nota
de autor:
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“desapareci” por uns tempos do ciberespaço para escrever este “pequeno-tratado-pessoal”.
são cerca de vinte e quatro páginas. um ensaio pessoal sobre o [meu] ato de
comunicação. a escrita que produzo como emissor. como eu-artista ou [também] como
eu-lírico. confesso que. com menos frequência – do outro lado. em anonimato quase
sempre absoluto. o recetor-leitor. o recetor-amigo mais ou menos próximo. mais
ou menos silencioso. crítico. ponderado. com capacidade de reflexão e
principalmente. com sensibilidade para me ler as pausas. a pontuação e as
entrelinhas – um desafio para quem gosta de ler e um risco para quem gosta de
escrever – sei que em cada palavra escrita serei menos meu e mais de quem me lê
– quase toda a minha escrita é autobiográfica – como diz alberto manguel: “O
autor morre quando põe o ponto final. O leitor nasce a seguir” – nem sempre é
fácil escrever o que trazemos no miolo da alma. a dificuldade torna-se
desespero e o apelo interior para fugir ensurdece – escrever dá trabalho para
caraças – mas há coisas dentro de mim que nunca se tornarão palavra. coisas que
só o coração sente e que por mais esforço e entrega nunca chegarão ao leitor – não
sou mestre o suficiente – em boa contramão. há a bondade do leitor-amigo e
também do leitor-anónimo que. graciosamente. se entrega a decifrar uma mensagem
que. na maior parte das vezes. não passa de desabafo – para estes leitores-companheiros
o meu mais profundo agradecimento – e termino com um pensamento do saramago que
de certa maneira resume em muito a minha motivação para escrever - “No fundo,
todos temos necessidade de dizer quem somos e o que é que estamos a fazer e a
necessidade de deixar algo feito, porque esta vida não é eterna e deixar coisas
feitas pode ser uma forma de eternidade”
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introdução:
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“Não
vale a pena ter vaidades no processo, porque o que existe de facto é o leitor”
– josé ilídio torres
foi com esta frase do meu amigo josé torres. poeta.
professor. treinador no futebol de formação. político. pai. companheiro e fazedor
de sonhos enquanto escritor que dei início a mais esta minha crônica-lírica-dissertativa
– conheço o josé torres vai para caminho de quinze anos [não sei ao certo e não
sou bom nas contas de tempo]. nunca imaginei que o tempo fugisse tão depressa.
é tudo tão rápido. tudo tão estupidamente acelerado. desconcertante e ilusório.
de repente já não sou novo. já não escrevo sem cadeira almofadada. sem óculos.
sem uma pomadinha nas costas para combater os bicos de papagaio e
principalmente. sem aquela resmunguice de quem envelhece contrariado – o
problema nem está na idade. está na memória. nas recordações da juventude. na
infinita alegria de ser jovem e irresponsável. nas correrias sem cansaço. na
esperança inesgotável com que olhava as mãos. na mobilidade do cérebro. sem
medo. selvagem. irrequieto. sempre à procura do impossível. do difícil. do
perigoso. enquanto a adrenalina produzia sonhos e sorrisos em série. tudo em escala
XXL – os dias eram intermináveis. acordava com os braços a tocar os polos. a envolver
o mundo de peito aberto que me prometia em surdina vida eterna – a fragrância
da juventude eram duas gotas de patchouli
misturadas com a certeza de que o mundo sempre nos haveria de arranjar um
cantinho para viver. muita loucura. excentricidade. irreverência. cabelos
compridos. bota bicuda de salto alto. blusão de ganga lois e o corpo a gingar
ao som da guitarra de david gilmour. que afogueava o tino para as primeiras pastilhas
lipoperdur – viver era uma dor fantástica – mas não há volta a dar. nada volta
ao passado – fico sem saber ao certo se o que dói hoje é um problema que parte
do geral para o particular. do corpo para a alma. ou se. pelo contrário. a dor
nasce na alma e alastra-se ao corpo no seu todo – bem… não adianta lamuriar. o
único remédio que conheço para combater o tempo é escrever. escrever muito. se
possível bem. mas se não for possível. então… que se escreva mal. porque
enquanto se escreve não há idade – no meu caso o assunto é ainda mais sério. nasci
sem uma única palavra dentro de mim. disléxico e completamente desprovido de
qualquer tipo de acordo ortográfico. tudo o que rabisco é feito com trabalho. à
sacholada. ao suor e à teimosia – ultimamente só a escrita me faz
verdadeiramente feliz – isto tudo para dizer que conheci o josé torres no luso
poemas. um site para gente que gosta de escrever. e por mais que envelheça e
que a memória se torne decrépita. a entrada nesse grupo de poetas foi um momento
marcante: o luso e os seus membros trouxeram-me definitivamente para o mundo da
escrita. fizeram-me bem. fizeram-me sonhar. fizeram renascer essa dor
fantástica que é escrever – vou escrever pela primeira vez algo que nunca tive
coragem: o luso amarrou-me à vida. deu-me uma nova oportunidade para me
reinventar como homem. salvou-me de uma ociosidade inútil e profetizou a imortalidade.
deu-me uma nova ordem no tempo. repensou prioridades e renovou-me a confiança
nas mãos – todos os dias digo para mim: não quero morrer sem deixar uma última
palavra escrita – sou um homem grato a essa boa gente do luso poemas – o zé
torres era e é um fazedor de sonhos desse mundo da escrita. pertencia a um
grupo restrito de escritores que estavam muito acima da média dos restantes
companheiros – gozava-lhe a paciência e pachorra era um desafio. não era fácil
aturar a mediocridade de tanto ego balofo numa casa enfestada de poucos poetas
e muitos não poetas – hoje. sem nenhuma dúvida. estaria muito melhor preparado
para ler alguns dos seus textos corrosivos e mal amados – para se escrever é fundamental
amar as palavras. sem vaidade. com humildade. com vontade de aprender e
sacrifício – bem sei que não há escritores perfeitos. nunca haverá. mas há aqueles
que brigam todos os dias com a imperfeição – aprendi muito desde esse primeiro
dia em que ganhei coragem de escrever para o leitor – é pelo leitor que releio os
meus textos vezes sem conta antes de os levar para o ciberespaço. é por ele que
fico nervoso. fico feito de medo. fico com as mãos trémulas e em oração – bem
sei que quem dá tudo o que tem. a mais não é obrigado – que vos posso dizer
mais… não sei. talvez repetir o que não me canso de dizer: escrever dá trabalho
pra caraças – o que sei mesmo é que uma folha de papel para se imortalizar. só
precisa de uma palavra escrita – mas eu escrevo apenas para falar com o leitor
– e basta-me um para me fazer feliz
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e
aqui estou eu novamente… escrevo. escrevo o que sei e
posso e também o que me dá na real gana – confesso que estou aterrorizado com
as palavras. dito de outra forma. com a sua ausência: desapareceram de mim. abandonaram-me.
desprezaram-me. ostracizaram-me. nem uma ficou para me iludir – estou
completamente só. até de mim também – não é fácil escrever quando estamos
sozinhos. ausentes do corpo e da humanidade – dito de modo direto e objetivo.
ausente num todo: do mundo. dos amigos. dos menos amigos. da memória. das mãos.
dos ossos. da carne. da realidade e do discernimento para distinguir a palavra criativa.
próspera. cativadora e amiga. da palavra tosca. que chega ao papel aos repelões.
raivosa. inútil. um desabafo hostil – mas é assim. há coisas que não controlo.
bem que gostaria. mas não dá. quando partimos do corpo deixamos tudo para trás.
até o critério. e um homem sem critério [de textualidade] não escreve.
gatafunha – para se escrever é necessário ter um propósito sério para a mensagem:
coerente. ponderada. mas também intensa na objetividade. reflexiva.
questionável. controversa. com um pensamento maduro sem perder a irreverência –
depois. é preciso escrever como quem conversa entre amigos: com calor. com paixão.
com magia. com envolvimento. capaz de puxar o leitor-amigo para dentro de si. sentá-lo
no seu interior com vista para tudo o que é seu. convidá-lo a sair do seu mundo
individual e dizer-lhe que apesar do seu papel passivo é ele. com a sua
interpretação. que termina todas as histórias – nenhum escritor sobrevive sem pelo
menos um leitor – o leitor é o centro do universo e todas as histórias gravitam
à sua volta – o josé torres tem razão. “Não vale a pena ter vaidades no
processo, porque o que existe de facto é o leitor” – cabe-lhe a ele depurar a
leitura. separar a palavra útil da inútil. a precisa da imprecisa. a ficcionada
da real. a que abraça daquela que diz: basta. esta é a linha que separa os
nossos mundos. daqui para a frente somos diferentes. acabou a tua história – só
a leitura une o autor ao leitor para sempre – um escritor precisa sentir-se
possuído. tomado. ocupado por um leitor provocador. desafiante. irreverente. exigente.
