.................................................................................não tirem o vento às gaivotas

29/11/2019

henrique rojas montes



pintura - google


“parece-me que necessitamos de uma visão mais abrangente, sobretudo no que se refere à gestão do amor. O grande erro do século XX foi acharmos que o amor era só um sentimento, que vai e vem. E que era um monólogo. Na realidade, o amor maduro é um ato de vontade e de inteligência.”


27/11/2019

chegará o dia






chegará o dia em que direi:

que se foda a respiração

e todo este corpo

que mais não é

do que carne alimentada por dois pulmões

que respira mortalidade

ou vida estúpida

ou fuga à morte

ou outra coisa qualquer

que nos mantém ligados às ruas

aos sinais de trânsito

aos mercados com as suas vendedoras

às gaivotas tontas que agora aparecem na minha cidade

como se um mar se guardasse num charco

e ao pequeno almoço que é quando começa o dia

e o corpo se curvasse ao café expresso com fé

que a sua cafeína seja a força motriz

para levantar voo até saturno

mas se não houver espaço

estrelas ou cometas

que as borras do café se transformem em raiva

para levantar o mundo

que tenho dentro de mim

  


chegará o dia em que digo: que se foda a respiração e todo este corpo que mais não é do que carne alimentada por dois pulmões que respira mortalidade. ou a vida estúpida. ou fuga à morte ou outra coisa qualquer que nos mantém ligados às ruas. aos sinais de trânsito. aos mercados com as suas vendedoras. às gaivotas tontas que agora aparecem na minha cidade. como se um mar se guardasse num charco. ao pequeno almoço que é quando começa o dia. e o corpo se curvasse ao café expresso com fé que a sua cafeína seja a força motriz para levantar voo até saturno. mas se não houver espaço. estrelas ou cometas. que as borras do café se transformarem em raiva para levantar o mundo que tenho dentro de mim


20/11/2019

eu. os peixes e o cloro




 

