1.
quando
a desilusão se chama amigo – num tempo de interrogações amargurei. depois. em dificuldade. dei
uma oportunidade à lucidez que acabou por emergir num exercício prático de
libertação do homem – nietzsche afirma que o homem livre é um guerreiro – não
sendo guerreiro. mas em liberdade
absoluta. resolvi então escrever um
tratado simplificado de uma amizade magoada – bem sei que quem espera desespera. eu desesperei – mas as palavras
acabaram por chegar no seu vagar.
tal e qual como me foi chegando a vida cinzenta – tudo foi acontecendo numa demora
estranha. tomada por uma nostalgia gasta
pelo tempo – dei então início à minha busca:
encontrei-me nas origens. nas causas. nas motivações. na ambição. na
imbecilidade e regressei ao ponto de encontro apenas para me deparar novamente com
o desencontro – sei agora o que quero dizer numa escrita que desejo clara mesmo
que a causa não me dignifique – perder um amigo é sempre uma culpa dividida – descobri
a serenidade e despojei-me da alma para me encontrar mais de perto com a verdade. assumi a mortalidade e pedi a têmis
que me ajudasse a derrotar o erro e a escrever a justeza numa consciência
iluminada – encontrar a minha verdade depurada da imperfeição é fundamental – sei
que será sempre uma verdade minha e que muito bem pode não ser a de mais
ninguém – com o corpo em braços avaliar-me-ei pelo conhecimento num processo autocrítico: colocar-me no centro da humanidade. avaliar escolhas. questionar processos. aceitar
e compreender o erro. reconhecer a
individualidade e por fim. com a verdade
purificada. combater e derrotar a
desilusão como uma das mais violentas formas de enfraquecimento e eliminação da
estabilidade emocional – afinal tudo o que é desilusão não passa de um pedaço
de terra desabitado. uma porta
fechada que esconde apenas um quarto vazio
2.
decompôs-me em
segmentos finíssimos de lucidez. e à
velocidade de uma bala atingi o desencanto – corpo e mente aceitam a deceção
num estado de alma de acolhimento cristão:
perdoa-lhe que não sabe o que faz – estamos os dois perdoados. eu por te fazer existir num pedaço de
terra que acabou desabitado. e tu por
me trazeres enganado num abraço que acabou por nada abraçar – juro que não
sabia que os abraços se perdiam como o vento – mas não há forma de nos esvairmos
da condição humana que tragicamente carrega em si o erro. numa contagem de tempo sempre provisória – a imperfeição do homem
é uma das razões da sua diversidade – sei agora que o corpo se partiu em
milésimos de segundo. onde antes estávamos
juntos. agora. ficámos separados. marginalizámo-nos
nas razões. as mãos desuniram-se
violentamente. tu lavaste-as como
pilatos. enquanto eu. envergonhado. enterrei-as na fundura dos bolsos – de seguida dividimos as
palavras. tu recuperaste as tuas e
eu quebrei as minhas para nunca mais as usar – há palavras que nunca deveriam
ter nascido – ficamos os dois dentro de um quarto vazio. numa porta que se fechou quase sem fazer barulho – quando te
virei as costas trouxe toda a raiva do mundo no corpo. explodi numa dor que me atravessou todos os anos da vida. num arrependimento alucinogénio. culpei o mundo. de seguida culpei as pessoas do meu mundo. depois a rua onde crescemos.
