um dia serei apenas este que escreve. porque em boa verdade. neste mundo a que não pertenço. nada mais sou do que uma hipérbole de mim mesmo – e aqueles. por se saberem daqui. insistem que não sou o que as palavras dizem que sou. um dia. depois do sol cair. hão de dizer que fui o que as palavras diziam – tudo o que realmente sou vive neste corpo estranho que não sabe quem é. nem de onde veio – morrerei feito palavra escrita. porque falar não sei e. mesmo que soubesse. quem haveria de me querer ouvir? – talvez os peixes. talvez
30/09/2019
27/09/2019
25/09/2019
cunhada. vou ter saudades tuas
1.
minha querida cunhada. não sei se me ouves aí no
céu. mas se me ouvires. como quero acreditar. quero que saibas que tenho muitas
saudades tuas – nunca deveriam de existir estes dias de saudade no calendário.
não sei quem os inventou. mas quem quer que tenha sido. nunca teve uma cunhada
como eu tive: eras um ser de luz rebelde – tu sabes que nunca fui muito de
lamechices. nem sei porque raio sou assim. gostava de não ser. mas fico sempre
com a sensação de que quando gosto de alguém de verdade não preciso de muito
espalhafato para lhe dizer: adoro-te – eu sei que tu sabias que eu gostava de
ti – mas hoje é diferente de tudo. hoje o calendário marca dor. viagem. saudade.
preciso de todas as lamechices do mundo. preciso abraçar-te. beijar-te.
olhar-te e dizer-te: gosto de ti – és parte mim como o céu. do sol. do mar. das
gaivotas. do silêncio das montanhas. sei lá o que mais. cunhadinha. continuo a
amar-te daqui deste lugar que te perdeu até aí onde te escondeste – adoro-te.
zeza. apetece-me dizer mil vezes “gosto de ti”. e mais mil que te adoro. que
tenho muitas saudades tuas. e que estou destroçado por me teres deixado sem me ouvires
dizer: fica mais um bocadinho. só mais um abraço – minha querida cunhadinha. o
que faz um homem com esta saudade que nos magoa? se tivesse um carro com um
motor potente. ou um foguetão. ou a varinha mágica do harry potter. quem sabe. metia-me
no tempo em marcha atrás e debruçava-me outra vez nos teus braços. amarrava-te
novamente essas mãos bonitas e obrigava-te a sorrir mais uma vez e depois.
abraçávamo-nos numa despedida sem fim para que o tempo nunca mais andasse para
a frente – vou trazer sempre comigo esse teu último abraço. vou segurá-lo
dentro de mim. vou guardar esse bater magoado do coração… vou guardar-te dentro
de mim para sempre – desculpa zeza. não tive forças para te amarrar à vida –
não me conformo com o quão depressa tudo aconteceu– minha querida cunhada.
foste tão corajosa. sempre que uma parte do corpo cedia lá inventavas tu uma
desculpa para nos animares. para logo de seguida. te esconderes dentro de ti
num silêncio fecundo da consciência. alimentando-se de inocência. onde essa
alma magoada se interrogava – não havia respostas. a não ser melificar essa dor
que crescia sem parar dentro desses olhos-esperança – não permitirei que partas
assim. a minha memória vai guardar-te. vou continuar a querer saber por que te ausentas
do nosso mundo e depois. como se nada fosse. regressavas com um sorriso que
ninguém te levava a mal – desta vez não vai acontecer. vou encher-me de força e
raiva e vou desviar o mundo para o lado melhor e falar-te. dizer-te que preciso
de ti. de te ouvir. preciso dessa tua teimosia. preciso dessa forma como
viravas as costas ao relógio. preciso desse teu jeito de me entrares pela porta
a correr. preciso de ti tal como eras. era isso que te fazia especial – agora
só quero que a memória não ceda ao tempo. e sempre que acordar vou acreditar
que tu estás aí por perto. talvez a passear. talvez a comprar sapatos. ou