em dezembro de 2010 resolvi trazer para casa um aquário e cinco peixes miscigenados na raça e na cor – instalei a caixa de vidro num local aconchegado e protegido das correntes de ar. forrei o fundo com joguinhas brancas. encalhei uma nau naufragada do tempo do vasco da gama. plantei umas algas verdes fofinhas para que os guelras pudessem jogar ao esconde esconde. encrostei uma ânfora que borbulha bolhinhas de oxigénio e. mais uns quantos “bisegres” para que o fundo da caixa reproduzisse. dentro das inúmeras limitações. o fundo do oceano – depois de tudo devidamente preparado e ornamentado inundei a caixa de vidro com água da companhia – delicadamente. abri a saca de plástico transparente. onde transportei os guelras da loja até casa e. um a um. com delicadeza. operei o transbordo para o meu oceano pacífico privado – e ali fiquei a apreciar os meus novos animais de estimação. quer dizer. os meus novos guelras de estimação e. rapidamente percebi. de que os peixes e as crianças têm uma característica em comum. só precisam de liberdade para serem felizes – ali estava eu parado. também imerso em prazer. a degustar o meu novo e excêntrico “affair” hídrico. suplementado com uma convicção firme de que tinha acertado na escolha dos novos inquilinos para o meu exótico aquário – os guelras estavam felizes e confiantes no seu novo habitat. estavam enérgicos. corriam como loucos. davam piruetas com curvas e contracurvas. faziam bolhinhas pela boca e as barbatanas não paravam de bater. mais parecia o voo das andorinhas a anunciar a primavera. tal era a velocidade e alegria com que se moviam de um lado para o outro – estávamos todos felizes. eu. os peixes e o max. que ao meu lado. intrigado com a singularidade dos feitios e cores dos novos amigos. não parava de abanar a cauda – estava tudo a correr dentro da normalidade perspetivada pela vendedora. especialista em animais de todas as espécies. quando me apercebi que algo estranho estava a acontecer. os guelras estavam tremulosos. os olhos esbugalhados não paravam de piscar – esta altercação não estava prevista no manual de boas práticas de manuseamento e bem-estar de peixes ornamentais – entrei em pânico. não sabia nada da anatomia de peixes. em toda a minha vida só com cães tinha partilhado afetos. não fazia a menor ideia de como se tratar um peixe. nem avaliar a gravidade dos sintomas – será que estavam todos a ter um AVC por intoxicação da água? ou seriam apenas pequenos espasmos nervosos de adaptação ao seu novo lar? o que me desassossega. é que para o bem e para o mal. sou eu o único responsável pelo seu bem-estar – estamos numa época em que não se pode facilitar com os cuidados aos animais. ainda me culpam de maus tratos e quem sabe. acabo em tribunal acusado de negligência – e pior. estou sujeito a que. a qualquer momento. me toque a campainha e me apareça à porta a CMTV acompanhada pelo PAN [partida das pessoas. dos animais e da natureza]– comecei à procura do que poderia estar a causar aquele pisca pisca e pensei: será que os peixes estão nauseados com o cloro da água da companhia? é bem possível. a água ultimamente não anda grande coisa – se fossem humanos. percebíamos com facilidade se o problema recaía sobre a má qualidade da água. reviravam os olhos. esfregavam-nos e logo concluíamos que a maleita passaria com umas gotas oftalmológicas – mas a verdade é que os guelras não têm mãos e as barbatanas são curtas. creio que nem esticadas chegam aos olhos. que chatice. nem uma comichãozinha podem ter – deus lá teve as suas razões para que na sua infinita sabedoria não lhes desse mãos – mas a verdade. é que se lhes tivesse implantado umas mãozinhas. tinha-me aligeirado a resolução do problema. misturava na água umas gotinhas para a conjuntivite e logo via se o piscar abrandava – vá-se lá entender deus e os peixes – mas o melhor é meter a viola ao saco e calar-me. não vá o todo o poderoso aborrecer-se com este meu palavreado e ainda lhes desarranja os intestinos – já deveria saber há muito que os desígnios de deus são insondáveis e nunca questionáveis – começo a ficar preocupado. sinto que o pisca pisca está mais intenso e também os sinto mais paraditos – pudessem ao menos chorar para eu perceber a gravidade do piscar dos olhos – mas como se veria uma lágrima no meio de um oceano? os peixes são uma dor de cabeça – pensando bem. talvez nesta coisa das lágrimas a minha preocupação seja uma tolice. os peixes não choram não por não terem lágrimas. mas porque não têm sentimentos – a verdade é que também conheço muitos humanos assim. sem lágrimas e sem sentimentos e não vivem no meio do oceano – quem sabe se deus quando criou o mundo animal tenha concebido os peixes propositadamente assim. diferentes de todos os outros animais – talvez quisesse um animal que não fosse bem animal. distinto de tudo o que tinha criado até ao momento. distante dos homens. escamado. com guelras para sobreviver escondido na água. frio. sem sorrisos. com mau feitio e indiferente a tudo que existe fora do mundo aquático – e por mais tentativas do homem para influenciar o seu modo de viver. domesticar. ou até mantê-los em cativeiro. a resposta seria sempre um desapego silencioso por tudo o que o rodeia. sem emoções. sem latidos. sem rosnar. sem miar. sem asas e sem sonhos – tudo o que este animal marítimo traz ao mundo dos humanos é um alheamento sincronizado do movimento das barbatanas com o abrir e fechar das guelras. abana o rabo e pisca os olhos para assinalar a marcha pela profundeza dos oceanos – deus substituiu-lhes então as mãos por guelras para que não pudessem abraçar. de seguida. tirou-lhe a voz para que não pudessem dizer: gosto de ti e ainda insatisfeito. trocou os pulmões por guelras para que não pudessem arfar quando se apaixonassem – por fim. meteu-os nos oceanos e mandou-os multiplicarem-se. dizendo-lhes: vocês serão o maior desafio para a humanidade – os homens nunca compreenderão a vossa indiferença. nem tampouco aceitarão a forma como vos amais – e assim se fez a vida dos peixes desde a criação do mundo até à compra do meu aquário – a vida dos animais com guelras é realmente muito complicada e sem sabor – foi quando pensei como a criação do homem foi especial. como é bom dizer a alguém gosto de ti. abraçar e sentir o calor da retribuição. o carinho de um abraço. um sorriso. uma palavra ou uma lágrima – deus fez um grande trabalho – enquanto me inebriava com as correrias dos guelras. sentado a meu lado o meu cão seguia atentamente as acrobacias dos seus novos camaradas com espanto. percebi no seu olhar que estava feliz. não sei se por achar que teria ganho mais cinco companheiros. ou apenas porque estava solidário com a minha alegria – a vida só tem sentido quando não desistimos dos afetos. mesmo quando esses afetos são difíceis de alcançar. como com os peixes – encostei a minha cara ao aquário e com um sorriso de quem gosta de fazer novos amigos apresentei-me: sou o sampaio. muito gosto. sou o vosso encarregado de bem-estar. espero que se sintam confortáveis na vossa casa. que também é a minha – fiquei à espera de uma resposta emocional. um olá. uma cambalhota com um mortal à retaguarda. um borrifo de água. mas nada – foi quando fui levemente surpreendido. depois da apresentação fiquei com a ideia de que deixaram de piscar os olhos e. estava para jurar. que até sorriam – fiquei em paz e resolvi não mais questionar ou mudar o que deus fez – olhei novamente… e decidi batizá-los. talvez assim passassem a ter alma – para batizá-los escrevi o texto: aquário

 

os meus olhos encheram-se de peixes – eugénio. amarelo. explícito na sensibilidade – camões. nos olhos a sua marca – excêntrico. chama-se dali. são cores – torga. veste-se de negro. talvez saiba da morte – pessoa. sempre ele. um vira-casacas. à noite caeiro – eu… sou aquário de ascendente [hoje]. mas só depois de carneiro


11/11/2019

serei o quê?





