o tempo sorveu um corpo
a concupiscência
que albergou a sensualidade
é agora uma figura geométrica
o varão
outrora prazer
rendeu-se
ao futuro
o tempo sorveu um corpo
a concupiscência
que albergou a sensualidade
é agora uma figura geométrica
o varão
outrora prazer
rendeu-se
ao futuro
3. a morte terapêutica
nesta terceira
parte a minha dissertação incide objetivamente nos benefícios da aplicação da
morte terapêutica em mentes em avançado estado de instabilidade emocional –
recorremos então a algumas boas práticas já comprovadas na morte assistida e
transpomo-las para fórmula terapêutica – o que realmente torna interessante a
aplicação desta morte é a possibilidade de fazer falecer apenas o que nos magoa
– começamos por sedar a nossa existência. aliviamos a dor. aprisionamos o
passado. silenciámo-lo. bloqueamos a memória de longo prazo e introduzimos na
memória recente doses de elevada esperança – obviamente que como em qualquer
tratamento é necessário ter sempre em atenção as dosagens. foram muitos anos de
sofrimento e o corpo pode reagir negativamente ao excesso de esperança – a
solução é a prescrição de doses de baixo teor de felicidade. administradas sob
uma apertada vigilância – evitar recaídas é fundamental – ao passado é-lhe
finalmente oferecido uma morte controlada. boa. honrada e sem dor – é essencial
definir com precisão o que deve verdadeiramente sucumbir. não se pode fazer
falecer o coração. nem os pulmões. nem o cérebro. nem o que resta da vontade de
viver – estas áreas são vitais para a sobrevivência emocional. não é uma morte
onde para falecer baste um pouco de coragem e uma bala no tambor. não. não é –
esta morte. consiste em eliminar. silenciar ou simplesmente enclausurar. por um
período de tempo estabelecido. uma determinada área do corpo. um membro ou
apenas um insignificante sentimento – tomar a decisão de eliminar o que quer
que seja num corpo diminuído não é tarefa simples para o seu executor – não é
fácil castigar um corpo quando o que resta de motivação é praticamente nada – o
momento é de aflição para o carrasco – quando o corpo está doente a dor
torna-se numa força incontrolável. os sentimentos desaparecem e a automutilação
toma posse do centro de comando cerebral – o pensamento está refém do desespero
– selecionamos então um alvo específico no corpo que acreditamos estar possuído
de um mal sem solução. desligamo-lo do suporte de vida libertando-o da teimosia
de viver em agonia – aos poucos a memória de longo prazo começa a desprender-se
das rotinas. abandonando o corpo numa marcha de silêncio e paz – o silêncio.
agora fúnebre. acompanha a saída das reminiscências numa viagem de aceitação.
de perdão. sem castigo. sem remorso. sem medo que no dia seguinte o passado
ressuscite num dedo apontado à covardia – entramos então em modo de segurança
extrema. sobreviver é a palavra de ordem – personalizamos o nosso próprio plano
de recuperação e com a ajuda da esperança aplicamos finalmente o tratamento
final da morte terapêutica – cortamos a mão que escreve. substituímos uma perna
de carne e osso por uma de pau. sacrificamos a ambição. matamos um pouco da
ternura. escondemos a paixão e doseamos ao máximo o caudal da amargura.
ameaçamos o sorriso com uma faca de dois gumes e reforçamos os cuidados ao
corpo caso este insista em reviver esperanças já condenadas – aproxima-se o
momento das decisões. é fundamental eliminar o acessório e assim. permitir que
a vontade de viver se projete num novo espaço temporal – einstein dizia que “o
tempo não é aquilo que parece. Não corre em uma única direção, e o futuro
existe simultaneamente com o passado” – se o tempo não corre numa única direção
não há motivo para nos acorrentarmos ao passado – para grandes males. grandes
remédios. a solução passa por aplicar a estratégia de terra queimada.
