os elogios são sempre terríveis para quem
gosta de escrever – primeiro. fazem soar as campainhas da satisfação. depois. quando
o corpo retoma a forma do artesão. fica um ruído que mais não é do que um
zumbido escrito nas mãos – o medo de errar transforma-se numa dor crescente. e
o trabalho torna-se uma canseira insuportável – a imagem do belo está sempre ligada
a cada instante do leitor – encontro-me agora na fase do zumbido persistente
29/04/2016
encómios
28/04/2016
lembranças
17/04/2016
tudo o que me resta é a memória – 17 de abril de 2016
prefácio de autor
tudo o que me resta é a memória e dentro desta guardo uma vida de incontáveis vidas – sei que não me posso recordar de cada fragmento de tempo. de cada voz. de cada face. de cada sorriso. de cada flor que me ofereceram. ou de cada lágrima perdida em estados de alma que nunca serei capaz de explicar – de manhã sou um. de tarde outro e à noite sou o da manhã. o da tarde e outros tantos que não vivem em nenhuma parte do dia – sei que estou a envelhecer. na alma também. sei que os olhos teimam em ver o óbvio. que o amor é toque. e que as mãos resistem cada vez mais a trazer a dor ao corpo – não se escreve sem dor – faço anos. envelheço. sei. sei. e sei que este saber arde – sei que me rasgo em cada aniversário. sei que corto os pulsos. sei que arranco a língua. e sei que me suicido por cada vela. por cada voto de muitos anos de vida. por cada desejo de que viva o dobro do vivido – sei que cada aniversário me traz a confirmação da falência dos órgãos. da imobilidade. das rugas. dos cabelos brancos. da dependência e da perda de autonomia – a morte também acontece em fascículos – estou a ficar sem tempo para tanta coisa que ainda gostaria de vos entregar. coisas minhas. simplicidades que no vosso sentir podem parecer irrelevantes – mas creiam-me. se hoje vos escrevo é porque amo a vida com todos os seus humanos. todos mesmo. pois a cada um de vós eu devo tudo o que aos vossos olhos sou – hoje é um dia especial. sei-o porque tenho memória e é dentro desta que vos guardo em gratidão – e por isso vos digo: obrigado por partilharem este caminho comigo
1. pretérito
o meu mar – a primeira vez que senti a imensidão do meu mar tinha os meus doze anos – as recordações anteriores não eram do meu mar. eram de um mar de todos: da família. dos amigos de verão. das barracas de pano listado. do homem de branco a gritar “língua da sogra”. do cabo-de-mar. dos chocolates “regina” e de uma areia capaz de guardar para sempre cada amor descalço ali enterrado – no passeio alegre os altifalantes anunciavam uma tristeza que não existia. “o toque de silêncio” era abafado pelas brincadeiras da miudagem. dos castelos de areia. da bola da “nívea”. das caricas. dos búzios. da chegada dos gelados “OLÁ” que se derretiam em mil e um encantos – é disso que se faz a infância – éramos felizes – o sol sucumbia num vagar que só o mar entendia e os barcos no horizonte diziam-nos que o mundo é um ciclo. infinito. imutável. redondo. permanente e inesgotável – as ondas recolhiam-se num silêncio tímido enquanto o vento norte sacudia do areal as últimas toalhas de praia – era hora de voltar para casa – chegava o banho quente e o salitre desfazia-se preso a milhares de grãos de areia polidos pela alegria de quem tinha passado o dia aos mergulhos – a toalha entre as mãos da minha mãe limpava-me de todos os males – o mundo era eu – pela noite a sarronca anunciava mau tempo para os adultos – era hora de ir para a cama. os sonhos das crianças não esperam pela manhã – boa noite papá – chegara o momento de receber de volta o beijo do meu pai que às primeiras horas da manhã partia em silêncio para o trabalho – acercava-se o sono. o silêncio. e as estrelas sussurravam aos anjos para me levarem a alma para a dimensão do faz de conta – nunca mais encontrei esse mundo – ali permanecia eu enroscado nos sonhos e nos agasalhos dos meus pais – a família é um compromisso de afetos – à família acrescentei os amigos e com estes construí a utopia do meu mundo – hoje sei que é o desejo silencioso de todas as crianças do universo – agosto sempre será um mês de saudade e de encontros de mares
2. encontro
final da tarde. sozinho. como sempre gostei de estar – as gaivotas num voo planado sacodem o vento norte em várias direções. enquanto eu. sentado num corpo dorido. descubro pela primeira vez um mar que nunca sonhara meu – ali estávamos os dois: eu e um mar imenso – para mim tão misterioso quanto os mares de vasco da gama – naquele momento. toda a solidão do mundo estava no molhe da póvoa de varzim – foi ali que descobri a infelicidade – tomado pelo vento. ali estava: tranquilo. estático. perdido entre o partir do sol e a chegada de uma noite que nunca mais teve fim – pela primeira vez percebi que a felicidade é o sal da vida. uma pitada a mais e somos amargamente infelizes. uma a menos. e ficamos perdidos para sempre numa infelicidade sem sabor – nunca mais me desliguei do mar. da infelicidade. do vento e da noite – adotei o mar e as gaivotas para me acalmar. e é junto deles que me sinto sempre mais perto da inteireza com que me quis construir – mas mar é mar. ninguém por mais destemido que seja. pode escolher o mar que lhe toca – o meu mar é apenas o meu mar e a mais ninguém interessa o seu estado – no meu mar só eu aprendi a navegar
