1.
continuo a esconder os olhos ao
futuro. estas vestes negras não me largam. trapos carregados de memórias dolorosas
– o corpo traja luto. as mãos permanecem doentes. definham – a torre bate a
defunto – bate forte. bate sem tempo – o corpo no badalo vai e vem – as pombas
brancas voam em círculo sobre a terra que engoliu a oliveira – já não há esperança
de um novo mundo para os vivos – corre a morte. corre silenciosa. como o rio
para o mar corre – é março. e em março o silêncio magoa antes da primavera –
ainda te vejo dentro dos olhos: deitado. sem sofrimento. sem gemidos. sem
lamentos. sem sorrisos. dormes. dormes como sempre. em paz – é março e as tuas
mãos continuam cruzadas no meu olhar
2.
à tua volta as flores. em coroas.
uma dor de primavera. castiçais dourados suportam círios mudos. iluminam a
noite onde me encontro. ardem. ardem com pressa. consomem o tempo que era todo
nosso – o salão está frio. nenhum corpo consegue aquecer a vida parada. a
saudade já faz medo. está aí. espreita nas sombras imóveis das paredes e o
tempo sempre a correr. sempre a fugir da luz – pela espera dentro. o entra e
sai da vida. chamam-me pelo nome. roubam-me a calmaria que descansa a teu lado.
já tenho pouco tempo para te dizer que o silêncio chegará em pranto. não vamos
poder estar juntos quando o sol abrir os dias grandes. bem sei que ao teu lado
todos os dias eram grandes. havia sempre mais dia do que noite. sempre mais
esperança do que temor. estavas sempre certo nas tuas certezas. sentia-me tão
confortável quando dizias: tudo vai correr bem. era um tudo que me deixava a
olhar a eternidade. sem fim. só sabia ser feliz. tudo estava nas tuas palavras
– mas a vida não para. as caras continuam a entrar. querem dizer adeus.
abraçam-me – os meus sentimentos – mas eu já não sei o que são sentimentos. perdi-os
quando gritavas pela morte. e eu ainda via vida. sempre te vi vida. mesmo
naqueles momentos em que não te olhava nos olhos. não queria sofrer. queria ver
vida. sempre vi vida a teu lado – lamento muito a sua perda – qual perda? jamais
serás uma perda. queria tanto ser como tu. queria tanto fazer coisas para ti.
queria o teu abraço de orgulho. entregar-te o que sou. por ter crescido a teu
lado a ouvir-te dizer que a família era a tua vida. e eu sempre dentro dela. na
tua graça. sempre teu filho – abraçam-me. muita coragem – qual coragem? tu que
partiste sem boca. sem memória. sem braços para acenar por socorro. sem olhos
para pedires que te ajudassem a encontrar a luz. abraçam-me. coragem – coragem
é teu nome. só tu sabes falar de dor. só tu gritaste com os olhos. só tu
viveste no inferno enquanto a vida ruía – abraçam-me. agora está junto aos
santos – como assim? os santos estão escondidos nas sombras. têm vergonha do
que te fizeram. nunca te valeram. se fossem realmente santos. tinham-te levado
mais cedo para as nuvens. tu merecias. merecias porque toda a vida me ensinaste
a viver de mãos entrelaçadas – eles não te merecem à direita do pai. talvez me revolte. talvez. mas
será que eles veem o que te fizeram? já é tarde. já não tens dores. agora já só
resta o som dentro dos meus ouvidos. ouço-te todos os dias. a todas as horas.
ouço-te como carne da tua carne. ouço-te como ouço o mar nos búzios – mas não
me zango. tu não eras nada de zangas. resolvias tudo a falar. gostavas tanto de
falar. mesmo quando a doença te tirou a boca tu continuavas a falar. bem sei
que muitas vezes não te entendia. tu ficavas irritado. ah como eu fui estúpido.