exterminar tudo que possa ser útil ao inimigo – um género de contrafogos que
mais não é do que uma “contra-morte” – se o que arde não volta a arder também o
que morre não volta a morrer – ficamos mais doentes quando olhamos mais para o
passado do que para o caminho que ainda temos a percorrer – a angústia apenas
consegue sobreviver se mantiver acorrentado a si o desânimo. a ansiedade e o
medo – sobreviver é uma luta diária. um inferno. uma descarga elétrica contínua
que nos amarra em cada dia do ano. não há férias. não há aniversários. não há
natal. não há desculpa para nada. o que existe é apenas os dias marcados a
negro no calendário – um corpo depressivo não vive. sobrevive – o oposto da
depressão não é a felicidade. é a vontade de querer viver. a força. a
determinação. a procura da liberdade – nenhum homem é livre quando a dor lhe
confisca todos os pensamentos – ninguém pode desvalorizar o silêncio de um
homem tomado pela dor. o seu sofrimento é a sua impressão digital – este penar
não se torna infernal apenas porque desacertadamente. ou não. optamos pelo
caminho errado. recusamos ajuda médica ou dizemos não aos ansiolíticos – a dor
nasce escondida no corpo. primeiro rasteja. depois começa a gatinhar. de
seguida aprende a caminhar. em bicos de pés. com a graciosidade de uma
bailarina. e o corpo gargalha com a subtileza com que vai amargando. o que era
em bicos de pés transforma-se agora em passos delicados. abrindo caminho por
uma estrada desconhecida. lentamente. tão lentamente que o corpo se vai
alterando. adaptando. moldando. até que chega um dia. sem que tenha dado conta.
cada passo é um compasso entre caminhar ou parar – a dor já não engana.
multiplicou-se em amargura. em angústia. em revolta. em intolerância.
arrestando o corpo num desequilíbrio irracional. doentio. falso. e por fim.
como todos os impostores. promete-lhe um precipício libertador – o que cresceu
como uma anormalidade dolorosa é agora uma normalidade consentida. aceite e
autorizada a viver numa vergonha silenciosa – a dor já não é estranha. é íntima.
próxima. carne da sua carne. como se o tivesse acompanhado desde o útero de sua
mãe – a manifestação externa do sofrimento só se torna audível ao fim de muitos
e muitos anos de conflitualidade interpessoal – se por um lado todo o corpo
dói. por outro. estas dores são a razão da sua teimosia em continuar com a vida
– tudo que ocorre no nosso mundo solitário é feito de sofrimento. de
interrogações. de dúvidas e de uma cabeça que não sabe descansar para tornar
mais fácil o que quase sempre parece impossível – tudo acontece simultaneamente
e à mesma hora. o cérebro ora implode. ora explode e uma e outra parte combatem-se
sem entendimento. sem tréguas – o descanso não existe para quem faz do seu dia
a dia um combate com as interrogações – acreditar que tudo tem uma razão para
acontecer é resistir. encontrar essa razão é a causa de todos os problemas –
infelizmente nem tudo tem uma razão. nem tudo pode ser explicado – claro que
ainda haveria sempre o recurso a um charro terapêutico. umas quantas passas
distribuídas pelos períodos mais críticos do dia como forma de aliviar as dores
ou estimular o funcionamento dos órgãos sensoriais para novas formas de luta –
mas não. esta maleita dolorosa está muito para além do charro. da pastilha ou
de um sono mal aparelhado por uns quantos fantasmas erráticos – não. não é
assim. esta dor cresce com o pensamento e
alimenta-se do sofrimento – todo o homem nasce com o entendimento natural de
valores negativos e positivos e uns e outros lutam entre si em busca de uma
pacificação natural entre o bem e o mal. o certo e o errado – infelizmente nem
sempre esta biossíntese é adaptável às exigentes e naturais formas de vida que
nos rodeiam – um dia. o corpo diz: basta. já não há razão que me faça ver
outras razões. chegou a hora – usamos então todo o mal armazenado para um
último momento e assim devolver definitivamente a liberdade ao corpo – o que
dói na pele ou na carne é diferente do que dói no coração – há estradas que
nunca nos levarão para lado nenhum – volto a repetir a frase do mia couto.
acrescentando-lhe um novo ponto final: “cada homem é uma raça” que respira para
caminhar e sempre que caminha aumenta a estrada para mais perto do seu fim – a
estrada não se escolhe. nasce connosco – cada homem tem a sua estrada para a
morte
- a quarta parte do texto
será dedicada à morte dolosa ou fraudulenta
- *título extraído do livro
de nuno camarneiro – no meu peito não cabem pássaros