um dia serei o quê?

um abraço

uma voz

um amigo

um inimigo

um viajante

um bobo

um escritor

um poema

um caminho

um jeito de andar

 

um dia serei o quê nesses vossos olhos?

um sopro

um lenço de mão

uma palavra

um beijo

uma forma de rir

uma lágrima

uma fotografia

um momento

um sol

um dia que se cruzou numa rua

 

um dia serei o quê nessa vossa boca?

uma oração

um pecador

um sedutor

uma flor

um gesto

uma fé

um sorriso

um teimoso

um sonhador

um carro de velocidade

 

um dia serei o quê nessa vossa recordação?

um arrependimento

um azar

um desastre

um amor

uma paixão

um pai encantado

um filho extremado

um marido apaixonado

um avô história

uma saudade que nunca se cansa

 

um dia serei o quê?

serei o quê nessa vossa vida?

serei para vós o mesmo quando o inferno me pungir a alma?

serei para vós o mesmo quando o céu me postular. não o que vós pensais. mas o que as mãos carregam?

serei adeus ou serei goodbye

serei lágrima ou serei silêncio

serei saudade ou serei vai com deus

serei cerimónia fúnebre ou serei cerimónia de conciliação

tudo o que sou será pertença de um único dia: o dia do juízo final

e então… nesse dia estúpido

serei o quê nesses vossos olhos?

serei o quê nessa vossa boca?

serei o quê nessa vossa memória?

alguma coisa sei que serei

porque ser nada

seria castigo que nem a morte desejaria



07/11/2019

teatro


júlio saraiva


[dedicado a júlio saraiva poeta e jornalista já falecido]

 

sou teatro…

parei agora para pensar um pouco

sossegar-me destas aflições

vocês compreendem…

não é fácil representar a vida toda

 

nesta pausa

posso ser quem sou

inclino-me

seguro a cabeça com as mãos

fecho os olhos

e vestido a preceito desde a última cena

viajo até à nascente

lá… onde ainda vivem as fadas.

 

neste encontro,

não preciso do ponto

nem do contraponto

e nas luzes da ribalta

surgem sonhos infrangíveis

neste pensar, encontro-me

em palcos dourados,

tribunas,

plateias,

camarotes,

frisas e palmas

 

é o teatro gigante

e eu tão pequeno

tudo esgotado,

tudo de pé

chamam-me os aplausos

em coro,

acenam cachoeiras de flores

que eclodem aos meus pés.

é a primavera

pensava eu.

                                                                                                    

mas os olhos ainda raíam

deste descer à verdade.

rompem as pancadas de molière

o contrarregra vai subir o pano

também eu subo à vida

 

acabou o teatro.

 

 

no dia em que postei o teatro no luso poemas. agosto de 2009. recebi uma mensagem privada do poeta e jornalista júlio saraiva que. amavelmente. fez questão de me dizer quanto tinha gostado do poema e. na sua simplicidade. pediu-me autorização para o levar para o seu blogue – nem queria acreditar que o júlio saraiva se tinha dado ao trabalho de me escrever. que me elogiasse e quisesse divulgar o poema na sua página – é a primeira vez que torno público este episódio. confesso que fiquei um pouco envergonhado e pensei: e agora o que vai ser de mim. como vou manter o nível. que dirá o júlio se ler o meu próximo poema – admito que nunca me senti nem confortável. nem feliz com a poesia. só a prosa me enredava o tempo com verdadeiro prazer – entrei em pânico e achei que o melhor para a minha poesia seria silenciar-me. quanto menos pessoas soubessem deste episódio. melhor – não sei se alguma vez o postou. confesso que nunca fui bom a seguir a vida dos outros. mas também não é importante. valorizo mais o impulso. a verdade do instante. e esta é sempre mais apreciada quando emerge na espontaneidade – uns tempos depois faleceu e nunca tive oportunidade de lhe agradecer aquele gesto. principalmente. nunca tive oportunidade de lhe dizer como aquela mensagem. naquele instante. me devolveu a vontade de escrever – o luso era um espaço pequeno para tanto ego gigante. sobrava a vaidade. a arrogância. a falta de humildade e. principalmente. o bom senso e a tolerância – reconheço que havia colegas intragáveis. de mau carácter. monstrinhos egocêntricos que projetavam uma grandeza que. em boa verdade. não tinham – ser grande entre os pequenos não os tornava especiais – não era fácil lidar com esse lado sombrio dos poetas –   mas bem lá no fundo confesso que aprendi muito com os meus camaradas do luso e a todos estou agradecido – depois. tal como os mágicos fazem magia. o júlio também criou um momento excecional para mim – durante um tempo esqueci tudo o que era mau – a modéstia chega sempre mais depressa a quem não precisa de se pôr em bicos de pés para ganhar altura. já são grandes. e ponto – que nunca lhe falte nada. esteja ele onde estiver. mas se faltar. que não seja papel. lápis e… amigos. para que. em companhia. continue a beber o seu “choupinho”