.................................................................................não tirem o vento às gaivotas

29/11/2023

a lógica dos absurdos


foto - sampaio rego


nenhuma das coisas que imaginei morreu em mim porque o tempo das coisas não é de quem pensa. mas sim de quem age – ainda quero fazer milhentas coisas. sobretudo as mais absurdas – a felicidade e a tristeza nascem do pensamento. mesmo absurdo – penso. logo insisto no absurdo – utopia é acreditar que um dia todos os meus absurdos se tornarão reais – nunca recusarei ser o que sou. mesmo que o absurdo em mim roce a loucura


24/11/2023

eu. a vidinha. e os amigos

 





I.      tratado sobre amizade

o que seria da nossa vidinha sem os amigos? sinceramente não sei. sempre tive os amigos perto de mim. a ocuparem espaço. a absorver-me. a falarem muito. e eu também. a ocupar muito espaço. a absorver. a falar. a acenar. para trazê-los para dentro do que sou e sinto – com a idade vamos perdendo amigos. amigos ou coisa parecida. passageiros temporários do nosso tempo sideral. almas com mágoa e dor. como eu – destes amigos. alguns apenas dormitaram de um dia para o outro. e pela manhã. fizeram um café forte e partiram num expresso – outros. quebraram-se. depositaram o corpo em mim. e obrigaram-me a ser fiel depositário.  e ali fiquei. com as mãos estendidas. como deve um amigo ser. presente. para evitar males maiores. ou que se aborrecessem. ou se afastassem. afinal os amigos são coisa fina. cristal de murano – mas o tempo é ruim. e tal como o cometa halley. alguns destes amigos seguiram viagem. é a vidinha. talvez apareçam daqui por setenta e cinco anos. serão bem-vindos se tiverem boas razões para voltar. e muitas histórias para contar – os amigos são assim. humanos como eu. às vezes precisamos de partir. precisamos de abalar para local desconhecido. para ser como somos. para ter tempo para nos reencontrarmos – mas. enquanto nos escondemos na vidinha que nos tocou. sim. porque às vezes não temos escolha. precisamos do escuro para clarear ideias. procurar o que demos por perdido. aprender a escutarmo-nos. aceitarmo-nos. limar as complexidades com uma pequeníssima lima de manicure. os amigos abalam. e quando voltamos do escuro já não temos ninguém à espera – a vida corre sempre para a frente. para a invisibilidade. e o que ficou para trás não passa de nevoeiro. igualzinho ao de d. sebastião. acreditamos que um dia tudo volte a ser como dantes. não volta. nem o próprio d. sebastião voltou – depois. ainda há os amigos intermitentes. aparecem e desaparecem consoante o que lhes convém. ou os humores. ou as tragédias. e chegam como se nunca tivessem partido. a sorrir. a dizerem que a vidinha é uma trampa. que o tempo é como as enguias. escorregadias. e abraçam-nos até os ossos estilhaçarem. juram saudades que são quase dor. e convencem-nos de que no canto do seu olhinho reluzente. a ramela é verdadeira. sobra da última lágrima. que depois de bem seca. se faz cristal. possivelmente também de murano – com o tempo fui perdendo amigos. ou coisa parecida. mas quem não os perdeu? só não os perde quem nunca teve o privilégio de os ter – crescemos e tomamos caminhos diferentes. é a vidinha. digo eu agora que já não encontro razões para tanto desencontro. a juventude envelheceu. passou a sénior. o corpo amadureceu. a memória mingou. as mãos aceitaram os tremores. o coração bate e esbate. e o céu ficou mais belo e perto – agora. neste estado de pré-decadência apressada. mais complacente. mais sabedor de que nada sei. encontro outros entendimentos. mais nobres e mais rebuscados. acertados com mais predicados. o corpo roga mais tolerância e menos ego. e finalmente. percebemos que os amigos vivem na arca do nosso santo graal. com a família. e guardam em si todos os seus mistérios. como eu – o que mora dentro de cada um dos nossos amigos apenas pertence a um só corpo. e só esse corpo conhece e sabe as verdadeiras razões