pois só assim será capaz de evoluir e partir à conquista de novos leitores com
novas histórias – um escritor não é um ser especial. pelo contrário. é um
carregador de palavras. um carrejão incansável que transporta no seu ADN o compromisso
evolutivo do homem com o progresso – a imperfeição é o primeiro passo para a
evolução. e o escritor-artista sabe isso melhor do que ninguém. por isso não se
cansa de questionar o que escreve – o escritor quando não escreve é infeliz.
então. parte à procura da felicidade. começa a escrever e rapidamente percebe um
paradoxo: se não escreve é infeliz. quando escreve é infeliz – será possível
ser feliz apenas por satisfazer o desejo de escrever? não. tal como o azeite e
a água não se misturam. também o escritor e a felicidade são incompatíveis – o
homem que escreve é um sofredor na procura constante da perfeição – ninguém como
ele se entrega à crítica. tantas vezes cruel. injusta e selvagem – aceitar o
erro. as imperfeições e as suas limitações são o seu grande desafio – ele sabe que
escrever é também uma arte de sacrifício e superação – o escritor persegue
sempre o perfeccionismo porque sabe que cada palavra escrita leva um pedaço de
si e da sua vida – assimilar. armazenar. amassar. dar forma e levar para o
papel a sua realidade – essa é a missão de quem gosta de escrever – um escritor
é um interposto de vários ADN que. quando cuidadosamente compilado com arte.
sacrifício e devoção. transforma-se numa mensagem capaz de transportar no seu
espírito força suficiente para mover e transformar toda a matéria do mundo
[eneida. de vergílio] – mas atenção. que ninguém se iluda. toda a mensagem é efémera
e volátil; por mais empírica. por mais precisa e verdadeira só se manterá
inquestionável enquanto permanecer silenciada e oculta no interior do seu
criador. depois da criação artística. depois de entregue à leitura será o que
cada leitor quiser que seja – a minha verdade não existe fora do meu corpo – cada
leitor construirá a sua verdade – mas sou o que sou neste momento que escrevo.
e sei que todos os botões de comando sobre mim avariaram. não é apenas falta de
pilhas. não. desta vez é avaria total. entrei em combustão depois de um pico de
tensão – estou a incandescer de medo e de pânico. o odor a palavra carbonizada
é nauseante. enjoativo. e a eloquência fumega rumo ao eterno – tenho que me aguentar
com coragem. sei que não há mal que sempre dure. nem bem que nunca acabe – estou
moribundo. amarrado à palavra por um fio. no termo da esperança. a lutar. a
pedir a deus que me devolva a alegria de escrever. que me devolva o dom da
escrita. que me devolva a esperança – estou “in extremis”. diria até que a
palavra. esperança. é o meu suporte avançado de vida: enquanto houver vida. há
esperança – acionei a reserva motivacional para situações de catástrofe. tenho
que me aguentar. estou em modo insignificante. paralisado. vazio. desabitado de
palavras bem-falantes. modestas ou motivacionais. estou um farrapo – escrever
exige vontade. tempo. solidão. silêncio e eu estou sem vontade. sem tempo.
confuso e com o corpo cheio de barulho – pela milésima vez procuro dentro de
mim o que raramente encontro: magia para escrever – quando não há magia não se
escreve… apenas se sobrevive no passado – com a escrita reescrevo-me. aguento-me
de pé. amparo a mediocridade e no imaginário o ombro amigo. protetor. fiel.
afetuoso. zelador. a dizer numa cautela carinhosa: tem calma. isto passa. um
dia. sem dares conta. estás com dez páginas escritas – aguento serenamente… nem
uma palavra ressabiada me chega à boca – sinto-me às portas do inferno. só a escrita
me protege de uma loucura prematura. mantém-me vivo e esperançoso – mesmo
quando não escrevo estou exposto ao escrutínio dos leitores. o passado de quem
escreve é sempre feito de palavras e estas nunca morrem – enquanto houver um
leitor serão eternas. são para sempre. vivem como se tivessem chegado ao papel
neste momento e o cutelo de quem lê no ar num cai não cai. afiado e sedento de
dor. a reprovar pelo abanar da cabeça. a magoar pela vacilação. mata ou não
mata – para sobreviver escrevo porque. sempre que escrevo. crio uma vida. uma
atrás de outra. tantas como folhas de papel – não é fácil escolher escrever
quando o subconsciente grita: vai pentear macacos. ou dedica-te à pesca – caio
em frustração e desapareço do word. escondo-me no silêncio e interrogo-me em
mil e uma coisa que não sei responder – se tinha dúvidas antes de me esconder
agora tenho o dobro. escondido não sou de ninguém a não ser de mim. sozinho
falo apenas para mim e ouço-me como se cada palavra representasse uma multidão em
berros e em uníssono ouve-se: vai-te embora. rua. rua. já não há pachorra –
sentado nesta cadeira onde nem consigo assentar os pés no chão. olho para a
imensidão do mundo que tenho à minha frente e interrogo-me: vale a pena
continuar? será perseverança ou teimosia? tenho tantos livros no meu pé-de-meia
de leitura. tanta gente que dedicou a vida à escrita. ao estudo. à procura do
mais certo para dizer o incerto. e eu aqui. como se o meu computador fosse uma
arma de destruição maciça. a tentar vender gato por lebre – valha-me deus nosso
senhor – se antes já achava a minha escrita medíocre. até como amador. ao relê-la
pergunto-me como fui capaz de rabiscar aquelas barbaridades – diz-me. por favor.
meu senhor. como fui capaz de escrever estas maluquices? não acredito. estarei
no meu tino? não fumo. não me drogo. não bebo e não tomos pastilhas a não ser
para umas maleitas passageiras – será então o quê? algum encosto? uma alma
penada? um antepassado que não encontra o caminho da luz e se diverte a fazer-me
escrever tontarias? não sei. talvez o defeito seja mesmo meu. nunca deveria ter
enfiado na cabeça esta coisa das letras. tanto jogo para jogar na internet. tanta
mulher nua. cavalos e anões e logo tinha que encalhar no raio da escrita – não se
pode ser para o que não se nasceu – mas com a escrita há um sentimento que me
arranca as vísceras: de que poderia ter feito melhor – leio um texto e lá vem o
sentimento: podias fazer melhor – leio outro e novamente aquela erupção da pele:
podias fazer melhor – a questão é só uma. poderia ou não fazer melhor? confesso
que não sei – sei que dentro de mim existe a vontade. mas falta-me a magia no
interior das palavras – as palavras precisam de carregar um pouco de poção
mágica e. quando não têm. os textos não brilham no escuro – o pior é que não me
conformo com o que não tenho; e não tenho verbos no futuro. nem arranha-céus.
nem pastilhas para as dores de cabeça. ou máquinas de escrever com teclas
mágicas – escrever é simplesmente existir. é não me repetir. é baralhar o tempo
e inventar-me todos os dias no futuro – quando não escrevo. repito-me
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quando não escrevo. repito-me. torno-me insuportável.
maltrato-me. fujo dos espelhos como um vampiro. escondo-me atrás de uma folha de
papel e juro que a culpa não é minha. é do divino. de toda a gente. da casa. da
janela meio fechada que deveria estar entreaberta. do tempo. da porta entreaberta.
das alterações climáticas e do el-niño que me sacode as folhas e me atira ao
desespero – quando não escrevo. os olhos desalinham-se. as mãos engalfinham-se e
o corpo grita socorro para dentro porque por fora o mundo é surdo – ninguém
quer saber de quem escreve – estou triste. em desordem emocional. com a língua
descolorida. e os lábios secos escondem uma boca a saber a papel. o nariz
ranhoso. os canais lacrimais em conflito: chora. não chora. e o corpo. numa
pilha de nervos. desafia tudo o que se atravessa – a escrivaninha desfeita em desordem segura no tampo
o zumbido-assobio de um computador podre. geme de manhã à noite. está no fim.
