esta manhã procurei-me.
desapareci. perdi-me no tempo – ouço o corpo a caminhar de um lado para o
outro. aos pés presas as coisas. talvez memórias de outra vida – pedaços de mim
que fui perdendo aos poucos – olho. volto a olhar. e nada vejo. estou escondido
atrás de um pensamento: como uma janela partida. de onde se veem coisas que um
dia foram reais – silêncio. todo o silêncio que alcanço está comigo – dentro do
silêncio eu - rebentam lágrimas. acontecem sempre que recordo o passado. deve
ser da saudade. arrependimentos. talvez – dentro deste emudecimento uma papoila
reclama luz. os barulhos já não existem. e os ouvidos abrem-se como flores a
atapetar ruas – talvez esteja mais sensível. mais velho. mais perto do fim. só
pode ser – os humanos choram por coisas de nada. alguns choram até de
felicidade. não é o meu caso. choro por dilacerar memórias. choro por não poder
voltar a encontrar-me com o que fui. e principalmente com o que pensava ser – deito-me.
deixo o corpo cair no nada e fujo. fujo todas as noites em que não durmo. fujo
a cada nascer do sol que não é meu. fujo a cada prato de sopa que me afoga em
medo. fujo de cada vez que tenho de comer o pão amargo que o diabo amassou –
fujo sem saber para onde. e também não seu se a carne ainda se agarra aos ossos
– perdi-me para sempre. para sempre – este jeito de fugir leva-me ao passado
sem sair do presente. e eu perdido no interior do furacão a levar-me para norte.
a pedir-me que me transforme em folha. e que voe até desaparecer no inferno –
no inferno vivo eu. eu e este vento norte maldito. esta fraqueza que me toma a
vontade como se eu fosse um humano ingrato – depressa. tenho de aparecer ao corpo.
usá-lo. assim como quem vai construir outra vida. outra história. a morte
afinal já está tão perto. sinto a oração na boca para a absolvição. talvez o
melhor seja caminhar. para chegar a tempo de ser o que sou. ir de encontro ao
fim sem medo. sem receio. sem o suor frio que gela a pela que me cobre as
impurezas – caminho. às vezes devagar. outras mais depressa que os pés. umas
vezes na vertical. outras curvado. é aqui que aproveito para deitar os olhos ao
chão. onde vive tudo o que escrevi com alma – há dias em que é tanta a desonra que
nem os abro. tenho medo. tantos barulhos correm dentro de mim. correm como o sangue
nas veias. e eu apodreço. sempre que penso apodreço mais. sempre que chamo pelo
meu nome apodreço ainda mais. sempre que a brisa é quente. como se ainda
houvesse verão e o cheiro a terra conquistasse a fé que um dia tive. mas o
calor é o inferno e no inferno não há quem não apodreça – maldito inferno – tenho
que andar. tenho de ir – mas olhar para dentro do passado não é fácil. o
arrependimento não quebra correntes feitas de aço temperado ao fogo da
juventude – queria tanto que se quebrassem. talvez assim a dor partisse e as
mãos morressem de paixão. talvez – o tempo passa e em pedra continuo. bruxedo.
feitiço. não interessa. o corpo ainda continua a fugir. sem lágrimas. sem língua.
sem memória. sem futuro. sem solução. sobram as mãos para escrever – não sei se
estas são as últimas palavras. nunca sei quando serão as últimas. o último
suspiro. o último sofrimento. o último sopro de vida. mas em cada dia que vivo. o tempo farta-se de
mim – há tempo – tempo é despedida
27/02/2011
para sempre. perdi-me
15/02/2011
hoje. ando por aqui: o último verão dos castelos
hoje ando por aqui. nem compreendo bem o que significa
este andar. talvez sentir o movimento das marés. ouvir as gaivotas a falar com
o vento. recordar o calor dos verões que me fizeram crescer. lembrar o homem fada
que vendia língua da sogra – dentro de mim há uma praia azul. enorme. com
baldinhos. forminhas. ancinhos. e grandes castelos de areia – nos meus
castelos. aqueles que eram feitos por mãos que ainda não conheciam o pecado. só
havia o bem – naquela praia todos os
dias nascia um novo castelo – eu era rei. a meu lado os meus súbditos:
estrelas-do-mar. búzios. lapas. mexilhões. o sargaço e aquele cheiro a iodo que
me faz correr vida adentro – o mar ia e vinha. vaga após vaga. dia após dia e os
castelos de sonhos cresciam e desfaziam-se com o sol a afundar-se no mar – pela
manhã. no areal. o prenúncio de uma vida: ruínas – mas os meus súbditos ali estavam.