da sua viagem – como disse agustina bessa luís. o mistério da vida cumpre-se em cada homem de uma forma única – é a vidinha – envelheci demasiado. quando quero lembrar-me de mim. com o corpo esguio. e o cabelo a cair para o lado dos sorrisos. tenho que me procurar nas fotos. e fico sempre espantado. e interrogo-me: este sou mesmo eu? parecia passado a ferro. lisinho. as pontas dos pés acertavam-me em cheio no nariz. e os lábios sempre prontos a falar. às vezes a desatinar. quando ficavam excitados anunciavam bom tempo. com as gaivotas a escaparem-me do céu da boca. loucas. e o vento… sempre a puxar do sul. acompanhado de um aroma suave. fresco. e a pele eriçada. arrepiada com um mundo redondo. azul. com mares. com alma. sol e sal. e o pulôver atado à cintura a desafiar o outono. o meu outono. era um miúdo com uma vidinha gira – e eu sem saber quão rápido chegam os outonos. ingénuo. é a vidinha. não apenas a minha. mas a de todos – mas enfim… é o que é. consola-me saber que os meus amigos também envelheceram. fizeram-se das suas razões. tornaram-se naquilo que quiseram ser – as histórias de amigos acabam sempre com um final feliz. ou quase sempre. as que acabam mal existem para nos obrigar a ter cuidados redobrados. cada amigo tem um mundo que é só seu. tem o seu mistério – o tempo coloca tudo no seu lugar. acerta as horas segundo o tempo interno de cada um. e depois. aparece aquele momento. que relembraremos para sempre. principalmente nos desequilíbrios. nas noites mais cumpridas. nas dores invisíveis. em que nos tornam eleitos. únicos. diferentes das maiorias. que é quando nos dizem: és um bom amigo. especial. singular. e sorrimos tímidos e envergonhados. estranhamos. mas depois entranhamos. e obrigamos as gaivotas a sair da boca. pedimos-lhes que levem a boa nova ao mundo. e ficamos em festa. gratos. encantados com o que somos. e esquecemos por mais um século o que gostaríamos de ser – os amigos são a nossa rosa dos ventos. e o norte aponta sempre para eles. para eles e para a família – a felicidade não é assética. mas é quase sempre efémera. às vezes ilusão. às vezes apenas o contrário de dor. que acabamos rapidamente por a rejeitar. medramos só de saber que está a caminho de nos encontrar – para cada segundo feliz sofremos horas de agonia. foi assim a vidinha. não foi feita para nós. não somos dignos de a saborear por um ano. um mês. um dia. temos apenas direito a momentos felizes. espremida apenas de pensamentos joviais. em noites de auto-satisfação – é como vestir umas calças com dois números acima. se não usamos cinto. caem-nos. se colocamos cinto. encarquilham. num caso. ou noutro. ficamos em dúvida se engordamos. ou emagrecemos. e acabamos por preferir a neutralidade. nem feliz. nem infeliz. usamos um número intermédio. e tudo encaixa na perfeição. é o número mágico. faz-nos invisíveis. assim. ninguém nos pergunta se está tudo bem. ou mal. estamos sempre com ar de nem oito. nem oitenta. às vezes quase mortos. às vezes na lua. mas aos olhos da multidão. está tudo bem. como sempre – enquanto a infelicidade que infligimos aos outros. digo. aos amigos. fica para sempre. e quase todos os dias vem à memória o dia do pecado mortal. arrependemo-nos. remoemo-nos. sangramos até à exaustão.  mas a vidinha não anda para trás. e em dor e fogo tatuamos na pele três palavras: és uma vergonha – e quando estamos sozinhos. apenas connosco. vestimos uma túnica branco. e tal como egas moniz. ajoelhámo-nos. entregámo-nos em perdão. e ali ficamos à espera que a cabeça nos caia nas mãos. com os nossos olhos. nos olhos dos amigos – não se pode virar as costas a um amigo de olhos no chão – agora. as gaivotas já não me passam pelos lábios. penduram-se como morcegos no céu da boca. a degustarem o meu refluxo estomacal. e o verme do tempo a mastigar a vida num vagar tonto e esquizofrénico – finalmente absolvido. mortal. finalmente todos mortais. todos perdoados. eu também