dizem que se formatar fica para mais um tempinho – para quê se não tenho
palavras? está tudo um caco. tudo preso
por arames. eu também. e não me posso formatar. a idade já não permite. há um
limite no tempo para recomeçar tudo de novo. passei esse limite há muito – já
me avisaram que o melhor é não mexer muito. deixar-me andar até onde der – agora
tudo me amedronta. não sei o que é feito das palavras. não sei se foram de vez
ou se voltam com mais exigências – um dia fico sozinho – estou como o burro no
meio da ponte. sem saber se espero ou desapareça para dentro de um livro –
estremeço. alucino. a cabeça imagina a morte. os pulmões rasgam-se. os braços
deitam-se ao passado e remexem no que está escrito – reler alivia a pressão – e
o desassossego poderosamente instalado em tudo o que sou – bamboleio. caio. não
caio. desisto. não desisto. estou aflito. agoniado. não sei o que fazer. perdido.
sozinho. até de mim. e o desespero envolve-me com engenho: atiça o desalento. devora
coragem. corrompe a confiança – enlouqueço e tudo o que é louco está fora da racionalidade.
do equilíbrio. da tolerância. da esperança – um louco distorce tudo o que há dentro
de si. perde o uso da razão. desmorona-se em mil dúvidas e interrogações – a
escrita é a minha alegria – bem sei que posso sempre falar. santo antónio
falava aos peixes e não era louco. mas a fala é volátil. passageira. imprecisa.
e eu nasci sem saber falar. engasgo-me. a cabeça acelera a mil. as palavras
enrodilham-se no céu da boca. fico vermelho. desatinado e morro de vergonha – será
tudo obra do divino para me obrigar a escrever? – bem. confesso que não sei e
também não sei o que fazer para inverter este apagão comunicacional – apesar de
estar agitado e impaciente esperar é a única solução – quem espera sempre
alcança – confesso que estou preocupado. estou nos limites da tolerância – arfo.
interrogo-me se terei caído num abismo sem misericórdia. sem bondade. sem
retorno – que destino está reservado para mim? não sei – penso. quem pensa
existe – não posso desistir. já desisti de tanta coisa. já não tenho idade para
desistir de mais nada – a cabeça pensa com terror. procuro-me. rodeio-me com o
que me resta de ambição. teimo. mexo-me de um lado para o outro. os pensamentos
também e as mãos revoltadas perseguem-nos. é agora ou nunca. pelo menos um
tenho que agarrar. tem que cair de cansaço. um pelo menos tem que chegar ao
papel. um. não é preciso mais. basta um para me despertar desta nostalgia
enfadonha. basta um para que as palavras me subam pela coluna vertebral e
ejacule. basta um e fecundo o papel de tudo o que sou. basta um – basta um para
me eternizar no tempo – o meu estado de alma está baralhado. confuso.
perdido e sem rumo. nada em mim é firmeza. coragem. liderança. estou para aqui –
e agora. quem toma as rédeas do corpo? quem diz se sento ou não sento. se deito
ou não deito. se parto a jarra ou não parto. se mando tudo para o caralho ou
não mando… quem?... não sei. não sei mesmo. sinto o cérebro dividido por um
muro de betão. de um lado o que sou. do outro. o que quero ser – do lado esquerdo.
a norte do hipotálamo. uma criança amuada gargalha enquanto se rebola nos
neurónios esfrangalhados por um texto diabólico da clarice. um texto destes
pode matar qualquer leitor – do lado direito. a sul do mesmo hipotálamo. uma
criança malabarista. de barba por desfazer. fala com animais enquanto atira
para o ar livros em branco. todos os dias repete o ritual. fala com os animais.
atira livros. espera. volta a falar com animais. atira livros. espera. desespera.
e a mão de atena sem chegar – os dias repetem-se e os livros em branco
continuam no ar – que raio me aconteceu. estou doentio. a perder-me. não posso
esquecer que nasci em abril. nasci em revolução. de cravo ao peito. em palavras
de ordem: a escrita a quem a trabalha. o escritor é quem mais ordena – serei
abril até ao meu último suspiro – estou adoidado. olho para o que sobra de mim
e vomito. vomito-me pernas a baixo. estou um esterco. mas estou aliviado. estou
pronto para recomeçar o que verdadeiramente nunca acabei – quero mais do que já
tive. quero a mesma ambição. o mesmo cheiro a papel. às letras. às
concordâncias. às combinações do plural e o mesmo barulho do mundo a correr
como se todos me quisessem roubar o que penso – e a confusão a enlaçar-me o
pescoço. esganado e a palavra da salvação debaixo da língua. teimosa como nunca.
encutinha-se atrás de um dente que não é do siso e jura resistir até à morte –
estou desabitado de tudo – não sei o que dizer. juro que não sei. digo que os
rios correm para o infinito do mar. quantos milhares de poemas fazem os rios
correr para o mar. quantos falam de um amor de bosta. quantos falam de porra
nenhuma. e eu com a mania das grandezas nunca estou bem com porra nenhuma que
escrevo – não sou humilde. não deixo que a porra de um rio me leve até ao
infinito do mar. não me deixo naufragar numa garrafa de rum. não deixo que a
moby dick me engula e me regurgite para dentro de numa história infantil – um
dia vou pagar por esta altivez – não é justo viver assim. não é fácil. eu só quero
escrever uma história – quando escrevo sou criança. quando escrevo sou uma
criança de júlio dinis – só quero ser criança e escrever. mais nada – tudo isto é o que quero ser. quase nada.
nem sei se algum dia poderia ser alguma coisa do que não sou – confesso que nem
queria ser nada de especial. nunca quis ser grande coisa. com o tempo fui
percebendo que o mundo fabrica coisas que não são para mim – nunca soube se a
culpa dessa exclusão era minha ou do mundo – mas não importa. tenho o essencial.
uma mulher que amo. filhos que me adoram e dois cães que me idolatram. abanando
a cauda o dia todo – gosto de cães. gosto da forma como me olham e me envolvem.
gosto da sua lealdade e da tolerância para com todos os meus absurdos – tenho
um cão. quase lavrador. aqui em casa não há raças puras. eu também sou quase escritor.
quase parvo. quase um cavalheiro. sou quase tudo o que gostaria de ser. mas não
sou – o quase que se lixe. mas voltava ao que dizia. tenho um cão que se deita
ao meu pé enquanto escrevo. enrola-se em posição de quem sabe que a noite será
longa. em estado de invernação e contemplação interior. sabe que nada pode
interferir entre o barulho de teclar e a melodia ritmada de johann sebastian
bach – ali fica embrenhado em si: olhos fechados como se estivesse hipnotizado
pela fusão de bach com o teclado – invejo-lhe aquele descanso dócil. leve e tão
genuinamente bom – sempre que teclo com mais força abre um olho. faz o
barramento do meu estado de alma. três segundos em meditação interrogativa… está
tudo bem e volta a entrar para dentro de si – para além de me fazer companhia.
creio que a sua missão mais secreta é não permitir que nenhuma personagem me
fuja pela porta fora – nas revisões dos textos faço questão de ler em voz alta.
olha para mim. fixa-me os olhos. atiro-lhe com um sorriso e tento perceber se
está tudo bem – não adianta. não lhe apanho nada. o brilho nos olhos ofusca-me os
sentidos. fico com a ideia de que para ele. tudo que faço ultrapassa a
excelência – ficamos engastalhados no olhar. fico louco por o abraçar. o silêncio
é profundo e interminável – a sua amizade por mim é incondicional. somos amigos
e os amigos. como diz elbert hubbard. é aquele que sabe tudo a meu respeito e.
mesmo assim. ainda gosta de mim – por fim volta
a enroscar-se em si e eu imito-o e enrosco-me também em mim – escrever é isto
mesmo. enroscarmo-nos em nós e imaginarmos um final feliz para um texto quase
todo infeliz – eu não quero ser nada especial. quero escrever… mas… faltam-me palavras para explicar o vazio que
as palavras deixam – quando não escrevo repito-me
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quando não escrevo. repito-me. perco-me em mim. torno-me insuportável.
emudeço e desfaleço. sinto a morte. quer dizer. penso que é a morte. mas não
posso garantir. nunca estive com a morte – diria que me sinto numa quase-morte.
saio do corpo e vagueio. entristeço. turvo. desfoco do essencial e a escuridão
toma posse do desejo: primeiro ataca as mãos. depois. o corpo começa a resfriar.