fiéis. nunca me abandonaram. a cada dia de sol. um novo castelo de esperança –
ainda hoje. sempre que vou à praia. ali estão os meus amigos. mas já não sou
capaz de construir castelos. não os quero desiludir mais. sei que vão ruir ao
cair da noite. e pela manhã não terei a mesma força para construir outros. como
no passado – não sou capaz. já não sou capaz – o meu mundo já não é igual. o
sol já não volta a cair no mar – agora sou peregrino. as mãos outrora brancas. agora
cinzentas. sem alegria. sem vida. sem iodo. respiram apenas para sobreviver. encurtam
caminham lentamente para a morte – um dia. depois de outro verão. as marés não
mais subirão até ao meu areal. não mais voltarão a destruir os meus castelos.
estarei então. finalmente frente a frente com o tudo e o nada – o meu último
verão – eu e os meus castelos seremos então. para sempre. uma história de fadas.
enterrados num mundo só nosso. mágico. viveremos
para sempre onde agora vivem aqueles que. um dia. me ajudaram a fazer verdadeiros
castelos – hoje ando por aqui. este verão não me larga. a água é tão azul. encontro
ainda as barracas enterradas no areal. guardavam famílias felizes. pais
cansados pelo trabalho – o meu pai falava.
gostava de falar. era enorme. havia dias que tapava o sol. as nuvens. e até o
horizonte acabava morto a seus pés. nunca vi nenhuma onda maior do que ele. sabia
que a vida era feita de palavras. palavras francas. livres. doces. doces como
mel. sempre enfeitadas de gestos para rostos passageiros – a minha mãe. sentada na areia. ouvia o sol.
olhava o futuro com orgulho na face – sempre teve medo dos inesperados males de
um mundo feito de trabalho que não queria para os seus – o futuro tão perto e
tão longe – a saudade é cada vez mais cruel. deve ser por conhecer a morte cada dia mais perto. mais negra – a carne.
mais dia menos dia. não vai aguentar. levará definitivamente outra metade de
mim – o homem fada que vende língua da sogra grita pelo meu nome. enquanto as
pernas revolvem a areia que ainda não chegou ao mar – nesta areia branca. pura
como estas memórias. enterrei os meus sonhos – hoje ando por aqui. recordo quem
fui e o que sou agora. como falava. com ele aprendi a falar. como sorria. com
ele aprendi a sorrir. como sonhava. com ele aprendi a sonhar. como amava. com
ele aprendi a amar. como era amigo. foi com ele que aprendi a ser pai – hoje ando por aqui. penso. porque
é que o mundo não anda para trás. devia andar. tenho tantas saudades do homem fada
que vendia língua da sogra
14/02/2011
porquê
não me venham dizer que afinal nunca estive ali.
estive ali e aqui – estive dentro de um milhão de perguntas que nunca tiveram
resposta. sem uma casa para se abrigarem. sem sol na eira e chuva no nabal. sem
guerra que leve à paz. sem nada – talvez seja culpa minha. talvez esteja louco
e não saiba quem sou. e. não sabendo quem sou. não posso compreender as
palavras. nem o que significam – talvez eu também não saiba o caminho para
casa. talvez viva num manicómio. talvez tenha nascido morto por dentro. talvez tenha
incorporado uma gaivota cinzenta. talvez hoje chova e a água que cai do céu
seja apenas para regar os jardins escondidos sob os guarda-chuvas – cada vez
estou com mais dúvidas. talvez o problema resida nas perguntas que faço. possivelmente
não têm resposta. talvez ainda não tenha crescido o suficiente – as crianças
são sempre puras. mas ingénuas. para cada resposta encontram sempre mais um
porquê – porque deus me fez assim. porque deus não vive na porta ao lado.
porque deus não tem um carro desportivo. anda tão devagar. demora tanto tempo a
chegar. e na maior parte das vezes nem aparece – talvez esteja velhinho. talvez
não tenha carta de condução. talvez esteja cansado de ser deus – vou inventar
um deus. um que ainda ninguém adore. um que esteja pregado numa cruz. um que morra
aos trinta e três anos. um que suba ao reino dos céus e se sente à direita do
pai. um que ressuscite lázaro. um que saiba andar em cima da água. um que saiba
o meu nome. um que viva não na minha porta ao lado. um que viva no limite do
meu mundo. um que seja de carne e osso – talvez. eu seja mesmo louco – talvez
12/02/2011
nunca só
caminho por aqui. triste. mas nunca só – trago na memória uma mão cheia de pessoas que sempre me acompanham – tenho saudades. muitas saudades de as sentir no abraço
04/02/2011
17 de abril
ainda tudo me corre nas mãos
noite
.......dia
..........noite
................dia
....................a morte
................mais aqui
a palavra
.............esta que fala por mim
.............................................sobrevive
entre as noites
............................um dia
apenas um dia
.................de abril