o passeio onde jogávamos à bola. o
jogo da estátua. as caricas. e aquele candeeiro que se apagava
sempre que lhe dávamos um pontapé – eu é
que devia ter levado esse pontapé. afinal
a minha casa ficava numa rua a descer mas eu sempre a quis subir. teimoso – a dor cortou-me os pulsos
dias sem conta. e eu sem saber como conter
a raiva. e um murro na parede. e outro na mesa. e um ralhete a um deus que sempre me pareceu surdo – houve um
tempo em que tu e eu acreditávamos nesse nosso deus. ele morava na mesma
religião. na mesma pregação. na mesma prática do bem: “a lei de deus é justa e boa – “quem
obedece à lei de deus faz o bem e ama as pessoas” – nós prometemos-lhe praticar
o bem. amar as pessoas. não mentir e honrar os amigos – a humilhação
serrava-me a alma num barulho que me enlouquecia – tu não me honraste. mentiste-me com palavras que prometemos
nunca usar – esqueceste-te do combinado com deus. esqueceste-te de mim e esqueceste-te de tudo o que era meu – fiquei
só. perdi-me do corpo. do que o meu pai me ensinou. da compaixão. do perdão. fiquei sem
uma única palavra que me trouxesse de volta a casa – no corpo só cabia agora
raiva e interrogações – o que fazer aos aniversários em que me desejaste muitos
anos numa vida feliz? o que fazer aos natais sem aquele abraço-tradição? o que
fazer ao teu número de telefone? o que dizer aos amigos? como viver separados
por um muro de cólera? – a amizade verdadeira é uma forma de amor incondicional – durante muito tempo andei desaparecido de mim. não me reconhecia. estranhava o corpo. os
seus desejos. os medos e o que a memória desejava pela noite
perdia-se na manhã – banir-te da minha humanidade não era tarefa fácil – magoei-me
com tudo o que tinha à mão. atirei-me
para dentro de palavras que me torturassem até que a dor se transformasse numa
raiva tão escura que nunca mais fosse possível encontrar-te pelo nome – mutilei-me
com a confiança. sangrei honra. chorei humilhação. despedi-me da esperança e o que era amizade foi substituído por
luto – quando um amigo nos morre nas mãos é para sempre – sempre amei os meus
amigos – mas a tua morte resistia aos meus dias. nunca foi bom a mentir nem a matar a saudade: um café partilhado. uma
conversa urbana. uma miúda cobiçada. um automóvel da mesma marca a caminho
da tua casa. um nome geminado. e estas duplicações a dizerem-me que a
tua partida foi um equívoco do tempo.
uma noite mal dormida. um pesadelo horrendo
depois de uma farra de copos – uma armadilha para a amizade – quis
acreditar que um guronzan e uma dietinha de arroz branco me trariam de volta os
dias como sempre foram – ao nascimento do sol recuperaria a luz da confiança. eu voltaria a aceitar-me tal e qual
como sou. e tu tornavas a aparecer dentro
daquele sorriso que nunca te deixou crescer – mas não. afinal o luto é muito mais que roupa negra. é o corpo negro.
pisado. enraivecido numa acidez que
me faz arder num inferno que não foi desejado por mim – não aguentei. atirei-te de um penhasco para o mar e
nunca mais procurei o teu corpo – este meu luto durou um tempo que nunca quis
aprender a contar – quanto mais tempo tivesses desaparecido mais prazo tinha
para escapar do abismo – com os dias a passar tudo foi sendo substituído por
silêncio. um silêncio que não é dor. não é raiva. não é azia. é uma saudade
que nos enfeitiça e liberta serenamente.
sem que nada possamos fazer. as memórias
que obstinadamente escondemos – esta saudade dói. dói pela distância.
dói porque os dois fomos um e agora somos ausência – não
há forma de controlar esta saudade.
simplesmente aparece. devagar
devagarinho e o corpo tomado por um marasmo sereno. tranquilo. silencioso. sem arrependimento – à boca são roubadas
todas as palavras que magoam. enquanto
as mãos se espreguiçam delicadamente – é importante não amedrontar o dia
seguinte – o tempo em silêncio assustou-as.
envergonhadas esconderam-se no escuro dos bolsos que. em boa verdade. não as
escondiam de nada – e o dia seguinte a exigir uma renovada aliança com a fé. as nuvens a correr para sul. sem pressa. enquanto um novo arco-íris adorna o céu num colorido de cores
quentes – o sol rompe pelo corpo. as
sombras desfalecem no passado. e o
coração retoma os batimentos numa alegria que é hino – beethoven – os olhos renovam-se. florescem em campos inesperados campos
de flores: bem-me-quer. mal-me-quer. bem-me-quer e o vento a soprar de fininho. manso. quente.
de norte para sul. a envolver o erro
numa carícia de indulto – o corpo recupera a inocência numa calmaria que já não
anuncia mau tempo. finalmente – invadido
por uma trégua delicada recuo ao passado.