a temperatura cai e os órgãos mais importantes irritam-se. desorganizam-se e
dão o primeiro sinal de que podem colapsar. fico impaciente. não consigo
respirar. resfolego. a pele enrubesce. as unhas param de crescer e o corpo
começa a apodrecer lentamente. cambaleio. os olhos perdem brilho. a tristeza apanha-me
o coração e interrogo-me se realmente é possível morrer por falta de palavras –
fico exausto. cansado e com a tensão arterial completamente descontrolada – não
há de ser nada – o que me inquieta mesmo é sentir o odor da morte. a sua
vontade de ceifeira e o *“som da bigorna, como um clarim do céu, Vão dizendo em
toda a parte: - O escritor [pintor] morreu.” *zeca afonso também conhecia a
morte e sabia quando ela saía à rua – eu também sei. só não sei se sai à rua
para mim ou para as poucas palavras que ainda tenho – quando estou neste estado
de quase-morto. tudo o que identifico é a tristeza – ninguém entende esta minha
mágoa. nem tão pouco a sei escrever. ou desenhar. ou transformá-la num poema de
rimas cruzadas e cantá-lo como braço armado do desespero – não sei de onde veio
nem como me entrou no corpo e muito
menos o que fazer para me libertar desta dor que não para de magoar – tocam
os sinos da igreja da minha paróquia. o badalo anuncia defunto. não há morte nem
funeral sem o toque do sineiro. são os mensageiros das más notícias em terras
pequenas – o sineiro de tibães diz que. se o badalo do sino deixar um ronco. um
rasto. um 'ohhhhhhhh' que não quer parar. é sinal de que morreu ou está para
morrer outra pessoa na paróquia – estou na dúvida se o sino roncou. não sei ao
certo. acho que sim. confesso que estou com medo. não tenho medo da morte.
tenho medo de não concluir três ou quatro manuscritos que julgo importantes
para quem é próximo – vou estar atento. vou deixar um ouvido no adro da igreja de
vigia ao sineiro – mas ainda estou vivo. sei-o porque respiro e sei-o porque não
há ronco nem ceifeira por perto e tudo farei para que assim continue. não tenho
intenção de subir para o cimo do meu espólio literário para me fazer
desaparecer do mundo. nunca poria os pés em cima do conde de monte cristo. do
dom quixote. do tolstói. do pessoa. do gabriel garcía márquez. do camões ou do
meu querido júlio dinis. nunca. por eles seria imortal – resistirei até que me
chegue a palavra às mãos – toda a palavra que me chega às mãos respira e faz-me
respirar. e quando respiro. o corpo acredita na vida eterna – sem palavras não
sou nada – mas também não quero ser nada para além de falar com o que escrevo.
não quero nada que me faça ser o que não quero. nasci para escrever. quero escrever.
quero ser… sei o que quero ser. mas também sei o que não posso ser – hoje. só quero
que nada me aborreça – é tudo o que sei – no futuro. num outro dia. talvez
queira ser um saca-rolhas para arrancar de mim este desassossegado maldito. ou um
garfo luís XV rococó para levar alimento à alma. ou uma toalha de rosto em
linho do egipto para enxugar a amargura. um biombo de bambu para me proteger de
todos os que me apontam o dedo ou então. uma caixa de fósforos para incinerar
todos os meus maus momentos e por fim. já que mais nada me ocorre pelo cérebro.
gostava de ser um automóvel de velocidade. descapotável. a galgar quilómetros
de indiferença pelo mundo. sem medo do tempo. a deixar para trás o passado e o
futuro é o pé no acelerador a rasgar vento generoso – e o corpo centrifugado
das impurezas pede mais vento e mais velocidade – e a boca a falar desapaixonada.
com calão. a mandar foder o que fica para trás e pela frente tudo que vier por
bem será bem vindo – e o carro a roncar por um “bufante” duplo. cromado. a
expelir fumo branco e em mim um estrondoso sentimento de habemus nova vida –
não quero mais esse gajo do passado. não o quero mais a comandar o corpo. a
dizer isso não se faz. não é bonito. olha que as pessoas podem não gostar. olha
o que vão dizer os correligionários. a confraria não permite. um homem que
gosta de escrever não faz isso e blá blá e rebeubéu. pardais ao ninho – quero
velocidade. quero que tudo se lixe. não tolero mais imposições ou limitações – cuspo
pela janela. com ranço. grito palavrões e curvo em contramão. paro nos verdes e
faço caretas e acelero. o carro ronca. os pneus plissam e arranco em alta
velocidade em direção a um mundo desconhecido com um sorriso de orelha a orelha
– sou livre – no retrovisor. os olhos expulsos do passado fazem-me existir para
uma nova vida – agora sei que existo porque me vejo no retrovisor – olho para o
retrovisor. olho para mim. volto a olhar para a frente. a estrada afunila-se. acelero
ainda mais e olho para um mundo
que me deseja e dentro de mim a dúvida: se não houvesse retrovisor existiria?
volto a olhar para a frente e o futuro entra-me no que sou – o que ficou para
trás já não tem importância – e eu sentado na boleia da velocidade a recolher o
que me chega pela frente do carro. eufórico. abro e fecho o tejadilho. carrego
em botões. tudo é novo. tudo é presente. tudo é automático. subo e desço o
vidro lateral. ligo os quatro piscas. mas não vou com pressa. vou com
velocidade. mas sem pressa. ligo o rádio e a RFM anuncia uma sequência de dez
músicas seguidas sem publicidade. mudo para a TSF e esta divulga a morte de um
casal de gaivotas em lua de mel. um camião desgovernado ultrapassou a faixa de
rodagem e apanhou o jovem casal – não estou para tragédias. passo para antena
dois. nada como umas batidas de jazz de new orleans para retemperar corpo e alma – estou em mim. ouço-me na
música de charlie haden e pat metheny. a última vez que ouvi esta melodia foi
no funeral do meu pai. estávamos num dia de março solarengo e fresco – soprava
uma brisa de paz. era dia do pai. meu também. o mundo estava parado. todos os
carros estavam parados. não havia velocidade nem curvas em contramão. só as
vendedoras de flores corriam. só as flores sorriam. as nuvens quase paradas
encobrem a casa dos crentes. o céu desapareceu e eu também desapareci de
mim – as andorinhas voam baixinho – há um cheiro no ar a despedida – o coveiro.
finge que as últimas exéquias são um ritual de fé. de sentimentos e de convicções.
com cara de sofrimento. acaricia a pá das habilidades fúnebres. é ele que faz
desaparecer toda a réstia de esperança da ressurreição – o silêncio misturava a
família. os amigos. os curiosos e o padre. estávamos todos em sua volta. o meu
pai sempre gostou de ter as pessoas em sua volta – o sr. padre pedia a deus
para receber em sua casa o meu pai. eu pedia-lhe para não o tirar da minha. o
sr. padre falava em fé. eu prometia raiva. o sr. padre falava em vida eterna.
eu falava em vidas desfeitas – chegou a hora da água benta e eu ali de pé. estático.
gelado como o meu pai. a pedir-lhe perdão e o corpo virado para o céu. branco.
sem dores. com as mãos cruzados como se me quisesse dizer que a luta dele tinha
acabado – dou-lhe o último beijo. as portadas fecham-se. a fechadura range.
chamam por mim e entregam-me a chave da vida – quando caiu a primeira pá
de terra tudo desapareceu. e eu desapareci também. um buraco negro engoliu-nos para sempre – nunca recuperei
dessa separação – o funeral é o reconhecimento da morte. é o cais de embarque
para uma viagem que não tem retorno. é na verdade o último adeus – perdi-me.
passaram vinte anos e eu ainda ali estou a ver a terra a cair – o meu pai
faz-me muita falta. um dia destes vou-me encontrar com ele. vamos falar. eu sei
que adora falar – apago o rádio. não estou para nostalgias e muito menos para
viagens ao passado num carro descapotável – adoro velocidade. adoro estes carros modernos que tem
mais botões e alertas do que eu imaginação e quando alguma coisa está a correr menos
bem. as luzes e as sirenes não dão sossego: se não colocas o cinto de segurança
apita. se o óleo desce a luz vermelha acende. mas se a temperatura sobe acende
outra luz ainda mais vermelha e se colidirmos com alguma coisa. abre-se um saco
cheio de ar que evita batermos com a cabeça na parede – se tivesse um sistema
destes na minha juventude tinha evitado muitas cabeçadas. mas não havia – estes
carros modernos são o máximo. nem deus fazia melhor. gostava que um dia
inventassem um destes balões para quem escreve. tenho a certeza de que evitava
muita cabeçada literária – olho-me novamente no retrovisor. sempre que me olho.
vejo-me a chegar do futuro. tudo o que vejo já não existe à frente de mim.
