foto - sampaio rego
30/08/2016
26/08/2016
o epitáfio da memória II
II.
só a memória pode decidir no
presente o destino a dar ao seu corpo – só esta tem algo a perder – tudo
pertence à memória. e é esta que sentencia. é esta que tem a espada de
dâmocles. é esta que tem o saber da humanidade com todos os seus desgostos em
contrapeso – a questão é simples: continuar ou não a absorver a vida para
perseverar a forma do corpo que. apesar de deformado pela corrosão do tempo.
será sempre o fiel depositário de todo o conhecimento – manter o corpo é manter
a memória – sustentada por um transtorno dissociativo de personalidade.
desperta os sentidos quase sempre aflitos. disfarçando-os de uma alegria
silenciosa. pacífica. pacata. pueril. aliando gestos artísticos estonteantes
criando a ilusão de um corpo gigantesco – imponente como nenhum outro. ali vem
ele. num volume de alma enorme. inconfundível. distinto. único. reconhecido por
uma multidão de quase ninguém – podem chamar-nos pelo nome. podem até dizer que
nos conhecem bem. de abraço. de paixão também. mas ninguém poderá atrever-se a
dizer que conhece o que temos de mais autêntico. mais verdadeiro. mais nosso: a
memória – essa é só nossa – ninguém por mais íntimo. por mais profunda que seja
a sua ligação poderá atrever-se a contrariar esta afirmação – talvez possam
dizer que conhecem algumas características suas mais particulares. algumas
manias. fetiches. taras. jeitos. um pouco daquela forma de andar. de não dizer
toda a verdade. de encontrar a sua justiça com palavras que se repetem de
oratória em oratória. de experimentar a partilha de noitadas. de ressacar de um
whisky rasco misturado num hálito a SG gigante. de trocar palavras de
camaradagem. de abraço por um golo de camisola vermelha. ou por um campeonato
ganho pelo glorioso – isto e mais meia dúzia de manigâncias é o que os mais chegados
podem garantir como conhecimento privilegiado – pseudo-amigos que nunca
passarão de meras sombras – para estes pseudo-amigos pouco mais há para um
[re]conhecimento – que mais se poderá querer saber de um humano? para estes
amigáveis controversos. com este saber. neste enquadramento. a equação é
simples: são amigos de coração – os amigos do coração não necessitam de ter
mais nada – passo a ter então direito a um diminutivo: o zézinho. pedrinho.
joãozinho. e tudo isto é como uma medalha ao peito. um galardão. um
reconhecimento. um herói de guerra fraterna. com direito a um nome gravado no
passeio dos amigos para sempre – raio de tempo vivido em troco de nada. raio de
discípulo idiota. raio de caminhada inglória. um rasto de tempo dissolvido –
bronco. estúpido. asno. e só agora é que aprendeste a contar pelos dedos os
poucos amigos que trouxeste ao coração. as exceções têm um cantinho especial
dentro de mim com gratidão e memória eterna – os meus amigos de coração jamais
partilharão as minhas amarguras num relato como este – os mais atentos talvez
lhe possam adicionar umas inflexões da voz. um revirar dos olhos. de um torcer
de nariz. do formato da boca nas saudações da praxe. e a autenticação do
tamanho de um corpo que nem sempre condiz com o da alma – para os meus amigos
sempre quis muito mais e sempre estive disposto a dar-lhes muito mais –
dava-lhes a minha única riqueza: a memória – mas não. que interesse há numa
memória que fala de si como se estivesse apaixonado por cada palavra. por cada
suspiro. por cada olhar a pedir uma resposta para um corpo a mostrar tantas
dúvidas – nunca tive certeza de nada – é a incerteza que nos empurra para o
desconhecido – sempre corri atrás dele – falava-se de futebol. das mulheres dos
outros. da velocidade com que os outros passavam com os seus automóveis de
luxo. da sua riqueza. das ilhas do
onassis. dos seus iates. e da nossa memória nem uma palavra. nada. nada de nada
– um absoluto deserto de afeição – restava-me rir e fazer figura de tolo – a
memória. essa coisa que é só nossa. imaterial. abstrata em tanta mesquinhez.
autêntica para nós. subjetiva quando partilhada. louca quando tantas vezes o
que lhe era exigido era ponderação. ou um pouco de racionalidade – e o que
recebes: inquietação absurda com quase sempre dor a posteriori – como se tudo
isto fizesse parte do contrato que assinaste para ser humano – veste-se de
luto. de dor. de farrapos. e de agonia assiduamente como se fosse um hábito. um
vício sem cura. como se carregasse uma doença terminal – mas não carrega –
quando pensas que é o fim o ciclo recomeça – haverá pior castigo do que este? –
é esta memória que retira a coerência à vida. a certeza. a planificação. os
sonhos. a bondade das ações. a glorificação. a perseverança. a capacidade de
lutar. a nobreza dos atos. a certeza de que fizemos o melhor pelos outros e por
nós enquanto corpo com memória – nunca sabes quando um elo se quebra e uma
parte de nós desiste – chega o momento em que nada do que fizeste é uma certeza
– mas a minha memória é só minha e é com ela que me tenho que entender – o que
é nosso. é nosso – nada podemos fazer a não ser aceitar o que por lá cresceu –
não lhe quero mal por isso. também não me adiantava de muito – aceito-a.
