundo:
redondo
azul
com mares
com alma. sol e sal
cheio de gente como eu
aqueles que são poetas só às vezes
esfrego os olhos
e vejo
lá no fundo
onde a luz é escassa
e as sombras são vida
o choro
esse…
que nunca se ouve
é aí onde os poetas de verdade se tornam homens
onde nascem as dores
as desilusões
as emoções
as perdas
as saudades
as pessoas perdidas
os tempos passados
ou mesmo um grande esforço
para se ser aquilo que nunca se será
e aí…
sinto a falta das palavras.

 

revejo os sons
do que poderiam ser palavras faladas
mas afinal são vaidades
de apenas terem tempo
para o ego

 

descubro então
que afinal
os poetas nada dizem
eles
dizem que dizem
porque escrevem
mas não transpiram
não ofegam
não sorriem
não tocam
não negam
não gemem
não olham
são papel…

 

mas eu
homem deste mundo
redondo
azul
com mares
com alma. sol e sal
cheio de gente como eu
esgotado para todos estes poetas
digo-lhes:
digam-me na cara
nos olhos
nesta alma que chora
nesta vida que também é vossa
digam-me
apenas mais que uma palavra
mesmo que seja
gosto de ti

 

mas não
não…
desculpem
não chega
eu quero mais
quero que falem
de vocês
de mim
do vizinho
do irmão
do vosso amigo
do meu amigo
do mundo
do vosso mundo
quero-vos sentados
quero-vos ao meu lado
quero esse vosso olhar
mesmo feio
ou bonito
não interessa
só quero que não escrevam
quero que falem
não se calem
falem
sejam poetas de verdade


 

04/04/2016

autofágico


foto - sampaio rego

escrevo – quem diria que um dia passaria os meus dias a reescrever o passado – aprendi a escrever há tanto tempo – ainda me lembro bem da minha professora primária - dona felismina. era tão bonita - e de um diploma que trouxe para casa - dezassete valores. aprovado – devidamente assinado e autenticado com selo branco escolar – um orgulho de diploma. ainda o guardo – em casa tudo continuou como dantes. os diplomas só tinham valor quando traziam títulos –

- - gostava tanto que fosses dentista - dizia a minha mãe

mas eu queria ser bombeiro. o risco. a vaidade com que enfeitavam as fardas de medalhas. as sirenes. os carros vermelhos. as escadas suspensas. a vozear presa enquanto a esperança se aguentava pendurada às mangueiras aflitas – eram homens bonitos e transportavam com eles uma inesgotável e merecida reverência – eram os soldados dos afetos – o tempo passou – agora sei que. apesar do diploma. nunca aprendi verdadeiramente a escrever. uma mágoa insanável  – nunca cheguei a bombeiro – mas daqui não me resta dor. não se perdeu um grande soldado da paz – estou em guerra comigo desde que nasci – fiquei-me pela arte de juntar letras para me dar a entender. com esforço. resumindo: sou um escritor autofágico. minúsculo – alimento-me de tudo o que é meu para escrever – prolongado assim a morte 



01/04/2016

1º abril


foto - sampaio rego

bem sei que este é o teu dia favorito. não é!?

mas sabes: este não é o meu dia. e para ser o teu teria que ter a tua mentira como verdade

nunca tive