existe apenas no retrovisor. existe apenas no passado – basta uma milésima de
segundo para que tudo se torne passado irreversível – tiro os olhos da estrada
e o futuro já deixou de ser futuro para ser o passado no retrovisor – gosto
destes carros que seguram a vida pelas rédeas. fazem-na presente e num coice
atiram-na para o passado – gostava de ser assim – e eu num carro de alta
velocidade. ao comando de um volante que gira como o mundo. com uma buzina ao centro
para anunciar a minha chegada à indefinição: quando parar o carro olho para a
frente ou para o retrovisor? não sei. sei que buzino para anunciar
a minha chegada – agora tudo o que tinha para escrever ficou para trás. não me
serve para nada – não se pode viajar a alta velocidade sem ter ao lado papel e
caneta para tirar apontamentos – a velocidade é inimiga dos coxos e dos
sonhadores. e quando damos conta. estamos no fim da corrida e não trouxemos nada
connosco. nem uma muda de roupa – tenho saudades da minha bicicleta. dos
joelhos esfolados e daquela sensação de que as subidas eram maiores do que as
forças. mas no fim do dia. as pernas chegavam sempre onde queríamos – era o topo
do meu mundo – não quero saber de carros. nem de bicicleta. nem dos pés que me
trouxeram até aqui. se pudesse escolher ia diretamente para dentro de uma
caneta. deslizar em tinta. preta por ser a mais parecida com o futuro. com um
aparo grosso. roller baal. personalizado com o meu heterónimo. em letra
desenhada. às curvas e contra curvas. para dar aquele ar de coisa distinta.
capaz de rubricar livros de fãs. ou escrever uma enciclopédia. com capítulos. dividida
por letras do abecedário. com capas grossas. próprias para ficarem em estantes
de escritórios ou bibliotecas. lugares chiques. lugares de gente que sabe
escrever. lugares de outro mundo – mas não sou. nem tinta. nem caneta. nem
sombra do que poderia ser. e não sou porque o destino é o que é – não gosto de
falar de destino – não acredito nessa ideia de nascemos com o destino traçado. falamos
do destino como desculpa para toda a palermice que se faz. eu fiz muita – que
se lixe o destino. os carros descapotáveis e as velocidades. que se lixe o
resto. só não quero que se lixem os leitores. eles fazem-me muita falta. são
eles que me animam e me dizem que ainda é cedo para morrer – ainda quero ter
palavras para amanhã – quando não escrevo. repito-me
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quando
não escrevo. repito-me – aqui estou eu novamente às
turras com a minha prosa. que raio de amor arranjei. que raio de amante
encontrei – o que vos garanto é que não é vaidade. arte também não. nem
alvissaras por vos trazer para o papel o que não sei falar. para falar a verdade.
escrever é um género de hemodiálise. uma terapia de sobrevivência. limpo o
sangue. purifico-me e saio para a vida mais justo. mais compreensivo. mais tolerante
e mais bonito. ficamos sempre mais bonitos quando estamos bem – gosto de andar na rua bonito. gosto de ter o
sapato a brilhar e a camisa branca. engomada. passada de todas as vincas.
alinhada com o que sou. com o corpo e com a alma. gosto de me sentir a sorrir e
gosto de sentir sorrisos em contramão – o mundo é feito de sorrisos. uns maiores
do que outros. mais intensos ou menos intensos. mais sinceros ou menos sinceros.
feitos à medida ou contrafeitos e ainda outros feitos à mão. ou bordados. ou em
ponto cruz. mas sempre com afeição – há sorrisos para todos os gostos e valores
– gosto da mulher que sabe sorrir. da que amamenta. da que sobrevive numa
máquina de costura. da que pinta. da que ensina. da que lava o chão e também daquela
que corta o pão. curvada para a terra. gosto de todas as mulheres que sorriem. nem
que fosse apenas pela minha mãe que era mulher – também gosto do homem que
sorri. principalmente daquele que prefere sorrir do que aguerrir. do escultor.
do que trabalha a madeira. do doutor. do que cura os males do corpo. do que
anda no mar. do que combate o fogo e do que corre atrás do ladrão. gosto do
sorriso de todos os homens. nem que fosse apenas pelo meu pai que era homem –
há sorrisos mais importantes do que outros. como o sorriso da justiça. que
quanto mais cega melhor sorri ou o sorriso da gioconda que com arte sorri para
toda a parte sem nada apartar – mas que seria de mim sem o sorriso da natureza.
da chuva. dos rios. dos peixes. das montanhas. das andorinhas e das águias que
voam sobre a luz de lisboa – gosto do sorriso das flores quando chega a
primavera. das amendoeiras. das macieiras. dos morangueiros e do castanheiro que
protege o seu fruto com espinhos argutos e endiabrados – também gosto do sorriso
dos animais. dos mais ferozes e dos inofensivos. dos que rastejam e dos que
voam. como as gaivotas. do meu cão e do gato da minha sogra. dos dinossauros
que não conheci e de todos aqueles que lutam para não desaparecerem – gosto do
sorriso da noite. da lua. da estrela polar. dos cometas. de vénus e júpiter e de
todas as galáxias. das suas poeiras cósmicas e dos seres que um dia nos
visitarão – gosto do sorriso de quem acredita no que quer acreditar. de quem
tem esperança. de quem tem fé. não há sorrisos bonitos sem fé – há que ter fé
para sobreviver. não para sobreviver no mundo que habitámos. mas sim no mundo
que fizemos crescer dentro de nós – eu preciso de muita fé e confesso-vos que
ultimamente tenho-a perdido quase toda – mas ainda não perdi a fé na escrita. por
isso escrevo. escrevo para não me repetir. escrevo para renovar a confiança. escrevo
para encontrar outra forma de vos entregar o meu sorriso – escrever faz-me
sorrir – sempre que escrevo trago para dentro do meu castro o leitor. acomodo-o.
dou-lhe “free pass” de infinita permanência e entrego-lhe nas mãos tudo o que
sou. com um sorriso de boas-vindas – fecho os olhos e delicio-me com a
subtileza de como caminha. com elegância. distinção. aprumado. sem embarrar em
nada. como um anjo. ou luz. ou qualquer coisa que nos ocupa sem ocupar. nos
visita sem visitar. nos condiciona sem condicionar e passeia sem machucar. como
se estivesse a visitar uma feira artesanal de vidro onde copos e copinhos se
empilham pelo chão num equilíbrio crítico. e para cada passo um alerta escrito
a vermelho: frágil. cuidado. pode partir – e o anjo-leitor-luz. ou outra coisa
qualquer. caminha como se voasse. atentos. cauteloso. redobrando os cuidados na
compreensão e na avaliação – dentro de mim tudo a fluir como se não houvesse
gravidade. as palavras em suspensão. presas apenas à imaginação do leitor. ele sabe
que cada leitura tem uma história única – e sorrimos os dois. cada um à sua
maneira. sorrimos como se o texto nos seduzisse. estamos os dois felizes.
estamos no mundo desejado – quando estamos felizes a morte não existe. existe
apenas o perigo de morrer. mas ninguém tem coragem de matar a história com um
ponto final. ninguém – e em cada emaranhado de letras outro aviso: sorria. está
a ser acompanhado. e ele quase a pedir desculpa por existir. e eu sem saber
como lhe dizer que a escrita é dele. sem ele não há existência. sem ele. repetia-me.
perdia-me. esgotava-me na inutilidade – meu deus. ninguém sabe como realmente
somos frágeis. inseguros e medrosos – escolher palavras é como jogar a roleta
russa. mais cedo ou mais tarde. haverá sempre uma palavra que nos derrubará
emocionalmente – os prosistas são homens sofredores. sós. silenciosos. marginalizados
e incompreendidos. quase sempre pelos que nos são mais próximos. não compreendem
a razão pela qual gastamos tanto tempo a
escrever o que ninguém lê – estamos no mundo digital. já poucos são aqueles que
usam o seu tempo livre para ler. comprar um livro e sentar-se no sofá. no
escritório. no metro. no autocarro ou ler aquelas duas páginas que nos fazem
dormir com os anjos. o leitor de livros está em vias de extinção – ler é um
aborrecimento – ainda mais difícil de explicar é a razão do sorriso de quem lê
ou escreve. por mais que se explique não adianta. estamos sozinhos – como diz
elbert hubbard: “nunca se explique aos seus amigos. não precisam disso e seus
inimigos não acreditarão em você de qualquer maneira” – para os que escrevem
com paixão a única companhia desejada é o sorriso do leitor – vivemos em
clausura – apesar da solidão todos os dias inventamos um mundo diferente. tudo.
