.................................................................................não tirem o vento às gaivotas

28/03/2011

somos palavras. somos memória







– não minha amiga –

afastei-me apenas da claridade desnecessária. aquela que. em vez de aclarar. acaba por cegar com luz sobre o vazio – o teu amigo continua dentro das palavras. mesmo naquelas que. por momentos. te possam confundir com uma outra qualquer personagem. que um dia partiu sem te dizer adeus  - acredita que estou sempre aqui. sempre. e. quando não estou a escrever. estou deitado a descansar nas linhas em branco que deixo sempre entre o fim de uma história e o começo de outra – leio-te sempre. e em cada palavra tua. encontro algo novo para aprender. principalmente com as viagens ao interior dos teus olhos. que são o teu mundo – e eu sempre aqui. sentado a ver-te pintar o mundo com palavras. com orações subordinadas ao teu universo. que é tantas vezes meu também - eu sou eu. sou pouco mais do que nada. serei sempre este grão de poeira no tempo – há dias que apenas sou o que consigo ler. são as tuas palavras que me aliviam a dor de não saber escrever – nesses dias de caos. ainda sou mais teu amigo. estou mais aí. mais perto do que és. do que somos com palavras – afinal. somos palavras que se escrevem umas nas outras. construindo quem somos a cada linha partilhada



19/03/2011

pai





hoje é o meu dia - sou pai. sou pai com sorrisos. com abraços. com beijos. com carinho. com amizade – é bom ser pai - um dia. mais tarde. muito mais tarde. no meu sofá. trémulo no olhar e nas mãos. vou contar uma história. construída no tempo desta família que guiei até ao meu outono – vou dizer aos meus netos que os meus filhos também são pais. bons pais. porque o meu pai era um grande pai - estou feliz. recordo o meu pai em março. recordo a sua bondade com o mundo. com os homens. a tolerância. a amizade. a alma com que dizia as coisas simples. eu tão novo as complicava tudo. jovem. mas filho sempre – estou feliz. estou feliz porque ainda tenho memória. sei agora que sou também eu fruto desse tempo das palavras segredadas com afeto. com amor. com saber. com caminho – sou pai hoje. sou pai para sempre. serei pai mesmo depois do sol cair. adoro ser pai. foi o melhor da vida  – dia feliz meu pai onde quer que estejas. hoje um teu neto trouxe-me moletinhos de s. josé. como eu fazia no passado. estão em cima da mesa. e tu também estás cá para sempre



16/03/2011

é março







1.

continuo a esconder os olhos ao futuro. estas vestes negras não me largam. trapos carregados de memórias dolorosas – o corpo traja luto. as mãos permanecem doentes. definham – a torre bate a defunto – bate forte. bate sem tempo – o corpo no badalo vai e vem – as pombas brancas voam em círculo sobre a terra que engoliu a oliveira – já não há esperança de um novo mundo para os vivos – corre a morte. corre silenciosa. como o rio para o mar corre – é março. e em março o silêncio magoa antes da primavera – ainda te vejo dentro dos olhos: deitado. sem sofrimento. sem gemidos. sem lamentos. sem sorrisos. dormes. dormes como sempre. em paz – é março e as tuas mãos continuam cruzadas no meu olhar  

 

2.