aquele creme para te tirar as rugas dos olhos e. quando der por mim e perceber
que afinal não estás onde os mortais estão. que a raiva me faça fechar os olhos
e te traga ao meu mundo interior nem que seja por um minuto. ou um instante tão
breve como um flash. mas que nesse clarão. os teus olhos encontrem os meus. e o
que era escuridão. seja afinal o milagre da vida para além da morte – não quero
saber nada dessa tua viagem. enquanto dormir tu existes porque a saudade só
acontece quando estamos acordados – vou dar-te a mão e vamos por essas ruas sem
destino. talvez possamos apanhar o avião novamente para milão. visitamos a
catedral. as galerias vittorio emanuele e depois. pela noite. voltamos ao mesmo
cinema e assistimos ao mesmo filme e saímos a rir por não percebermos uma
palavra de italiano. e vamos comer uma
pizza quattro stagioni e falar do que só nós sabíamos falar. falar e rir. rir e
falar. e dizer palermices. e rir. e dizer mais palermices. as crianças riem
sempre da vida – tu cresceste criança – sempre que a saudade apertar vou-te
telefonar e livra-te de não atenderes esse mamarracho teimoso. não venhas com
aquelas tretas do costume de que deixaste o telemóvel não sei onde. e que a
cabeça está na lua. ou que não tens tempo para nada – sempre que a saudade
apertar. doer e precisar de uma amiga. vou buscar-te e sair contigo por esse
nosso mundo fora. vamos ver o mar e prometo mostrar-te o voo livre das minhas
gaivotas e depois. abrimos os braços e voamos até ao céu e quando o vento
amainar e o sol cansar. sentamo-nos no areal. e ficamos em silêncio até a noite
a chegar – o sol nunca morre. esconde-se para que possamos ver o brilho das
estrelas – tu minha querida cunhada brilhavas como uma das estrelas – tenho a
certeza de que quando estiveres devidamente instalada no céu. e deres conta
destas palermices que estou a escrever. vais sorrir e achar que sou doido. e se
calhar tens razão. e não é como se não mo tivesses dito tantas vezes. mas
dizias sempre com tanta doçura e carinho que eu nunca acreditei – sempre achei
que um dia destes íamos comer o gelado que te prometi e falar dessas nossas
coisas excêntricas que só nós os dois sabíamos falar – éramos os dois loucos.
loucos varridos. cúmplices de alma e riso – minha querida cunhada porque nos
deixaste? porque raio não percebeste esse monstro que se alimentava dentro de
ti – distraíste-te e agora quem paga somos nós que ficamos aqui a escolher a
melhor foto. o melhor momento. a melhor conversa. a escolher os momentos da tua
vida que queremos guardar para sempre – não foste justa comigo. não foste justa
com as tuas irmãs que estão destroçadas. com a tua mãe que continua a dizer. e
com toda a razão. que nenhuma mãe do mundo deveria perder um filho. para não
falar na tua filha que agora vai ter que inventar mil desculpas por não te ter
a seu lado naqueles momentos especiais – o que foste fazer minha querida
cunhada – sinto tanto a tua falta. foram tantos anos de carinho. cumplicidade e
amizade – a amizade de verdade é indescritível. não se explica. sabemos que
aquela pessoa gosta de nós independentemente do que realmente somos. faz-nos
sentir bem. seguros e em paz – tu eras a minha amiga do coração – eramos amigos
não porque um dia escolhi a tua irmã para viver comigo. éramos amigos porque
olhamos um para o outro e percebemos que seria assim para sempre. ficamos
amigos como se tivéssemos nascido na mesma rua. andado na mesma escola. jogado
à corda. à macaca. sei lá o que mais minha querida amiga – sabes. sempre fui um
otimista e também sempre achei que sabia ler o futuro. e não é que te imaginava
com cem anos. encarquilhada. com mau feitio. a resmungar por tudo e por nada.