 

II.     invisibilidade anunciada 

mas que importa isto. ou aquilo. o que sei é que comecei a caminhar onde o passado me formou. e às vezes passo pela rua que me viu nascer. e tento encontrar-me. e já não me encontro. desapareci daquela rua para sempre. ou tornei-me invisível. e por mais tentativas que faça para me encontrar. não me encontro. a vidinha é isto. uma ilusão de eternidade. e o que nos espera é uma sucessão de pequenas mortes. que nos faz desaparecer aos bocadinhos. e um dia. sem nada possamos fazer desaparecemos para sempre – como eu. os amigos. desapareceram por culpa da vidinha. tornaram-se invisíveis. e quando tentamos recuperar a sua face. já não a reconhecemos. esfumaram-se na vidinha. ficou-lhes o nome. que viverá enquanto eu viver. e depois. também um dia. quando eu expirar. quando as gaivotas me morrerem na boca. e o verme saltar para a terra. morremos de vez – a vida corre desenfreada para o fim. para o silêncio do pó. e nesta correria parva espera-nos a invisibilidade. a minha. e a dos meus amigos – e a rua onde eu nasci. será a rua de um outro como eu. que perderá amigos como eu. e envelhecerá como eu. e tornar-se-á invisível como eu – é assim que o mundo gira. é a sua vidinha – às vezes desistimos da vida. mas continuamos a respirar. estamos fartos de perder coisas: perdemos os sapatos de pele que nos custaram uma fortuna.  o avião para veneza. o nascer do sol. a chave de casa. o tempo. e logo logo perdemos a esperança. a honra. a dignidade. e a calmaria que nos faz esperar pelo nosso dobrar dos sinos – pedimos então suicídio. e é quando nos perdemos de nós. do caminho que sonhamos. e metemos a mão à boca para deixar de respirar. e ouvimos o verme a agoniar. e as gaivotas loucas na escuridão a cravarem-se nos dentes. e as lágrimas que nunca serão cristal de murano caiem-nos em cima da verdade. cristalizam-nos – cristalizam-nos na verdade absoluta – não somos nada. somos apenas passageiros da vidinha – e a saudade de todos os que amamos a passar pelos olhos ainda abertos. em desespero. numa agonia brutal. e aos poucos vamos sufocando. e a morte acontece na sua solene simplicidade – é o fim da vidinha. único acordo de cavalheiros apalavrado com o primeiro sopro de vida: um dia morrerás e serás para sempre invisível – é a vidinha – envelhecer nem sempre é castigo. envelhecemos para receber a última aula de saber. começamos a respeitar o tempo. aprendemos a amaciá-lo. a torná-lo num chá quente. consolo simples. reconfortante. e percebemos que enquanto respiramos é nossa obrigação juntar as moléculas e marchar. meter as esporas nos pés. deitar o corpo sobre a vidinha. como um jockey se deita no dorso do seu cavalo para que o galope alongue. e partir desenfreado pelo o que nos resta de tempo. conquistá-lo com dignidade. atingir a meta com dignidade e verdade – por minha culpa. tão grande culpa. mas às vezes acredito que não tive culpa nenhuma. para cada amigo que ia conquistando. perdia três. às vezes perdia uma mão cheia de uma assentada. e nem um me chegava em troca – pensava. é o êxodo. castigo de deus ou do universo. ou então. iam em busca da sua vidinha prometida. que mal lhes posso ter por quererem a sua vidinha – com o meu outono chegaram os novos amigos. mais compostos. mais parecidos comigo. mais doces. a falarem de coisas mais adocicadas. talvez porque também eu me tornei mais meloso. mais cuidadoso com as portas que abro. culpa da vidinha. ou da minha falta de maleabilidade – a plasticina ao tempo fica rija e impossível de trabalhar. e posso confessar-vos agora. já não me trabalho como antigamente. agora prefiro escrever e abraçar os amigos mais certos. os que me tocaram por gosto – não foi de propósito. foi a vidinha. outonos em demasia. amadureci. como se fosse um fruto. talvez um morango. ou uma laranja. ou a maça do paraíso. que estupidez. como é que algum dia poderia ser um fruto. petrifiquei-me. e mesmo abrindo a boca e espantando as gaivotas. não fui suficientemente bom comigo. não me perdoei. às vezes perdoo-me. mas muito devagarinho. suportando-me. serrando os pulsos – sem dor não há perdão sentido – mas confesso. ainda não consegui livrar-me do sabor amargo da vidinha que fui desperdiçando – infelizmente. nem sempre vento e liberdade são sinónimo de envelhecimento com estima

