.................................................................................não tirem o vento às gaivotas

28/06/2020

dilúculo



pintura - tarsila do amaral



acontecia suavemente

o dilúculo.

o cedro encobria

um sol: límpido

 

a gota. ínfima

da noite que se lavou

lembrava

todos os mares

 

deitada sobre o caule

a flor

espreguiça.

colhe a primeira vida

 

à janela: o melro

encanta-se.

o sorriso demora

mas chega

 

[ame as coisas pequenas e cuide bem das suas analepses]





22/06/2020

sáfara


pintura thomas saliot



atrás dos olhos

pendem leitos

outrora:

aletófilos e mui verdes

 

dissimulam-se agora:

a sáfara

 

calmamente

cerra as pálpebras

para a existência

 

cai a última lágrima:

morta



15/06/2020

eu e o medo



imagem - google


nem uma palavra para enfrentar o medo. resmas de papel e nem um mísero vocábulo para me alentar. encorajar. para acreditar que sim: que tudo vai ficar bem – o corpo à roda por esse mundo fora. de imagem em imagem. de grito em grito. de família em agonia. e as camas dos hospitais em afligimentos. às vezes paradas. outras. ligadas a sirenes aflitas. a romper ruas num desespero desenfreado – e a cabeça a estardalhar-se de pânico. de tanto pânico que nem a porta da casa sustém este medo medonho que me encolhe pela TV – exilam-se os olhos medrosos pelo raso do corpo. tão raso como soalhos gastos de quem vai para lá e para cá. polido ao osso. num arrastar de pernas que não conta os dias. só medo. medo-covarde. tão grande que as paredes procriam urgentemente recordações. e o passado dependurado em candeeiros que acendem a distância dolorosa entre o certo e o errado. entre o que já devia ter sido dito. e o que a boca calou – tanta coisa errada em tantos anos de claridade – o homem bom é preguiçoso – nasci para isto? para morrer calado? sufocado por palavras que engoli – que fiz eu para que a espera se aparelhasse em medo? bem sei que a morte é uma curva certa na estrada* – tanta gente sem falar. sem gritar. sem gritar pelo nome de quem os abriga na história. presas ao branco. à máquina que respira só porque sim. sem coração por perto. e os estetoscópios mortos de cansaço. estupidamente silenciosos sentem a morte a perpassar pelas covas das mãos. trémulas. numa terra escura como breu. coberta de uma fatalidade estranhamente selvagem. insuportavelmente selvagem. e infinitamente traidora – tanto silêncio. tanto branco silêncio. tanto medo. tanta casa fria. silenciosa. como se cada parede caísse ao inferno e o céu se esculpisse à mão do diabo – que te fizemos deus? este grito ensurdecedor dentro da minha cabeça. as máquinas a respirar. a resistirem vida estoicamente. e o sangue a correr por tubos transparentes clareiam humanos que desaparecem num corrupio de extenuação que não chega sequer para dizer adeus – as camas não andam. não marcham. não voam – morrer é só não ser visto e acompanhado* – quero continuar a ser visto e acompanhado – preciso de uma nova oportunidade. juro que falarei sem tento – nem a merda de uma palavra contra esta coisa cobarde. uma injeção. um martelo. ou uma bomba presa a um dedo engatilhado – estou com medo. em pânico. não há dignidade nisto. os mortos escondidos do mundo. num mutismo asqueroso. triste. malparecido. sem beijo. sem adeus. sem que as lágrimas possam ecoar salvas de canhão – o mundo não pode desaparecer assim. renegado por todos. ajustado à sua terra sem um último abraço – há coisas que não merecem existir: verdugo. tirano da morte silenciosamente desacompanhada – o fim deveria ter dignidade: morreu de cancro de pulmão. mas fumou até ao último dia; morreu de cirrose. mas bebeu até cair na cova; morreu de sexo. mas fodeu até ao fim – só se morre de verdade uma vez – que raio faço eu em casa. podia ser médico e estava na cura. na guerra. estava a auscultar o medo em cada alma. a celebrar esperança. a forjar tempo para viagem escoltada de afetos – que raio faço eu em casa? se nem palavras encontro para me descansar do medo

 

[texto redigido enquanto o pânico tomava de assalto tudo o que tinha como certeza absoluta – março e abril – confesso aqui o meu medo]

 

* frase alterada de fernando pessoa