.................................................................................não tirem o vento às gaivotas

06/08/2017

no meu peito já não cabem gaivotas*






adelino ângelo 






3. a morte terapêutica


nesta terceira parte a minha dissertação incide objetivamente nos benefícios da aplicação da morte terapêutica em mentes em avançado estado de instabilidade emocional – recorremos então a algumas boas praticas já experimentadas na morte assistida e transpomo-las para fórmula terapêutica – o que realmente torna interessante a aplicação desta morte é a possibilidade de fazer falecer apenas o que nos magoa – começamos por sedar a nossa existência. aliviamos a dor. manietamos o passado. silenciamo-lo. sitiamos a memória de longo prazo e introduzimos na memória recente doses de elevada esperança – obviamente que como em qualquer tratamento é necessário ter sempre em atenção as dosagens. foram muitos anos de sofrimento e o corpo pode reagir negativamente ao excesso de esperança – a solução é a prescrição de doses de baixo teor de felicidade. administradas sobre uma apertada vigilância – evitar recaídas é fundamental – ao passado é-lhe finalmente oferecido uma morte controlada. boa. honrada e sem dor – claro que é necessário escolher muito bem o que queremos realmente que faleça. não se pode fazer falecer o coração. nem os pulmões. nem o cérebro. nem  o que resta da vontade de viver – esta não é uma morte onde para falecer baste um pouco de coragem e uma bala no tambor. não. não é – esta morte. consiste em eliminar. silenciar ou simplesmente enclausurar. por um período de tempo estabelecido. uma determinada área do corpo. membro ou apenas um insignificante sentimento – tomar a decisão de eliminar o que quer que seja num corpo diminuído não é tarefa simples para o seu executor – não é fácil castigar um corpo quando o que resta de motivação é praticamente nada – o momento é de aflição para o carrasco – quando o corpo está doente a dor torna-se numa força incontrolável. os sentimentos desaparecem e automutilação toma posse do centro de comando cerebral – o pensamento está refém do desespero – selecionamos então um alvo no corpo que acreditamos estar possuído de um mal sem solução. desligamo-lo do suporte de vida libertando-o da teimosia de viver em agonia – aos poucos a memória de longo prazo começa a desprender-se das rotinas abandonando o corpo numa marcha de silêncio e paz – o silêncio. agora fúnebre. acompanha a saída das reminiscências numa viagem de aceitação. de perdão. sem castigo. sem remorso. sem medo que no dia seguinte o passado ressuscite num dedo apontado à covardia – entramos então em modo segurança extrema. sobreviver é a palavra de ordem – personalizamos o nosso próprio plano de recuperação e com a ajuda da esperança aplicamos o tratamento final da morte terapêutica – cortamos a mão que escreve. substituímos uma perna de carne e osso por uma de pau. sacrificamos a ambição. matamos um pouco da ternura. escondemos a paixão e doseamos para o máximo o caudal da amargura. ameaçamos o sorriso com uma faca de dois gumes e garantimos uma atenção especial ao corpo se este voltar a acreditar que ainda é possível refazer a vida – aproxima-se o momento das decisões. é fundamental eliminar o acessório e assim. permitir que a vontade de viver se projete num novo espaço temporal – eisntein dizia que “o tempo não é aquilo que parece. Não corre em uma única direção, e o futuro existe simultaneamente com o passado” – se o tempo não corre numa única direção então não há razão para ficarmos presos ao passado – para grandes males. grandes remédios. a solução passa por aplicar a estratégia de terra queimada. exterminar tudo que possa ser útil ao inimigo – um género de contrafogos que mais não é do que uma “contra-morte” – se o que arde não volta a arder também o que morre não volta a morrer – ficamos mais doentes quando olhamos mais para o passado do que para o caminho que ainda temos a percorrer – a angústia apenas consegue sobreviver se mantiver acorrentado a si o desanimo. a ansiedade e o medo – sobreviver é uma luta diária. um