à pureza dos ideais. todos por um. um por todos. deito a cabeça a uma árvore.
tapo os olhos. e conto até mais de cinquenta. depois. desenfreadamente. volto
a correr pela vida. voltamos a jogar
à bola. ao deita fora. e celebramos vitórias sem ganhar
coisa nenhuma – sorrimos. somos puros. e o mundo também – para haver um
mundo impuro é necessário haver gente impura – não havia. nesse tempo tudo era perfeito – juntamos a família às celebrações. os amigos também. festejamos o meu aniversário e de seguida o teu que acontecia
sempre um dia depois do de meu pai – estamos em
agosto. nunca senti frio em agosto. era um mês especial. não havia tristeza. nem solidão. nem saudade. nem medo. nem injustiça. nada. só havia sol. luz. muita luz e uma vontade enorme de a trazer para dentro do corpo –
um dia o meu pai deixou de festejar a vida.
e o agosto quase desapareceu. passaste
a existir só tu num mês moribundo. mas
também quiseste partir. deixaste de
festejar a amizade e o agosto esfriou para sempre – eu gelei – juntei então tudo
que era teu num dia depois de agosto.
acrescentei-lhe os abraços. os
sorrisos. as promessas. as juras. as palavras que nos tornaram amigos. os natais. principalmente
aqueles em que me levavas a casa um abraço quente de verão. a tua bondade e aquela tua vontade única de partilhares a vida
com afeição – nós amávamos o natal – prometo que este ano escreverei a verdadeira
história do meu pai natal – quero guardar o melhor de ti – devo-te isso – há dividas que só se pagam com afetos – um homem
grato faz o mundo muito mais bonito – nunca te deixei de ser agradecido nem
mesmo no dia em que te atirei para o fim do mundo – o corpo ainda dói. sempre que o sol se esconde o corpo dói. e eu sem entender como lidar com uma
dor que não quero que continue dor – e ali fico eu preso às horas da noite num emudecimento
que me enlouquece – não é fácil perder o que se pensa ser eternal – o tempo
passa e o teu corpo teima em reaparecer – aceitei o desafio – passaste a viver numa
dimensão que não sabia existir: estás
longe. mas ao meu lado – és memória – reinventei para ti outro corpo. outros olhos. outros gestos. outro
modo de andar e um outro sorriso. desocupei-te
as mãos dos bolsos. tornei-os mais
largos e mais fundos para te caber toda a cobiça do mundo. e dei-te um lugar na
terra rodeado de gente por todos os lados – ficaste mais parecido com todos
aqueles que não conheço. mais banal. menos divinizado. passaste a ser apenas mais um homem que envelhece no meu tempo –
só os amigos não envelhecem – mas tu envelheceste
num instante – afinal também já tens cabelos brancos. tens o corpo mais tombado para a frente. as unhas cada vez mais ruídas e o sorriso que te fazia criança
está agora muito mais cansado. adulto. indiferente ao mundo. ao teu e ao meu – sem esse sorriso
deixei de reconhecer aquele rapazinho franzino. magricela. sempre a
correr desenfreadamente à frente da sua própria bicicleta. numa velocidade estonteante.
louca. de um lado para o outro – só
estavas bem onde não estavas – e assim ficaste para o resto da vida. sempre gostastes de estar em todo
lado sem nunca estar em nenhum – escondi-te do erro. fingi que os amigos nunca falham e fui-te perdendo devagarinho
para não me magoar – ultimamente já quase não falávamos. perdeste a fala. aprendeste
a pisar. humilhar e fazias gosto em
o mostrar – refugiei-me no tempo – quando gostamos de alguém. somos capazes de
jurar que o mundo não é redondo – perdeste a juventude. depois a inocência. as
leis do teu deus. não faças aos
outros o que não queres para ti.
