.................................................................................não tirem o vento às gaivotas

17/09/2024

dia perfeito






 



hoje seria o dia perfeito para me encontrar com a minha mãe. sinto a saudade amargurada – ouvi dizer que está calor. e que os entendidos aconselham a beber muitos líquidos. mas eu não sinto nada. nem calor. nem frio. talvez uma pequenina arritmia no coração. ou a falta de uma fala. ou uma cadeira de encosto virada para o mar – sempre precisei do mar por perto. o mar relaxa-me. sossega-me. desfadiga-me. e também gosto da forma zangado como abala do areal. para logo de seguida voltar pé ante pé – gosto das gaivotas. da sua ligação íntima com o oceano. e da forma como cortam o vento. parecem toureiras com asas. corajosas como ulisses. aliadas de bóreas. e livres de convenções. os dias pertencem-lhes por inteiro – gosto de enterrar os pés na areia para não ir a lado nenhum. ficar sozinho comigo. a escutar-me. e sempre que me escuto acrescento-me. encontro sempre alguma caixa perdida de bugigangas. é quando as gaivotas se precipitam na imaginação. tão doidas como eu. e começamos a contar grãos de areia. a separá-los. os arredondados para sul. e os que tem arestas para norte – é nesta loucura de contas duvidosas que me agarro à liberdade das gaivotas. e voo sem destino. livre de interrogações e dúvidas. e sorrio ao me ver. desigual por ser apenas eu na minha realidade – quando estou com a cabeça no ar é quando gosto de mim. e me interrogo: porque não posso sentir na terra o que sinto a voar? mais uma vez a resposta é não sei. talvez seja da gravidade. do peso do céu no cérebro. ou cresci demais. e já não me esgueiro das pessoas como antigamente. não posso. são reais. andam sempre com os pés acorrentados à terra. e sobrevivem sem interrogações – o que sei mesmo é que quando estou junto ao mar. com os pés enterrados no areal. para não poder fugir de mim. fico como se não existisse. e são as gaivotas que me ajudam a voltar à realidade que. inevitável. faz de mim menos humano. digo. sobrevivo a competir diariamente comigo e com as minhas interrogações – gostava de voltar à puerícia. quando partilhava o areal cheio de ilusões. e onde construí castelos e desejos maiores do que o empire state building – hoje era o dia perfeito para me encontrar com a minha mãe. sinto a saudade a segredar – se lhe encontrasse as mãos talvez o meu rosto pudesse sorrir ao me ver. ou sossegar por apenas ser – para uma mãe somos sempre superlativos. perfeitos. futuro. esperança – mas a esperança não existe quando o mundo que construí está incompleto. mas que posso eu fazer? nada. é na imperfeição que sou. é na imperfeição que deixo de ser. e entre me ver como sou. e o que não consigo ser. há um caminho que é somente meu. é a minha vida. e em cada lamento. em cada pedra pisada. a interrogação de muitos: porque raio foste por aí? não sei. talvez pelos ais que me tornaram mais piedoso. talvez para viver num corpo que não sorri ao se ver. talvez pelos sacrifícios. ou pelos desencantos. ou para sossegar por apenas ser – hoje era o dia perfeito para me encontrar com a minha mãe. sinto-a por perto – se lhe pudesse falar dizia-lhe que foi muito bom nascer nos seus braços. e que gostava de ter a sua capacidade de trabalho. do seu cuidado em unir a família. de a alimentar de perseverança e coragem. e de me chamar até ao último dia meu filho. foi quando cortamos o cordão umbilical – mas não posso minha mãe. não nasci com esses desígnios. restam-me as memórias. e as fotos que a fazem visitar no meu cosmos – nascer é muito complicado. crescer é um drama. e envelhecer um terror. mas é assim para todos. eu estou nesta leva. apenas com mais interrogações – e mesmo que fizesse um buraco até ao outro lado da terra. e me erguesse de mim para ser maior. eu seria o que sou. falava a língua de camões. em verso ou em prosa. de pé ou de rastos. a sorrir ou a lamentar-me. sou o que o destino fabricou – todo o meu passado foi ontem. e tudo foi tão rápido – hoje sei que sou apenas uma brisa que vai passar – agora. o meu futuro é falar com os fantasmas que me ocupam o corpo e a mente. entendermo-nos. acertar contas antigas. aceitá-los. e dar-lhes um quarto com uma janela para fora de mim – e quem sabe as gaivotas me pousem nas pontas dos dedos. e me ajudem a escrever outra vida. sorrir por apenas ser. aceitar-me por apenas ser. e viver como as gaivotas. livres. surfar o vento. toureá-lo. e um dia. lá para depois de amanhã. poder morrer como sempre desejei. em liberdade – como diz eduardo lourenço. mais importante que o destino. é a viagem – eu vou dentro de mim. só não sei para onde. mas algum lugar me há de albergar

 



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