 

III.   o último andar do belo absoluto

os amigos são como elevadores. apanhámo-los na vidinha. e rapidamente os convidamos a subir ao último piso de quem somos. chegados lá. sem custo. animados pela conquista. ainda fazemos questão de subir mais uns degrauzinhos. queremos chegar mesmo ao topo. para o céu nos escutar sem esforço. e para terem uma vista real da nossa magnitude. e logo dizemos: estás a ver tudo isto à tua volta. é tudo meu. é o meu pé-de-meia da vidinha – a amizade é uma forma de amor. e tudo o que é amor é lei universal. augusto comte. fundador da sociologia moderna. escreveu um dia o seguinte: “o amor por princípio. a ordem por base. e o progresso por fim” – por princípio os meus amigos. são aqueles que se comprometem a sofrer a meu lado. para sorrisos nunca me faltou espaço no relicário – os meus amigos sempre foram os meus heróis. eram todos aquiles. guerreiros. poderosos. inteligentes. bonitos. apenas pequeníssimas debilidades nos calcanhares. por serem aquiles. presentes nas horas más. sangrando comigo. chorando. agoniando. apoiando. dizendo-me: amanhã é outro dia. acredita – os meus amigos são a minha poesia épica. a epopeia da minha vida. da nossa vida – eles e a família são o meu anel de fogo. que me protege no tempo. que é a minha vidinha. e que por ser escassa e trabalhosa. acabou tresmalhada nos seus enredos – na nossa vidinha não há grandes possibilidades de voltar atrás para refazer o destino. o que nos em calhou em sorte. ou desnorte. ou então sou uma experimentação de deus. ou extraterrestre. uma ordem do universo. com o rótulo: experiência 17552. do ano estelar -41296.36. o que está feito. feito está – é por isso que os levamos para o último piso. que é o mesmo que lhes oferecer um sofá para dentro de nós. sentamo-nos nas telhas. algumas de vidro. que são o calcanhar de aquiles. e mostrámos-lhes como tudo é fantástico. damos-lhes o melhor do que gerámos. escondendo o nosso atalho para o inferno – e depois do barulho. quando o silêncio nos despe. humildes. falamos-lhes da nossa pequeníssima vidinha. sem interesse. nebulada. escura. fria. e irritante – somos o que somos. independentemente do que nos rodeia – apontamos para uma árvore. uma que está mais acima do que as outras. talvez com as folhas mais verdes. talvez também mais elegante. e apenas dizemos: olha que árvore bonita. que bela. e olha a cor. as folhas geométricas. tão certas. tão perfeitas – procuramos o belo-estético onde não existe mais do que apenas o belo de uma árvore. igual a tantas outras. e que não servem para mais nada senão poiso de pássaros – e as minhas gaivotas presas ao céu da boca. incrédulas por tanta louvação e esplendor. a interrogarem-se para que servem tantas árvores se lhes falta um mundo redondo. azul. com mares. alma. sol. e o sal – um dia. estas árvores tornar-se-ão também invisíveis. apodrecerão. ou acabarão nas mãos de um marceneiro. nada fica para sempre. nem a água da chuva. nem o vento. nem o amor. nem os olhos que o veem – respiramos o belo como se estivéssemos drogados com tanta afinidade. como dizia miguel torga: daqui se vê o belo absoluto – olhamos um para outro e interrogamo-nos: o que há dentro de nós de tão mau para nos darmos tão bem? quando gostamos de um amigo perdemos o nosso vento sul. e as gaivotas voam de olhos fechados. afinal o mundo é azul. com mares. alma. sol