perdeste a coragem. as origens. escolhestes os mais fracos para te
tornares mais forte. ficaste injusto. prepotente. cego. egocêntrico. interesseiro e vaidoso. mais vaidoso que a sé de braga – passaste
a sentir-te bem com o mal dos outros –
tu não eras assim – por mais de mil vezes tentei dizer-te que estavas errado. que o sucesso não tem um só caminho –
essa personagem magoava-me. avisei-te
que mais tarde ou mais cedo a vida te iria cobrar. o teu deus não dorme – a
justiça tarda. mas não falha –
não foi assim que te conheci – não me deste ouvidos. perdeste-os com a ambição e não foste capaz de tirar os olhos do
papel e da montblanc – tiveste medo de me olhar nos olhos – desisti esperando. não há mal que sempre dure nem bem
que nunca acabe – mas enganei-me. o
tempo não te curou. pelo contrário. aprendeste a mentir sobre ti e. sobretudo. sobre os outros – um homem mentiroso
não vale nada – abandonei o diminutivo no teu nome e passei a chamar-te pelo
nome que todos te dão – eu também perdi o meu diminutivo – descobri que a vida
é muitas vezes ingrata. aprendi a
resignar-me. nem sempre a luta leva
à glória – mas também descobri que não
te quero como inimigo. um amigo só
necessita de um cantinho no coração para existir. um inimigo precisa do corpo todo – não te darei o meu corpo. nasci sem inimigos e também morrerei
sem eles – abri então uma porta que não dava para um quarto vazio. deixei entrar o que sobreviveu de
melhor dos dois. abracei-te com tudo
o que me magoou. e chorei. chorei até que as lágrimas me
enchessem as mãos de ti. expulsei-te
da raiva e voltei à vida. fechei a
porta. dei dois passos em frente. parei. e não voltei a olhar para trás – parti – jurei nunca mais te
voltar a ver
3.
há
momentos dos quais nunca te conseguirei apagar. momentos em que teria feito por ti tudo o que me pedisses – um
homem honrado não pode esquecer o bem que lhe fizeram – e eu nunca o esqueço – sempre
te fui leal – e o que foi um caminho de afetos é agora um corpo encalhado numa montanha
de palavras inúteis – quando estou só. já não sou capaz de falar contigo – aquele
pedaço de terra desabitado perdeu a cor do céu. as gaivotas abrigaram-se do sal e as flores murcharam com os
restos da primavera. não sobreviveram
à desilusão – gostava de lhes ter perguntado se a minha vida seria diferente se
tivesse nascido noutra rua – mas não há uma única flor que me possa responder –
morrerei sem saber – um homem quando perde os sonhos. fica só. afunda-se no corpo à procura do que já
não existe e acaba por se magoar com a ilusão de que ainda pode modificar o
passado – não pode. por mais que
volte a sonhar. o desfecho será sempre dor – o que está feito. feito está – há dois momentos que marcam a nossa vida. o primeiro ocorre com o nascimento. aparece sem que nada possamos fazer
para o evitar. nascemos e pronto. toca a respirar para sobreviver – o
segundo momento é aquele que se torna certo para quem tem a ousadia de nascer: a morte – não pode ser evitada. mas
pode ser dignificada. para isso.
basta que no dia da partida. leves um sorriso na face – ainda há gente que o
leva – procuro agora o meu sorriso.
um que me recompense por todos os sonhos que ficaram por realizar – ainda não o
encontrei. mas sei que anda algures por este mundo – desencontrado? sim. culpa minha. creio eu – estou cansado.
as noites esgotam-me. os olhos não se
fecham. deito-me sobre o corpo e ali
fico de olhos abertos até que o cansaço me atire para a antecâmara da morte: o desespero – quero muito acreditar
que há sempre uma razão maior para o que nos acontece de menos bom na vida – neste
momento sobreviver é um desafio tremendo – sinto o corpo a pedir dignidade. estou sem fé. e sem um único sorriso para
me poder despedir – bato à porta do meu deus de criança e pergunto-lhe se ainda
há lugar na sua cruz para crucificar uma amizade – não me responde. nunca me respondeu coisa nenhuma – tento
agora aceitar-me nesta infindável dor da perda – aceito em mim a
inevitabilidade da desilusão e preparo o corpo para conhecer o seu último
sorriso – o meu lugar está guardado no pedaço de terra desabitado
4.
ainda não
te consegui perdoar. mas tento todos
os dias – não sei se algum dia conseguirei – creio que não. já não há tempo – envelheci