podia ter fingido. podia muito bem
mentir à tua dor. à tua luta para nunca desistir de falar. a boca era agora
pequena e já não aguentava o sofrimento. ainda assim sorrias sempre que fazias
meias palavras. fazias tantas meias palavras. e eu achava sempre pouco. queria-te
como no passado. queria-te outra vez de mão dada a correr nas procissões da
semana santa – o escuro é agora cada vez mais escuro. nunca tinha tido um escuro
tão sereno. tão iluminado por dentro. sempre que repouso os olhos em ti. vejo
luz. muita luz. o tempo passa e a luz continua acesa – amanhã é dia do pai. como é possível tu partires no
teu dia. neste dia deverias estar comigo para me dizeres que as derrotas fazem
parte da vida do homem. mesmo quando esse homem é o teu filho. queria tanto que
me pudesses dizer que um dia também tu não foste capaz de terminar o teu
trabalho. queria que me desses a mão e me levasses ao teu mundo. ao mundo da
tua meninice. aquele rio que agora não é rio e que tu mergulhavas para crescer.
aquela bicicleta que fazia de ti um rapaz com brilhantina no cabelo. ou aquela
fotografia em que tu. homem de chapéu. montavas um cavalo como os artistas de
hollywood. e eu encostado à vida choro por não saber como dizer-te adeus – não te
sei dizer adeus. sei que estás sem dores. estás sem carne. estás finalmente
livre. mas não te sei dizer adeus. sei de tudo isso. mas o adeus ainda me foge
da boca. não me peças para aceitar a tua partida no teu dia. terás que
ser tu a soltar o último calor do corpo. sei que estás a ficar gelado.
mas no teu rosto ainda é possível haver mais um dia. dormes tão sossegado. o
teu sono ainda tem rios. chuva. ruas alagadas. campos. campos de girassóis e
vozes. muitas vozes de crianças que ajudaste a crescer – nos teus olhos fechados
a vida continua. ainda me vejo dentro deles a correr
3.
já chorei tudo. deixei as lágrimas nas noites em que a
dor te comia a carne. eu escondia os ouvidos na indiferença para não sofrer –
um dia um dos teus netos disse-me que não suportava mais ouvir-te. fiquei
destroçado. afinal até eles sabiam que estavas de partida – hoje ainda se
lembra dos dias em que o sentavas ao colo e lhe dizias que a vida era bela. eras
um homem feliz. aquele teu filho tinha-te dado outro filho. outra esperança
para construir uma família cada vez mais ao teu jeito. uma família com muitas
pessoas. com palavras ditas aos abraços – a minha vida murmura despedida. por
momentos quero acreditar que tu ainda dormes. sem dor. embalado por anjos que
vieram do começo do tempo. onde tu corrias para mudar o destino dos que viviam
ao teu lado. e eu sempre feliz. descobria ruas. chutava bolas. inventava
futuros de que não gostavas. mas eu era teimoso. era feito de ti. feito desse
mundo que me oferecias com o teu trabalho. e eu sempre a andar. andava mais
depressa do que as tuas palavras. a juventude não nos deu descanso. e tu sempre
a falar. sempre a entender-me que a vida também se faz com erros – agora estás
aí. pronto a partir. e sou eu que insisto: ainda há tempo para ficar. não podes
simplesmente partir assim. não assim – bem sei que se acordares as dores
voltam. e também voltará a minha dor. bem sei. mas quero tanto que fiques por
aqui só mais um pouco. mesmo que fiques assim deitado. de olhos fechados. de
boca fechada. de mãos atadas e com os ossos partidos. quero-te assim. quero-te
para sempre assim. mesmo que bem lá no fundo tu tenhas partido. sei que partiste.
nós sabíamos que já tinhas partido há muito tempo. os teus olhos eram buracos e
a tua língua tinha caído para o outro lado. já não havia meias palavras. já não
havia esperança nos teus gestos. restava apenas um pequeno braseiro nas tuas mãos
fracas. cada vez mais fracas. trémulas. já incapazes de dizer adeus. já não me
abraçavas mais. nunca mais me abraçarás. nunca mais. nunca mais – hoje é dia do
pai. é agora também o meu dia. o dia dos meus filhos. dos teus netos. da tua
família. da nossa força para existir. somos como ramos de uma árvore que
continua a crescer mesmo depois de perder a raiz. para lutar. para contar as
tuas histórias. nós somos a tua história. tu ainda corres dentro dos meus olhos
e eu dentro dos teus. nós corremos. sempre. sempre até que as oliveiras tragam
um novo mundo