diariamente. tem que cheirar a novo. até esta raiva com que escrevemos. hoje
matamos uma palavra boa para que amanhã possamos arrastar pelos cabelos uma má
– os prosistas não veem estrelas. memorizam-nas para que na noite seguinte. não
olhem para elas de novo – apesar da nossa solidão adoramos viver. adoramos
pessoas. tudo o que fazemos é para elas. mesmo para aquelas que não escrevem. que
não leem. que não ouvem o nosso silêncio. que nos afugentam. ou nos renegam – nada
nos importa. é-nos indiferente o que façam para nos escorraçar. o que importa
mesmo. é que nunca encontrarão uma palavra escrita para os magoar. respeitaremos
sempre a diversidade cultural. biológica. étnica. religiosa. linguística e até a
diversidade de quem opta por não gostar de livros. ou de escritores – o mundo
com cores é muito mais bonito – bem lá no fundo somos todos iguais. as cores é
que nos diferenciam – o que seria de nós sem o mundo das outras pessoas – não
queremos saber de carros ou mansões. não queremos saber de sangue ou heranças. bonitos
ou feios. crentes ou não crentes. o que realmente perseguimos é a perfeição para
o nosso estilo de escrita. a integridade gramatical. a bondade das palavras. a
lealdade ao camões. a gratidão por todos aqueles que carregaram às costas a
nossa língua ao longo dos séculos. a inteligência necessária para apreciar e
escrever as coisas simples. a tolerância para quem não nos reconhece artesãos
de uma arte de expressão e para finalizar. em jeito de desabafo. a procura
contínua da justiça para combater a forma menos nobre como somos tratados pelas
elites. tanta vez com desdém. com desapreço e com uma arrogância que nos magoa
quase de morte – que se faça justiça. mesmo que não seja a salomónica. aos que
escrevem com amadorismo. com amor. com esforço. com sacrifício. aos que dão
sentido à nossa alma lusitana. com esta forma de escrever que mais parece fado.
numa melancolia que não é desgosto. é orgulho. é paixão. são velas de imensidão
com a cruz da palavra lusitana – somos nós. os amadores e amantes da escrita.
que fazemos girar o mundo da literatura – somos os escritores do sacrifício…
queremos tão pouco. exigimos ainda menos – ninguém nos cortará as mãos. ninguém
nos apagará das letras – para existirmos precisamos apenas de ser uma coisa. uma
coisa com utilidade. de uso diário. temporário ou apenas para ocasiões
especiais. mas existir. existir e mais nada. ponto final – só existe o que faz
falta. nem que seja para um único momento – quando escrevo interrogo-me: qual é
o meu momento? a quem faço falta? que destino luta por mim? que ventos me servem?
que porta me deixa entrar se tenho medo de sair de onde vivo? não sei. se
soubesse escrever seria bem mais fácil – aqui estou a escrever. escrevo o mundo
que existe ao meu redor e outro que por existir apenas em mim ninguém sabe que
existe. mas escrevo mesmo sabendo que a interatividade se encontra cada vez
mais reduzida às mensagens light. tudo sem açúcar. sem calorias para não engordar
conversas. curtas. com frases motivacionais assinadas por nobéis ou inventores de
uma internet que se move à velocidade de um gigabyte por segundo. tudo para
durar um dia. como se fossemos borboletas – e o batimento de asas está cada vez
menos capaz de mudar o mundo – os raios de sol pedem aos pés uma sombra para
descansar – estou cansado – não quero nada especial do mundo. tudo o que quero
é um rádio a tocar uma valsa de viena – nunca gostei muito dos austríacos. não
tenho nenhuma razão concreta para não gostar. além da amizade que fizeram com
hitler. mas gosto das valsas e do apreço pela música. pelas artes em geral. também
gosto do musical música do coração que me faz chorar sempre que o revejo – quem
não viu música no coração? quem não deu um empurrãozinho para que o capitão von se apaixonasse pela maria
[julie andrews]. quem não temeu pela vida dos miúdos quando os alemães
irromperam pelo convento? todo o mundo viu esta história de afetos e viu também
o triunfo da música e do amor sobre os von trapp. rendidos aos cândidos cantos
e encantos de maria – gosto de tudo neste
filme. gosto das letras. das músicas. dos ritmos. das coreografias. dos
cenários. do capitão. das crianças e da maria. gosto daquela cadência acertada
do assobio afetuoso e aquele chamamento carinhoso e preciso da criançada. do
maior para o mais pequeno. e eles alinhados como se fizessem parte de uma clave
de sol – tudo me faz bem neste musical. tudo me faz acreditar num mundo bom. doce.
com um amor igual ao tempo dos meus pais. amor do coração. para sempre. meigo. tolerante
e o final igual ao dos livros do júlio dinis. o triunfo do amor. a vitória dos
bons sobre os maus – tal como dizia edmund burke: “para o triunfo do mal, basta que os bons não façam
nada.” – eu não me calo. escrevo – espero que a minha vida também triunfe sobre todos os males que
me acometeram – fazia-me bem. não pelo triunfo do que me lacerou o corpo. mas
pela vitória do bem que resiste em mim – gosto de filmes que me fazem chorar. o
meu pai chorava. mexia-se na cadeira. mastigava em seco e só não entrava pela
tela dentro porque não podia – se o meu pai pôde chorar então eu também posso –
mas lá estou eu a divagar. a escrita é tramada. basta uma memória e já temos
uma resma de papel escrita – nem deveria escrever sobre a música no coração.
nem sobre coisa nenhuma que me ocupe o coração. não é isso que interessa ao
leitor e muito menos para quem como eu se predispôs a escrever um “tratado”
sobre a escrita e o leitor – deveria estar a escrever coisas de interesse primário
para a este “tratado”. deveria explicar o que me leva a escrever estas
palermices e porque teimo em escrever o que só meia dúzia de crentes leem – não
sei. talvez porque sou um pateta. um fantasista. um excêntrico – acredito que no
futuro. próximo ou longínquo. alguém da minha linhagem será um escritor de
verdade. e quando alguém lhe perguntar como nasceu o gosto pela escrita possa responder:
creio que vem do meu tetravô. adorava escrever – guardo comigo uns quantos
rascunhos escritos por ele. passaram de geração em geração. era um homem
estranho. mas era também um homem bom. escrevia com o coração. morreu a
perseguir o sonho de escrever alguma coisa de jeito – lá estou eu novamente a
correr para onde ainda ninguém chegou: o futuro – tolo – acredito que com a minha escrita acontece o mesmo que nos retrovisores
dos automóveis. damos início a uma ultrapassagem. olhamos e nada vemos.
voltamos a olhar e continuamos a nada ver e quando já estamos a meio da manobra
ouvimos uma buzinadela. voltamos a olhar e… porra!!!! lá vêm um automóvel – há
um ponto neutro nos retrovisores que nos esconde a realidade. apaga-a.
ilude-nos. rouba-nos a verdade – é neste plano do retrovisor que acredito para
a minha escrita. neste ponto neutro. nesta ilusão negativa. neste roubo da
motivação. do sorriso e quando menos acredita. ali está o leitor em atenção. a
buzinar. a surgir de trás de um parágrafo. a reclamar a sua leitura com um like
– escrever é também acreditar no que não se consegue ver. diria que é essencial
confiar no invisível para superar as desilusões. as dificuldades. o desânimo. a
vontade para atirar tudo pela janela fora e para domar a raiva de procurar uma
palavra que não existe – é preciso acreditar. é preciso perder o medo – é com
este medo que vivemos em cada frase que escrevemos. e pedimos a deus: protege-me
bom senhor pois dentro de mim ainda tenho a tua criança – e o tronco amarrado a
uma cruz que nos deixa a cambalear. tonto. confuso e inseguro. já não se sabe distinguir
o verbo do sujeito. o que está bem escrito ou o que nos leva para um pelotão de
fuzilamento – escrever é esconder os olhos atrás de uma venda e pedir para que
a primeira leitura nos atravesse o coração como uma bala e nos enterre para
sempre no paraíso – para quem escreve a morte está sempre oculta nas leituras –
ninguém saberá se morremos de sorrisos ou de desgosto. só o leitor será capaz
de dizer que bala disparou – escrevemos amor. mas o que dói é o erro.