aceito-a porque me tornou quem sou – estou agora numa paz cuja duração
desconheço. nem sei muito bem o nome que terá. sei que de espírito não é porque
este continua turvo. sinto-o cada vez mais escurecido. mais irrequieto. mais
tumultuoso. mais impetuoso. com menos mel – talvez esteja a passar o olho do
furacão. ou quem sabe a cumprir um ritual qualquer que o corpo ainda desconhece
a finalidade – há tanta coisa que ainda desconheço – um passo a sorrir traz
sempre três passos para a vala – inevitável – os sorrisos são quase sempre para
enganar a plateia no teatro do nada – para a memória não há subterfúgios. nem
algazarras. nem silêncios capazes de a enganar. nada mesmo – às vezes o
silêncio asfixia – refugio-me num catraio que ainda me habita. na sua
ingenuidade intacta e nas suas palermices incompreendidas. e na maior parte das
vezes. dissolvo-me em nada – mesmo assim. e por mais que queira. não consigo
mudar nada da memória – tenho como destino final aquilo que vive dentro da
minha memória
[continua] – para a III parte
21/08/2016
o epitáfio da memória I
I.
o
dia das lágrimas – com vida certa ou incerta. verdadeira ou falsa. bela ou grotesca.
rica ou miserável. trágica ou iluminada. excêntrica ou vulgar. aqui estou
perante este tempo néscio de compromisso com a memória: um comprometimento de
honra com o meu corpo por inteiro – o contrato – sou eu. com a minha face. as minhas
mãos arrestadas a impressões digitais únicas. banhado por um sangue enlaçado
num DNA que nunca se reconheceu como entidade singular – tudo isto oferecido num
jeito de caminhar tortuoso. sinuoso. confuso. como quem ameaça tropeçar a cada
passo. a cada fôlego arrancado à vida – os olhos. de um castanho morno.
arregalam-se como faróis furiosos em noites de tempestade. procuram ansiosamente
um destino que se esquiva – o futuro. em movimento acelerado. persegue sem
misericórdia um corpo que nunca aceitou o repouso – nunca fui nada sem
movimento. sem vertigem. sem ação incessante. como se o corpo estivesse sempre em
descompasso com o pensamento – o próximo lugar era sempre o único refúgio
possível para domar o ímpeto de tocar o fim do mundo – ilusório – só a fala se arrastava
num vagar ansioso para uma boca que sempre almejou o silêncio – nunca me dei
bem a falar. confesso que às vezes nem no silêncio de mim mesmo – e é tudo isto
que faz de mim um ser com memória. único. singular. excecional para o bem e
para o que há de pior – por fim. e para que não houvesse enganos. deram-me um nome sem nenhum tipo de atenção.
e um último nome que diz mais do meu corpo do que todos os particulares descritos
– sou então o único dono e responsável da minha palavra. da minha honra. da
minha vergonha. das minhas opções e das minhas falhas – sou assim um guardião
da memória. que se alimenta da autenticidade. umas vezes pelo contrato assinado.
outras pela convicção de que o valor de uma vida não se mede em tempo. mas sim pelo
que deixamos no tempo – “o futuro e o passado não existe no agora” é apenas uma
medida de evolução que neste momento não se aplica a mim – claro que há exceções
dentro do meu próprio corpo. exceções essas que se amarram à memória. e
determinam que a evolução da razão nem sempre se sobrepõe à virtude – os
princípios que amarram a virtude a escolhas inevitáveis são sempre movidos por
um ímpeto silencioso. que no meu caso. pouco crente no sobrenatural. foi marcado
no primeiro sim à vida pela tômbola da sorte – todos temos uma tômbola invisível
que gira sem nos consultar sobre a aposta – baralha. dá cartas. escolhe o
trunfo e diz: vais a jogo – e vamos pois. acabamos de respirar. e quem respira
aceita as regras do jogo – estamos a viver e a ganhar memória. o que é o mesmo que
dizer: estamos humanos – nada acontece de um dia para o outro – pelo meio as
leis da sociedade induzem-nos a sua ética e moralismo. nunca tendo em conta a
dor. o sofrimento. a falta de vontade de viver. a extinção da motivação. o
eclipse da fé – leis pensadas e elaboradas para um mundo ideal. por homens tão
imperfeitos quanto eu – mas a razão de uma vida existir divide-se em mais de
mil razões concentradas num só ato irrepetível – sou tantas coisas que jamais
poderia reduzir a existência a uma única razão para viver. ou para morrer – o
fim da vida é uma decisão tecida no tempo. e o tempo é feito de memória. e toda
a memória repousa sobre alicerces de desespero e assombro – vivemos a
felicidade de forma tão intermitente e rara que. quando necessitamos de recordá-la.
ela resume-se a poucos instantes. que quase sempre nos obriga a recorrer à
descendência. à companheira que é a luz da minha vida. à família no seu
compromisso de afetos. aos raros amigos que conseguimos preservar. e a dois ou
três caninos que nunca deixaram de me receber com a cauda a abanar – tudo isto garantido
por um batimento cardíaco. ora sobe. ora desce. ora acelera. ora esmorece. ora sussurra
que já nada justifica o sacrifício de o escutá-lo – o batimento do único
músculo que no passado escondia o amor. o coração – já não há amor no coração.
não há remorso. nem arrependimento. e também não há nenhuma medida universal para
uma dor que ruge: basta. chegou a hora do silêncio absoluto. da paz – chegou a
hora de fazer descansar a memória