sento-me
em mim. a hora é do corvo. profunda. desmonto
os olhos do presente e percorro os quadros pendurados na parede à minha direita
– as fotos confirmam que existo – afinal. não sou um produto de uma qualquer
máquina do tempo – sei que existo aqui e neste momento porque estamos todos nas
fotos – os que amo não se cansam de me olhar. ou talvez seja apenas a ilusão de
um instante preservado no tempo – mas para que não haja dúvidas com as fotos. o
melhor será citar decartes: “penso, logo existo” – e ali estou eu em mais
uma velharia fotográfica: cara
sisuda. cabelo escuro-jovem. calça bege. blusão de bombazine castanho.
mãos nos bolsos e uns óculos enormes contra o sol do mundo – os olhos sempre
foram a minha vulnerabilidade – os índios americanos não gostavam de tirar
fotos porque acreditavam que estas lhes roubam a alma – não sou índio. mas acredito
nessa crença – não sei se foram as
fotos. mas alguém me roubou a alma.
alguém me esvaziou por dentro – apostava o pescoço em como perdi a alma pelos
olhos. não há um único dia em que
não me doam – enquanto tive alma nunca deixei que o futuro me assustasse – não
tinha medo de nada. o corpo estava
sempre aprumado. perpendicular à
ambição. num ar sério. como se transportasse em si um mistério. os olhos encovados. escuros. as mãos escondidas para que ninguém soubesse o que pensavam. e as
pernas sempre em posição de correr – sempre com um grande aprumo diante da avidez. não era vaidade. era segurança nas mãos – olho.
olho com o que me resta da vontade de olhar. olho com saudade. olho
com nostalgia. olho com raiva. olho com uma vontade furiosa de eliminar
o futuro estatelado numa parede pastel – as primeiras fotos são de um cinzento-ingénuo. aberto à coloração. imaginativo. num confiante forte-opaco.
a contrastar com a moldura faia-clara – ao lado. numa moldura mais escura.
sobressai o cinzento-dúvida. com a
tonalidade a puxar para a solidão.
para o retiro. mergulhado em
pessimismo e numa vontade única de fazer apenas o que estava certo – há
cinzentos que nos enganam para a vida toda – ainda não tinha percebido que para
sobreviver é necessário aceitar o
erro. ultrapassá-lo. moldá-lo até se tornar invisível. ajustá-lo às necessidades da maioria. programá-lo para o sorriso enganoso e
fazer de conta de que aceitamos aquela velha máxima: errar é humano – nunca foi bom a fazer de conta – para mim. o erro. nunca foi humano. com o erro uma parte da minha
confiança morria de amargura – nunca fui capaz de recuperar destes erros –
nunca aceitei o erro e isso trouxe-me um erro ainda maior: a busca de uma perfeição imaginária – nas últimas fotos.
encontrei-me num cinza-triste. corroído. pouco afetivo. zangado. e onde o prumo dá indícios de estar preso por um fio –
ninguém aguenta tanto cinza-triste estampado numa parede bege-pastel – *“a felicidade não é um ideal da razão.
mas da imaginação”
*imannuel
kant