escrevemos paixão. mas o que dói é a mediocridade. escrevemos tolerância. mas o
que dói é a falta de bondade. escrevemos fé. mas o que dói é a rotina cinzenta
dos dias. escrevemos vida. mas o que dói é morrer sem atingir os objetivos –
escrevemos para enganar a dor de tudo o que não conseguimos fazer – haverá um
dia em que os sonhos ruirão. as mãos mirrarão e a falta de arte para escrever as
coisas simples reclamará a morte. será o momento certo para nos enlaçarmos num
verbo de transição e desaparecer em silêncio – ninguém nos pode roubar a
dignidade da partida – não sei dissimular este meu medo da vulgaridade. sempre
que disfarço a dor aumenta. os quadros caem das paredes. as fotos desbotam e a memória
confunde-se. começa a esbarrar com tudo que lhe aparece à frente e também com o
que estava esquecido. fico impossível para mim e para quem vive comigo. a minha
casa ausenta-se e os corpos que a habitam esvaziam-se de sorrisos – sento-me sozinho
a uma mesa que era de oito. arrumo todos os talhares a norte. empilhados. os
pratos ladeiros. um pouco ainda mais a norte do que os talheres. e à distância
de um braço o jarro de água quase vazio. um cinzeiro do outro lado dos talheres
está pronto a receber fumo e o meu corpo a pedir um último cigarro – jurei que
antes de morrer fumaria um último cigarro – um ex-fumador morre sempre com um
cigarro entre os dedos – não sei de onde vem esta minha tristeza. se das
palavras que não escrevi. ou das que escrevi. convencido que seriam as melhores
do mundo – não sei. o que sei é que
tenho os olhos a rastejar pelo tampo da mesa e na mão um copo em agonia. uma
gota a mais e transborda – esta mesa de família deixa-me louco. herdei este
lugar e já não o suporto. não o mereço. quero mudar de lugar. mas não sei se
consigo. se mudo de lugar também mudo a forma como me deixo ver. pode ser pior
a emenda do que o soneto – aguento – isto é uma trampa. crescemos em superfluidade
– nunca serei invisível. tal como o ar ocupa espaço e não se vê também eu
ocuparei um lugar nesta mesa mesmo que mais ninguém repare em mim – viver. escrever
e morrer incompreendido – a minha vida confunde-se com o ritmo das fábricas. das
produções em série. com a repetição das tarefas. sempre o mesmo parafuso para
apertar. a mesma bancada de trabalho. o mesmo martelo e o mesmo gemido para
cada pancada. que monotonia. o desejo insatisfeito e o corpo a arrebentar pelas
costuras – não dá mais – e em cada mil peças produzidas uma estragada – essa
peça sou eu. fim da história para esta peça – não há clemência para quem
escreve com falhas – tudo o que se repete não tem valor – brevemente. tudo se resumirá
a um único movimento do relógio. os ponteiros tocam-se e o registo da hora da
morte vigorará para sempre no óbito – quando não escrevo. repito-me
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quando não escrevo repito-me – escrevo então. imito
os escritores. e não sou nem sequer remotamente semelhante com os que sabem
escrever. mas escrevo. bracejo ideias para um teclado negro enquanto os olhos expulsam
de si uma luzinha hesitante. quase intermitente. como se fossem faróis rasgados
pela tempestade – escrevo protegido por uma persiana que do dia faz noite: luz
acesa. quatro lâmpadas das mais modernas. de baixo consumo. iluminam um silêncio
absoluto. num quadrado triste e aflitivo – atrás de uma escrivaninha uma
cadeira de napa negra segura duas mãos dependuradas. inertes. desarrumadas e despojadas
enquanto o corpo cismático oscila na procura das palavras. num cai não cai intranquilo.
receoso e medroso – não é fácil escrever – escrevo. procuro-me para fazer uma história
– esfrego a manhã nos olhos. estou cansado. os verbos de movimento parados numa
indecisão rebelde: continuo ou não a fingir que é noite – movo-me na cadeira.
os verbos também. querem-se fazer sentir. estremeço. o pensamento estremece
comigo e com os verbos. chegou a hora da luz. o quadrado entra em declínio.
desaba. e mergulhamos numa confusão acelerada: a ideia. eu. e a cisma – uma cisma
é pior do que uma doença – a manhã explode pelas frinchas enquanto uma ideia protegida
no interior de um parênteses implode – o que era para ser história é agora
entulho – da noite. não sobrou palavra sobre palavra – e o “delete” a pedir um
impulso suicida – que se dane. afinal tudo não passou de uma ideia. nenhuma
ideia é boa até ser história – contínuo preso ao interior das lâmpadas. ao sarro
da boca. ao mau hálito e à loucura trepa pelas paredes com a chegada da manhã –
fora da proteção. um número infindável de vizinhos a correr de um lado para o
outro. a hora da utilidade está a chegar – todos os homens deveriam ter pelo
menos uma utilidade – escrever enlaça-me ao tempo. mesmo ao que já passou.
porque tudo passa. a vida passa. os amigos passam. a juventude passa. os filhos
passam para outra vida que já não é a nossa. os livros passam de mão em mão e as
palavras cada vez mais estranhas e mais difíceis de escrever passam sem deixar
rasto – escrevo para me afastar de mim. e saio por aí ao encontro de quem me
quer assim como sou nestas palavras que vos chegam como chega o ventinho norte:
frio. inconstante. triste e descuidado – e eu. perdido de mim. a matar-me devagarinho
por um substantivo coletivo. uma comuna minúscula que fantasio grande. silenciosa.
com mais de sete pés de fundura. quase chega à china – sentado nesta cadeira retirada
do mundo saio de mim. sinto o vento norte a sussurrar baixinho. fresco. sem
ponta de humidade. talvez tenha passado por áfrica. a caminhar lentamente. como
se não houvesse matéria para comprimir. só imaginação destroçada. a instalar-se
nos ossos. num desinteresse brutal. até pelo que escrevo – e eu a sonhar com a
melhor palavra do mundo. exposto a este vento que me mata com um vagar destrutivo.
sem misericórdia. num silêncio que as palavras não sabem escrever. talvez… um silêncio
magoado – e o buraco dos sete pés a reclamar carne para decompor e tudo o que me
suporta para a vida já envelhecido. desmembrado. desfigurado. a cair dos
ganchos – para sobreviver terei de encontrar um equilíbrio entre o que digo e o
que querem que diga – resisto – nem sempre digo o que esperam de mim – escrevo.
escrevo e não sou de ferro. escrevo e choro. escrevo esta melancolia que me ameaça
dia após dia com um murro no estômago – como se a minha vida dependesse unicamente
do que escrevo – em tempos não dependeu. hoje. escrever. é o que me resta para
continuar a sair de mim – e a noite dorida espera pelo dia incansavelmente. não
há forma de me esconder da claridade. também não quero. acredito em recomeços. acredito
que cada raio de sol traga consigo novos desafios. novos propósitos. outra existência.
ou outro sorriso. ou outra forma de falar sem escrever. sei lá. qualquer coisa
diferente. talvez… talvez traga uma chuvinha miudinha para lavar a alma. ou uma
banheira cheia de água. e o corpo a boiar. inerte. apático. sem procurar uma
única palavra para voltar a respirar e a água cada vez mais preta. de luto. a
cheirar a morte e os verbos escritos no futuro gritam liberdade e eu finalmente
defronte de mim. a ser o que ninguém consegue ver – escrever é a negação do céu.
é insatisfação coletiva dos órgãos. hoje uma dor num pulmão. para no dia
seguinte. é o coração que lateja de dor. e depois. depois chega a falta de ar. a
falta de olhos. a falta de qualidade. a falta de sentido de humor. e a lágrima.
e o riso sem sentido. e o corpo frio e quente conforme a palavra que escolhemos
para louvar a vida mesmo quando sabemos que já estamos meios mortos – escrever é
separar os amigos. para o lado de dentro ficam os que sabem ler. os que podem
magoar. os que nos dizem: “não escreves um caralho”. ou então dizem quase não
dizendo: às vezes leio algumas coisas tuas. mas são tantas folhas. tanta
palavra gélida. tudo parece inverno. parece genebra ou coisa rara. e cada
palavra entregue é uma viagem para moscovo com escalas nas recordações da minha
infância. dos assados de domingo. do peditório na igreja do carmo. dos amigos
pregados ao peito e o meu pai defronte ao espelho a desfazer a barba. o homem
da minha vida. feliz. a fazer correr a lâmina a favor de mim. e eu a subir a
vida de três em três degraus. e aquela mesa intocável. com os pratos todos ao seu
redor. brancos com uma risquinha azul e os talheres ordenados como manda a
etiqueta. perfeita. como uma fotografia que ninguém ousa retocar. e tudo tão
bonito. a minha irmã. jovem. o meu irmão. jovem. a minha mãe. jovem. e o senhor
meu pai à cabeceira e aquela luz celestial que descia diretamente duma claraboia
com vista para o céu a iluminar divinalmente tudo o que era meu – meu deus.