e sal – olhamos ao redor e todos as árvores são especiais. e todas diferentes. umas mais pequenas. encorpadas. mais esguias. e até as atarracadas te seduzem. e dizemos em uníssono: um dia serão enormes – interrogamo-nos. porque são as árvores tão esguias? e concordamos: para se protegerem do outono. das intempéries. dos ciclones. dos dias frios. e do gelo da vidinha –   mas um dia. se tiverem sorte. darão uma credência d. maria às mãos de um marceneiro – que final feliz para uma vida – e ali ficamos. dias a fio a olhar a imensidão das árvores. a imensidão do futuro. o infinito. a contar credências d. maria. a viver a vidinha. a sorrir. a ser um bocadinho felizes – depois. e como a maior parte dos amigos que levamos para o nosso terraço. deixam de ver árvores. e o céu desaparece. afogam-se no nosso belo absoluto. cansam-se. arfam. bocejam. arrotam a fim – é a vidinha – os amigos não passam de humanos com as suas vidinhas. iguais a todos. mas em tudo diferentes de mim. não por não ser humano. mas por razões que desconheço. ou conheço e não compreendo. o que sei. mesmo não sabendo explicar. é que num instante absoluto. ou não. aos seus olhos. às vezes também aos meus. o belo falece. e um deserto brutal emerge. é como se de repente estivéssemos acampados no saara. e o desespero do fim amarra-se à vidinha que ainda sobra. como a areia ao vento – agora. eu e alguns amigos. ou coisa parecida. percebemos que as árvores afinal não são tão altas como pareciam. e as credências d. maria. não passam de bancos saloios de três pernas – é quando entra em equação o tempo. essa coisa que muda tudo. transforma o novo em velho. as ideias geniais em ideias parvas. o pensamento positivo em negativo. e o belo… num susto – começas a centrifugar-te. cada vez com mais velocidade. numa circunferência descoordenada. e percebes que o que era belo já não é assim tão belo. afinal a grande maioria das árvores nunca serão credências. nem bancos de três pernas. serão somente árvores. nada mais do que árvores – juntas eram uma floresta. sozinhas não são nada. talvez quase nada. porque mesmo sozinhas não deixam de ser árvores. existem. mas mais tarde. ou mais cedo. serão lenha seca. é a sua vidinha. e ao fim de cada dia. o sol desaparece por detrás de cada uma delas. desaparece para todas. para mim também – e cada um de nós guarda o seu universo. mais nosso. e deles também. tão nosso. e deles também. que apenas nós. e eles também. o compreendemos – começamos a preferir-nos. a querer mais para o que somos de verdade. nem que seja um dedal de felicidade. um sorriso que dure mais do que um instante. que cavalgue pelo tempo. anunciando a boa nova: chegou a idade do saber – mas se for mentira. que nos engane com classe. e nos faça acreditar até que o último suspiro caia por terra. com o verme – percebemos que em qualquer vidinha somos únicos e fantásticos. é altura de apostarmos em nós. ganhamos coragem. e assim fazemos. metemos então as fichas todas no tempo que nos falta viver. e cruelmente. deixamos de querer compreender as outras vidinhas. e dizemos: é a vidinha – voltamos a ficar sós. como árvore isolada. podíamos ser uma floresta. mas não somos. somos apenas nós com a nossa vidinha – metemo-nos novamente no elevador e começamos a descer. primeiro um andar. depois outro. às vezes vários de uma só vez. e em cada um dos