inferno. uma descarga elétrica contínua que nos amarra em cada dia do ano. não há férias. não há aniversários. não há natal. não há desculpa para nada. o que existe é apenas os dias marcados a negro no calendário  – um corpo depressivo não vive. sobrevive – o oposto da depressão não é a felicidade. é a vontade de querer viver. a força. a determinação. a procura da liberdade – nenhum homem é livre quando a dor lhe confisca todos os pensamentos – ninguém pode desvalorizar o silêncio de um homem tomado pela dor. o seu sofrimento é a sua impressão digital – este penar não se torna infernal apenas porque desacertadamente. ou não. optamos pelo caminho errado. recusamos ajuda médica ou dizemos não aos ansiolíticos – a dor nasce escondida no corpo. depois. depois começa a gatinhar. de seguida aprende a caminhar. em bicos de pés. com a graciosidade de uma bailarina. e o corpo gargalha com a subtileza com que vai amargando. o que era em bicos de pés são agora passos delicados. a fazer estrada desconhecida. lentamente. tão lentamente que o corpo se vai alterando. adaptando. moldando. até que chega um dia. sem que tenha dado conta. cada passo é um compasso entre caminhar ou apear – a dor já não engana.  multiplicou-se em amargura. em angústia. em revolta. em intolerância. arrestando o corpo num desequilíbrio irracional. doentio. falso. e por fim. como todos os impostores. promete-lhe um precipício libertador – o que cresceu como uma anormalidade dolorosa é agora uma normalidade consentida. aceite e autorizada a viver numa vergonha silenciosa – a dor já não é estranha. é intima. próxima. carne da sua carne. como se o tivesse acompanhado desde o útero de sua mãe – a manifestação externa do sofrimento só se torna audível ao fim de muitos e muitos anos de conflitualidade interpessoal – se por um lado todo o corpo dói. por outro. estas dores são a razão da sua teimosia em continuar com a vida – tudo que ocorre no nosso mundo solitário é feito de sofrimento. de interrogações. de dúvidas e de uma cabeça que não sabe descansar para tornar mais fácil o que quase sempre parece impossível – tudo acontece ao mesmo tempo e à mesma hora. o cérebro ora implode. ora explode e uma e outra parte sem entendimento. sem tréguas – o descanso não existe para quem faz do seu dia a dia um combate com as interrogações – acreditar que tudo tem uma razão para acontecer é a resistir. encontrar essa razão a causa de todos os problemas – infelizmente nem tudo tem uma razão. nem tudo pode ser explicado – claro que ainda haveria sempre o recurso a um charro terapêutico. umas quantas passas distribuídas pelos períodos mais críticos do dia como forma de aliviar as dores ou estimular o funcionamento dos órgãos sensoriais para novas formas de luta – mas não. esta maleita dolorosa está muito para além do charro. da pastilha ou de um sono mal aparelhado por uns quantos fantasmas erráticos – não. não é assim.  esta dor cresce com o pensamento e distrai-se com o sofrimento – todo o homem nasce com o entendimento natural de valores negativos e positivos e uns e outros lutam entre si em busca de uma pacificação natural entre o bem e o mal. o certo e o errado – infelizmente nem sempre esta biossíntese é adaptável às exigentes e naturais formas de vida que nos rodeiam – um dia. o corpo diz: basta. já não há razão que me faça ver outras razões. chegou a hora – usamos então todo o mal armazenado para um último momento e assim devolver definitivamente a liberdade ao corpo – o que dói na pele ou na carne é diferente do que dói no coração – há estradas que nunca nos levarão para lado nenhum – volto a repetir a frase do mia couto acrescentando-lhe um novo ponto final: “cada homem é uma raça” que respira para caminhar e sempre que caminha aumenta a estrada para mais perto do seu fim – a estrada não se escolhe. nasce connosco – cada homem tem a sua estrada para a morte



- a quarta parte do texto será dedicada à morte dolosa ou fraudulenta 
- *título extraído do livro de nuno camarneiro – no meu peito não cabem pássaros








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