como envelheci. que saudades – a vida tornou-se numa ferida enorme e eu estacionado
entre moscovo e jerusalém. sem saber que lugar ocupar. e o autocarro para monte
d`arcos não para de apitar – mas ainda não é a hora. se abrimos os olhos é
porque não queremos desistir – escrever é a única linguagem inteligível que me
permite falar – necessito escrever. é com as palavras que escrevo que saio de
mim e quando me apercebi. estava de regresso à minha terra. esqueço novamente
jerusalém. e o autocarro cheio de almas danadinhas apita. mas não para – amo a
prosa – raio de estrada esta que vem de moscovo e esquece-se de parar na casa
do poeta. por mim parava e levava tudo que é poeta mijinhas. picuinhas. rococó.
aquele que só gosta de falar de amor. de florzinhas. de beijinhos. de migos e
migas. e péu péu. e a vida é bela. e péu péu. e o sol é lindo. e péu péu. e
quimeras para todos. e péu o raio que o parta – a vida é quase sempre uma merda.
ingrata e injusta e ponto final – bem sei que a vida não se torno melhor com o
que escrevo. nem mais justa. mais doce. ou com mais imparcialidade. mais
isenção ou até menos ingrata. mas não quero saber. não tenho que saber. não
nasci para ter que saber tudo. estou-me nas tintas. pago para não saber – só
quero existir. quero existir como as gaivotas. livres. a viver no vento. sem
nome. sem passado. sem vírgulas ou pontos de interrogação. quero existir assim
como sou. a respirar o que respiro e a amargar o que amargo. estou habituado. e
quando alguém me quiser chamar que seja pela matrícula de identificação. o nome
é apenas meu – nunca decorei a minha matrícula de identificação. só os
importantes decoram a sua. chega ao notário e perguntam-lhe: por favor. a sua matrícula.
e a pessoa importante dispara a matrícula que nem bala de canhão – quando me
perguntam pelo meu número de matrícula. quase sempre para preencher um talão
que confirma a inutilidade da coisa. eu respondo: tenho que ver no bilhete de matriculação.
não sei de cor – o sujeito olha de soslaio. acerta os olhos com os meus. bota
subtilmente um ar de gozo cuidado. irrepreensível para permitir o pedido do
livro de reclamações. e eu a ler nas entrelinhas o seu pensamento: mais um
borra-botas – não sei porra de nada de mim. nada em mim é suficiente importante
para decorar – o mundo dividido entre os importantes dos não importantes. os
bons dos maus. os ricos dos pobres e finalmente. os que leem dos que não leem –
os que não leem não sabem magoar. vivem do lado de fora do corpo. ausentes das
palavras. dos livros e dos que gostam de escrever. não se incomodam com nenhum
tipo de concordâncias. misturam o passado com o presente e acrescentam duas
pitadas de um futuro com melhores dias – para quem vive do lado de fora. a vida
é só um jogo. tudo bate certo. mas se por arte de um demónio não der certo. a
resposta também é simples: é o destino. ninguém consegue mudar o destino – e
pronto. e a vida segue a sua viagem – a verdade é só uma. não há um único caminho
para se ser feliz – estes amigos que vivem do lado de fora são gente boa. senão
vejamos: para cada lágrima encontram sempre mil sorrisos. falam
ininterruptamente. mas nunca um peixe lhes morreu na boca. estão molhados dos
pés à cabeça e nem atingem que está a chover. correm para caraças para não chegar
a lado nenhum rezam. mas não questionam deus. para quem vive do lado de fora tudo
se resume a viver. a gastar o tempo – o importante mesmo é casar. comprar casa.
carro. um LCD de sessenta e quatro polegadas com um comando que nunca falha.
sofá e a telenovela das vinte e duas horas da TVI. tudo é perfeito. e se juntar
uma ranchada de crianças lindas é a cereja no topo do bolo – quanto ao erro.
existe porque existe. deus assim entendeu e mais nada interessa para além da
vontade de deus – queria tanto ser assim. juntar-me a este lado bom e tornar-me
num deles – mas não sou. e também não sou comprador de nada. nasci sem ambição
para comprar o que quer que seja. quer dizer. gostava de comprar uma editora. escrever
um livro e entregá-lo porta a porta. olhar olhos nos olhos do leitor e
abraçá-lo num aperto sincero. e dizer-lhe: “Não vale a pena ter vaidades no
processo, porque o que existe de facto é ele o leitor” – um escritor sério
quer-se grato. afinal quem faz o escritor é o leitor – findas as entregas. sentava-me
num varandim virado a sul. junto ao mar. junto às minhas gaivotas. a escutar as
marés e a morrer devagarinho. num silêncio bom. até que os sonhos se esfumassem
da memória – meu deus. como estou velho – preciso um livro para voltar a sorrir.
para que este cheiro a morte se desprenda do corpo e parta como partem as
gaivotas sempre que o mar chama tempestade – não tenho para onde ir. nem para
onde fugir. tirando o buraco de sete pés
não tenho nem um palmo de terra para habitar – é a idealidade que me alimenta a
vida retardando este partir sem partir. este cai não cai. esta dor que dói sem
se ver – é este equilíbrio desequilibrado que me agonia. que me apodrece as
mãos num vagar que me mata sem matar – o equilíbrio é arte dos espíritos bons.
a arte de nada estrambalhar quando tudo aponta para o desastre total – e riem-se
os amigos do lado de dentro e os que estão do lado de fora também. e perguntam
em uníssono [finalmente uma concordância]: como é que ele se aguenta neste
equilíbrio tonto das palavras? como é que ainda tem coragem para escrever? e o
corpo treme como treme a terra para agitar a poeira e assentar tudo numa nova
ordem sem nada se estrambalhar – ganho mais um dia. escrevo mais uma folha.
digo olá mais uma vez. abraço. abraço. abraço – adoro abraçar – não sou escritor.
imito os escritores. o que faço é arremessar as palavras contra o papel e
esborrachá-las como se fossem mosquitos. com uma raiva boa. uma atrás de outra.
e a baba a escorrer pelo canto da boca. e mais outra. e mais baba. e outra. e as
manhãs começam numa carnificina. e no ar mais de um milhão de palavras pedem
clemência. e os braços cansados de tanto genocídio. e as folhas em marcha de guerra
gritam morte aos poetas. vida eterna aos prosistas – que loucura. que idiotice.
“ser poeta é ser mais alto, é ser maior”. só florbela espanca seria capaz de
escrever uma frase destas – gosto de escrever porque gosto de mim. gosto de
escrever porque gosto de quem me gosta de ler. sempre que escrevo ilumino a minha
vida. esqueço os fantasmas do passado e as ruas que me fizeram crescer. esqueço
raios e trovoadas e todas as mãos que me sufocaram. esqueço e não me quero
lembrar – um dia atiro-me ao mar amarrado a um livro âncora e mesmo que a maior
onda do mundo me queira trazer à superfície mergulharei ainda mais fundo –
desapareço para sempre e nunca ninguém saberá se morri ou acasalei com uma sereia
e fui feliz para sempre. ou então. desapareço num dia de nevoeiro. desapareço
para que os meus amigos não fiquem à espera do que não vale a pena esperar. não
sou el rei d. sebastião – escrevo. escrevo porque gosto de mim. escrevo porque
tudo que escrevo é um bilhetinho que podes encostar ao coração. ou trazer no
lenço da mão. ou no bolso pequenino das calças. ou então. uma recordação para
os dias em que sentires saudades minhas – será que cheguei ao fim da palavra? será
que cheguei ao fim da minha estrada? não sei. não sei se a estrada é feita de
palavras ou as palavras me fizeram a estrada. não sei. não sei tanta coisa que
gostaria de saber – não sei. mas sei que gosto de escrever porque gosto de mim.
e gosto de quem me procura para ler mesmo que traga as mãos vazias de abraços –
sou o que sou e mais nada poderei ser além do que sou porque para ser outra
coisa qualquer necessitaria de tempo e tempo é o que já não tenho – estou gasto
de me procurar e gasto de me encontrar onde não quero estar – onde houver uma
folha em branco eu escreverei o que for preciso para me fazer existir. e se ali
tiver que morrer. que seja com todas as palavras possíveis – porque só quem
escreve poderá um dia ser recordado. só quem escreve poderá ressuscitar. só
quem escreve poderá entregar o corpo ao diabo e a sua obra a deus. ou ao universo
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“Não vale a pena ter vaidades no processo, porque
o que existe de facto é o leitor” – é verdade. o josé torres nunca teve tanta
razão – é por esta razão. gigantesca. que escrevi estas vinte e cinco páginas e
decidi reconhecer [para sempre] que todo o leitor necessita de papel nas mãos –
assim farei. assim me farei papel – prometo – como será ainda não sei. mas
tenho umas luzes em que acredito – mas. nunca jamais poderei [vocês também]
esquecer este meu amadorismo – tudo farei para não vos embustear ou desapontar.
tudo farei