à tua volta as flores. em coroas. uma dor de primavera. castiçais dourados suportam círios mudos. iluminam a noite onde me encontro. ardem. ardem com pressa. consomem o tempo que era todo nosso – o salão está frio. nenhum corpo consegue aquecer a vida parada. a saudade já faz medo. está aí. espreita nas sombras imóveis das paredes e o tempo sempre a correr. sempre a fugir da luz – pela espera dentro. o entra e sai da vida. chamam-me pelo nome. roubam-me a calmaria que descansa a teu lado. já tenho pouco tempo para te dizer que o silêncio chegará em pranto. não vamos poder estar juntos quando o sol abrir os dias grandes. bem sei que ao teu lado todos os dias eram grandes. havia sempre mais dia do que noite. sempre mais esperança do que temor. estavas sempre certo nas tuas certezas. sentia-me tão confortável quando dizias: tudo vai correr bem. era um tudo que me deixava a olhar a eternidade. sem fim. só sabia ser feliz. tudo estava nas tuas palavras – mas a vida não para. as caras continuam a entrar. querem dizer adeus. abraçam-me – os meus sentimentos – mas eu já não sei o que são sentimentos. perdi-os quando gritavas pela morte. e eu ainda via vida. sempre te vi vida. mesmo naqueles momentos em que não te olhava nos olhos. não queria sofrer. queria ver vida. sempre vi vida a teu lado – lamento muito a sua perda – qual perda? jamais serás uma perda. queria tanto ser como tu. queria tanto fazer coisas para ti. queria o teu abraço de orgulho. entregar-te o que sou. por ter crescido a teu lado a ouvir-te dizer que a família era a tua vida. e eu sempre dentro dela. na tua graça. sempre teu filho – abraçam-me. muita coragem – qual coragem? tu que partiste sem boca. sem memória. sem braços para acenar por socorro. sem olhos para pedires que te ajudassem a encontrar a luz. abraçam-me. coragem – coragem é teu nome. só tu sabes falar de dor. só tu gritaste com os olhos. só tu viveste no inferno enquanto a vida ruía – abraçam-me. agora está junto aos santos – como assim? os santos estão escondidos nas sombras. têm vergonha do que te fizeram. nunca te valeram. se fossem realmente santos. tinham-te levado mais cedo para as nuvens. tu merecias. merecias porque toda a vida me ensinaste a viver de mãos entrelaçadas – eles não te merecem à direita do pai. talvez me revolte. talvez. mas será que eles veem o que te fizeram? já é tarde. já não tens dores. agora já só resta o som dentro dos meus ouvidos. ouço-te todos os dias. a todas as horas. ouço-te como carne da tua carne. ouço-te como ouço o mar nos búzios – mas não me zango. tu não eras nada de zangas. resolvias tudo a falar. gostavas tanto de falar. mesmo quando a doença te tirou a boca tu continuavas a falar. bem sei que muitas vezes não te entendia. tu ficavas irritado. ah como eu fui estúpido. podia  ter fingido. podia muito bem mentir à tua dor. à tua luta para nunca desistir de falar. a boca era agora pequena e já não aguentava o sofrimento. ainda assim sorrias sempre que fazias meias palavras. fazias tantas meias palavras. e eu achava sempre pouco. queria-te como no passado. queria-te outra vez de mão dada a correr nas procissões da semana santa – o escuro é agora cada vez mais escuro. nunca tinha tido um escuro tão sereno. tão iluminado por dentro. sempre que repouso os olhos em ti. vejo luz. muita luz. o tempo passa e a luz continua acesa – amanhã é dia do pai. como é possível tu partires no teu dia. neste dia deverias estar comigo para me dizeres que as derrotas fazem parte da vida do homem. mesmo quando esse homem é o teu filho. queria tanto que me pudesses dizer que um dia também tu não foste capaz de terminar o teu trabalho. queria que me desses a mão e me levasses ao teu mundo. ao mundo da tua meninice. aquele rio que agora não é rio e que tu mergulhavas para crescer. aquela bicicleta que fazia de ti um rapaz com brilhantina no cabelo. ou aquela fotografia em que tu. homem de chapéu. montavas um cavalo como os artistas de hollywood. e eu encostado à vida choro por não saber como dizer-te adeus – não te sei dizer adeus. sei que estás sem dores. estás sem carne. estás finalmente livre. mas não te sei dizer adeus. sei de tudo isso. mas o adeus ainda me foge da boca. não me peças para aceitar a tua partida no teu dia.  terás que  ser tu a soltar o último calor do corpo. sei que estás a ficar gelado. mas no teu rosto ainda é possível haver mais um dia. dormes tão sossegado. o teu sono ainda tem rios. chuva. ruas alagadas. campos. campos de girassóis e vozes. muitas vozes de crianças que ajudaste a crescer – nos teus olhos fechados a vida continua. ainda me vejo dentro deles a correr

 

3.