em cima dos teus saltos altos. lábios bem pintados. cabelo esticado como só tu
sabias fazer. roupa com um aprumo que parecia saída
da loja naquele instante – nunca te vi sem esses sapatos enormes que te punham
na lua e tu nesse equilíbrio improvável a caminhar como só as rainhas sabem
caminhar – sempre caminhaste como se vivesses nas nuvens. como se já fosses um
anjo – primeiro foste uma boa menina. depois. envelheceste. mas nunca deixaste
de ser uma boa menina. todas as pessoas boas são ingénuas. às vezes acho que
essa ingenuidade era o teu jeito de nos dizeres que não querias ser como as
outras pessoas. não tinhas os mesmos interesses. vivias num mundo só teu com as
tuas próprias cores – tu querias tudo simples. palavras simples. sorrisos
simples e até o futuro que julgavas ser eterno o quiseste sempre simples –
talvez já adivinhasses o teu destino – mas se o pressentiste nunca nos
dissestes nada – vou ter saudades tuas minha querida cunhada. já sinto a falta
de quando não ligavas patavina aos telemóveis. vai-me faltar essa teimosia que
nasceu contigo como nos nascem os sinais na pele. vou ter saudades de todas as
palavras que me foste dizendo e que aos teus olhos me fizeram ser alguém bonito
e especial – não era eu o especial. eras tu. eras tu que vias o que mais
ninguém via – sinto já falta daquele abraço com que me recebeste naquele dia
que entrei de rompante pela porta. tinham passado muitos meses sem nos vermos. correste
e abraçaste-me de tal forma que nunca mais o esqueci – vai-me doer a tua
ausência. minha querida cunhada. de tanta coisa – como é possível a vida ser
tão injusta. agora que tinhas finalmente encontrado o companheiro da tua vida. o
homem que te sabia fazer feliz. sabia que eras uma rainha – uma mulher não se faz
rainha. nasce rainha – eu não sou crente. mas às vezes gostava de acreditar que
estou errado. que quando partimos vamos para um lugar onde encontramos todos
aqueles que gostamos e amamos – quem me dera zeza que esteja errado. se estiver.
então. talvez encontres aí os meus pais e o nosso tio joão. talvez não estejas
assim tão sozinha e se assim for. um dia destes. marcamos aí um encontro para
voltarmos a rir com as nossas palermices – minha querida cunhada. quem é que
agora me vai dizer essas coisas bonitas que só tu eras capaz de dizer – levo
para sempre esse último abraço. choramos. apertámos as mãos e sorriste como se nada
te doesse. enquanto eu me sentia perdido e arrasado tu viraste-te para a
enfermeira e disseste-lhe: o meu cunhado é o meu sol da minha vida – meu deus
zeza. e agora quem me dirá novamente uma coisa dessas – vou ter muitas saudades
tuas. vou ter saudades desse teu brilho com que vivias a tua vida. vai-me
faltar essa luz que iluminava o caminho de quem vivia a teu lado – vou guardar-te
para sempre – por favor. toma conta de mim e dos nossos
pequenas grandes notas:
2.
não seria justo não dizer que sou um homem
orgulhoso da família a que pertenço. a minha cunhada partiu sem que as suas
irmãs a deixassem um só instante sozinha – do primeiro dia até ao seu último
suspiro – nos últimos dias a zeza esteve sempre acompanhada pela família que a
amava. despediu-se de todos com uma serenidade que nos tocou fundo – um
beijinho especial para a tia alcina e para a minha sobrinha renata que passaram
as duas últimas noites em silêncio cheio de carinho ao lado da zeza – teresa e
maria joão deram pleno sentido à minha frase: a família é um compromisso de
afetos – é mesmo assim – continuo com uma cunhada fantástica e tenho ao meu
lado uma companheira maravilhosa que não me canso um único segundo de amar
por último. um agradecimento especial ao seu
companheiro que esteve sempre presente a seu lado – ele sabia que a zeza era a
minha menina. terá a minha eterna gratidão até ao fim dos meus dias – pena tenho
apenas de não o ter conhecido há trinta anos – mas a vida é o que é. e o
importante é sabermos que o tempo na maior parte das vezes é uma ilusão – nessa
contagem de tempo que os homens inventaram. a
minha zeza foi inteiramente feliz a seu lado – às vezes o tempo não é
tudo – a minha cunhada levou o seu respeito. o seu afeto e o amor inteiro que
partilhavam levou-o consigo na sua viagem final – partiu em paz. sabendo que
foi a mulher de toda uma vida – desejo-lhe tudo de melhor para a sua vida – em
mim terá sempre um amigo. e mais do que isso. terá o meu profundo respeito pela
sua humanidade e dignidade – que mais pode um homem ter?