andares deixamos sair amigos que connosco subiram ao topo do belo absoluto – é quando começamos a contar os amigos que perdemos ao longo da nossa vidinha – percebemos então o peso de cada perda. alguns não gostaram do meu terraço. nem das alturas. outros deixaram de gostar de árvores. e outros não gostam de nada. nem de si – e eu a interrogar-me: porque estão tão longe de mim? juro que não sei. a mim parece-me que estou sempre mais perto deles – o que sei. palavra de honra que sei. é que os meus amigos de verdade estão mais perto do céu do que eu. são especiais. mais tarde ou mais cedo todos serão credências d. maria – a minha grande interrogação é porque não consegui mantê-los todos no topo do meu edifício. não pode ser culpa só deles. eu também me devo ter perdido com a vidinha. talvez por acreditar que nunca seria uma credência d. maria – é a vidinha. mas esta vidinha. esta minha vidinha. interroga-me todos os dias: porque raio é que vivo num edifício tão alto? se vivesse mais perto do chão. talvez tudo fosse mais fácil. abria a janela e todos aqueles que me quisessem conhecer só teriam de espreitar. e mesmo que não gostassem das quinquilharias que carrego. podiam sempre ir passando. porque afinal estamos sempre a mudar de coisas. de nós. de modos de estar. e quem sabe um dia. passavam com outros olhos. noutra vidinha. e até talvez parassem para conversar. e falassem um pouco da sua vidinha. e eu falaria da minha. falava-lhes do desejo de um dia ter uma credência d. maria em casa. para por ao lado de um banco saloio de três pernas – mas é a vidinha. feita de caminhos que nos cercam por todos os lados. e ali andamos como se fosse uma ilha. com o nosso oceano de árvores. e de outras coisas que por serem muito nossas. guardamos em buracos que são o inferno. protegidas por fantasmas. guardiões do calcanhar de aquiles – e agora. neste caminhar vagaroso. percebo que poucos ficaram na minha vidinha. mas os que ficaram. os que vivem em mim. sei bem por que razão os amo. porque todos eles são credências d. maria – não quero mais portas a abrir e a fechar. quem entrou é cristal de murano. é para acolher de mãos abertas. é para nos sentarmos no sofá e apreciar o belo absoluto. amaciar os silêncios. enganar o verme. e libertar definitivamente as gaivotas. as minhas e as deles – e se por acaso o tempo se fizer mau. se chegar uma borrasca. abro as janelas para que o vento me limpe as lágrimas das ausências – sei agora que a culpa da vidinha que escolhi é minha. só minha. e com ela. um dia. me tornarei invisível – mas agora também sei. que não posso perder mais ninguém. tenho o corpo lotado de campas e saudade


16/11/2023

a memória do futuro



foto - sampaio rego


foi uma trabalheira gigantesca chegar até aqui – mas cá estou hoje. a escrever livremente. sem receios. porque quando alguém ler estas parvoíces que escrevo. já será passado. e esse passado jamais mudará o futuro. só o presente tem essa dinâmica. e é por isso que escrevo. hoje. este meu presente. que fará o meu futuro mais claro. mais compreensível


13/11/2023

deambulações noturnas LX



imagem google



na juventude morremos e ressuscitamos todos os dias. e nem assim nos habituamos à ideia de que haverá um dia em que a morte será definitiva – um dia. o meu epitáfio. será escrito numa simples pedra rude: nasceu por amor. e morreu contrariado