chorei tudo. deixei as lágrimas nas noites em que a dor te comia a carne. eu escondia os ouvidos na indiferença para não sofrer – um dia um dos teus netos disse-me que não suportava mais ouvir-te. fiquei destroçado. afinal até eles sabiam que estavas de partida – hoje ainda se lembra dos dias em que o sentavas ao colo e lhe dizias que a vida era bela. eras um homem feliz. aquele teu filho tinha-te dado outro filho. outra esperança para construir uma família cada vez mais ao teu jeito. uma família com muitas pessoas. com palavras ditas aos abraços – a minha vida murmura despedida. por momentos quero acreditar que tu ainda dormes. sem dor. embalado por anjos que vieram do começo do tempo. onde tu corrias para mudar o destino dos que viviam ao teu lado. e eu sempre feliz. descobria ruas. chutava bolas. inventava futuros de que não gostavas. mas eu era teimoso. era feito de ti. feito desse mundo que me oferecias com o teu trabalho. e eu sempre a andar. andava mais depressa do que as tuas palavras. a juventude não nos deu descanso. e tu sempre a falar. sempre a entender-me que a vida também se faz com erros – agora estás aí. pronto a partir. e sou eu que insisto: ainda há tempo para ficar. não podes simplesmente partir assim. não assim – bem sei que se acordares as dores voltam. e também voltará a minha dor. bem sei. mas quero tanto que fiques por aqui só mais um pouco. mesmo que fiques assim deitado. de olhos fechados. de boca fechada. de mãos atadas e com os ossos partidos. quero-te assim. quero-te para sempre assim. mesmo que bem lá no fundo tu tenhas partido. sei que partiste. nós sabíamos que já tinhas partido há muito tempo. os teus olhos eram buracos e a tua língua tinha caído para o outro lado. já não havia meias palavras. já não havia esperança nos teus gestos. restava apenas um pequeno braseiro nas tuas mãos fracas. cada vez mais fracas. trémulas. já incapazes de dizer adeus. já não me abraçavas mais. nunca mais me abraçarás. nunca mais. nunca mais – hoje é dia do pai. é agora também o meu dia. o dia dos meus filhos. dos teus netos. da tua família. da nossa força para existir. somos como ramos de uma árvore que continua a crescer mesmo depois de perder a raiz. para lutar. para contar as tuas histórias. nós somos a tua história. tu ainda corres dentro dos meus olhos e eu dentro dos teus. nós corremos. sempre. sempre até que as oliveiras tragam um novo mundo



sempre março









retratos
retratos guardados
…………………………………memórias
………………………………………………….cores
…………………………………………………………..perfumes
………………………………..agora
preto
…………….branco
………………………………..preto
………………………………………………….branco
rompem-se folhas
………………………………..cinza
………………………………………………….marfim
cai a vida
……………….os abraços
………………………………….as palavras
……………………………………………………….os beijos
e o cheiro ao mar
…………………………………sempre a sorrir
…………………………………………………………………sempre a ir e a vir
sempre
sempre
até que o sal cristalize
………………………………………….os olhos
…………………………………………………………..os lábios
o cheiro das flores
……………………………...…….as coroas
………………………………………………….os ramos verdes
palavras escritas
………………………………...saudades eternas
…………………………………………………………………lágrimas
a terra
…………………escura
………………………………….escura como a noite
dobram-se as pestanas
………………………………….as costas
……………………………………………………….os joelhos
………………………………………………………………………………o beijo
………………………………………………………………………………………………gélido
terra
……………..terra
………………………………terra
……………………………………....sem terra
…….............................................................…...escura como a noite

mas as mãos teimam
…………………………………………..teimam em escrever
a tua voz
…………………..o teu cabelo
…………………………………………….o teu gesto
………………………………………………………………………o teu sorriso
a generosidade
………………………..do teu
……………………………………….olhar
………………………..do teu
…………………..............................abraço quente
………………………..do teu
……………………………………….até logo

voltaremos a falar

voltaremos a falar
sem retrato
.........................sem sombra
.............................................sem tempo
…………………………………………sem terra




-17 de março 1998-



05/03/2011

ainda te abraço





ainda gosto de tanta gente – parto pelos retratos. uns aqui. outros antigos. uns bonitos. outros irritados. uns preto e branco. outros em tom de esperança. uns dor. outros sorrisos. uns arte. outros abecedário. retratos que fazem a minha vida no tempo – neste relógio cresci. e todos os dias sou maior. os braços abraçam tanto. abraçam tudo ao mesmo tempo – nos cabelos brancos a saudade. a memória já não agradece. só enaltece o que a juventude não vê – ainda gosto de tanta gente – hoje escrevo para o meu amigo zé antunes – o tempo separou-nos. tempo injusto. mas ainda estás nos meus retratos. ainda é o meu grande amigo. ainda te abraço