3. essência
no meu mar haverá sempre um pai. uma mãe. filhos. netos. nora e uma mulher que é maior do que todos os mares que inventei – há uma ua [lurdes] maternal. uma irmã de luz e um irmão de paz – há sobrinhos. sobrinhas. e outras sobrinhas que vi nascer e são sangue do nosso sangue – há cunhadas. cunhados. sogra e um sogro que podia ser meu pai – há amigos que nunca mais regressam e há outros que vivem dentro de mim – há amigos de cá e outros amigos de acolá. e há aqueles que são de cá e de acolá – há amigos especiais que não sabem falar. mas que dizem tudo num único latido – há uma família enorme que vem de tempos e terras que a história não sabe contar. trazendo nos gestos a essência do que melhor há em nós – no meu mar há uma família desde o nascimento até à morte – é no meu “mare nostrum” que um dia encerrarei o meu corpo – e nada levarei comigo além do seu perdão
4. epílogo
no meu mar há gaivotas de todas as cores e desejos enterrados em ilhas imaginárias – há marujos de camisetas listadas. há piratas bons e piratas com perna de pau – no meu mar há deus. fé. oração. pecado. perdão. ato de contrição e milagres ainda por cumprir – há sonhos grandes. pequenos e sonhos que nunca se tornaram realidade. e realidades que nunca foram sonhadas – no meu mar há peixes apetecíveis. horríveis. ferozes. meigos. contrafeitos. autênticos e outros que por serem bonitos não pertencem a mar nenhum – no meu mar há peixes negros. amarelos. brancos. e também há peixes com cores que não sei explicar – há gaivotas tristes. felizes. assim assim. e há gaivotas que querem partir para terras que nunca vi – no meu mar há peixes como eu e peixes que não são como eu – há peixes miscigenados com amor de outros peixes e peixes que por serem apenas peixes nunca conheceram o amor – no meu mar há peixes grandes a comerem pequenos e pequenos a comerem o que podem para crescer o suficiente e não serem comidos – há peixes esguios. não esguios. redondos e não redondos. quadrados. e outros que ninguém sabe ao certo como são – no meu mar há peixes que nunca tiveram um livro e há livros que nunca foram lidos por não haver um único peixe que o quisesse ler – há ilhas cercadas de sol todo o ano. e ilhas cercadas de coisas inúteis – no meu mar há barcos com gente a olhar os peixes e há gente à procura de um único peixe – há medo. mistério. naus. fantasmas. tesouros e amores enterrados num areal perdido no tempo – no meu mar há canhões. arpões e mosquetes com palavras que. uma vez disparadas. são balas – há lugares de luz e lugares onde as sombras escondem fragmentos de uma juventude que nunca esqueci – há lua cheia. estrelas do mar e de fora dele também. e há ondas gigantes que carregam amigos que já não voltam – no meu mar há uma única varanda voltada a sul e muitas outras a contemplar o norte – há desgosto por coisas que não fiz e também há desgosto por coisas que fiz – no meu mar há homens que nasceram do mar e há homens que um dia o mar levará – neste meu mar sou isto tudo que vos escrevo. mas também sou o que cada um escolher levar de mim – aceitarei o vosso olhar. aceitarei o vosso juízo. aceitarei a vossa pena – peço-vos perdão por tudo que não consegui ser – estou quase de partida. há mares que não sabem esperar
12/04/2016
putrefação
09/04/2016
08/04/2016
símile
05/04/2016
o grito
04/04/2016
autofágico
escrevo – quem diria que um dia passaria os
meus dias a reescrever o passado – aprendi a escrever há tanto tempo – ainda me
lembro bem da minha professora primária - dona felismina. era tão bonita - e de
um diploma que trouxe para casa - dezassete valores. aprovado – devidamente
assinado e autenticado com selo branco escolar – um orgulho de diploma. ainda o
guardo – em casa tudo continuou como dantes. os diplomas só tinham valor quando
traziam títulos –
- - gostava tanto que
fosses dentista - dizia a minha mãe
mas
eu queria ser bombeiro. o risco. a vaidade com que enfeitavam as fardas de
medalhas. as sirenes. os carros vermelhos. as escadas suspensas. a vozear presa
enquanto a esperança se aguentava pendurada às mangueiras aflitas – eram homens
bonitos e transportavam com eles uma inesgotável e merecida reverência – eram os
soldados dos afetos – o tempo passou – agora sei que. apesar do diploma. nunca
aprendi verdadeiramente a escrever. uma mágoa insanável – nunca cheguei a bombeiro – mas daqui não me
resta dor. não se perdeu um grande soldado da paz – estou em guerra comigo
desde que nasci – fiquei-me pela arte de juntar letras para me dar a entender.
com esforço. resumindo: sou um escritor autofágico. minúsculo – alimento-me de
tudo o que é meu para escrever – prolongado assim a morte
01/04/2016
1º abril
bem sei que este é o teu dia favorito. não é!?
mas sabes: este não é o meu dia. e para ser o teu teria que ter a tua mentira como verdade
nunca
tive