.................................................................................não tirem o vento às gaivotas

31/07/2012

santos. anjos e bicicletas




ticiano


em tempos acreditei em deus – era criança. e por cada pai nosso rezado ao cair na cama. os sonhos surgiam feitos de crença. o sol despertava com tanta força dentro de mim. não colher a esperança da água batismal era o verdadeiro pecado – acordar sem pecado e crescer para pecar – hoje não acredito em nada. e quando digo nada. é mesmo nada – deus esbateu-se nos ciclos do nascer e morrer dos dias. e com ele. os santos milagreiros: o advogado dos dentes. que me tirou uma dor. o dos cravos. que numa manhã infantil. fez desaparecer um cravo enorme da minha mão. o das causas impossíveis. a quem tantas vezes me apeguei para me salvar de encrencas. o da memória. para lembrar que um erro não se comete duas vezes. e santa bárbara. a santa das trovoadas. para que deixasse de temer os raios que iluminavam a igreja do carmo. ali ao pé de casa –  e outros tantos. esquecidos por nunca me terem feito falta – mais tarde esqueci os anjos. o primeiro foi o da guarda. que ao deitar me fazia repetir três vezes a mesma oração. por medo que uma só mostrasse pouca fé para um anjo que devia estar sempre em alerta aos perigos que um catraio é capaz de inventar – confesso que na altura tinha medo de zangar o anjo da guarda. importante demais para ser ignorado. aparecia em todos os livros da catequese. e mesmo nas igrejas estava sempre presente na maior parte das telas pintadas a óleo. preenchia as paredes ao lado de todos os santos. e na minha igreja. estava mesmo ao lado da nossa senhora. num dos altares mais importantes dos devotos – ainda me recordo de ouvir dizer em casa um provérbio que sempre me deixou a pensar: ao menino e ao borracho põe deus a mão por baixo – eu queria ter este deus por perto. queria o meu anjo da guarda a meu lado. precisava dos dois. para crescer devagar e em segurança. não os podia zangar. porque zangados podiam atirar-me abaixo da bicicleta que um dos meus amigos me emprestara. e se partisse a cabeça destruía a esperança de que o meu pai. mais tarde ou mais cedo. acabasse por me realizar o sonho de ter uma bicicleta só minha. uma onde eu pudesse pedalar para lá das montanhas da minha cidade. eram altos para a idade. que eu nem sabia ter. mas não me saía da cabeça subir ao cimo daquelas colinas com a minha bicicleta – mas as pernas não paravam de crescer e eu rezava. fazia o correto. tentava sempre ser justo. sempre a ver os defeitos e nunca a valorizar as virtudes. queria ser todos os dias melhor. queria crescer. queria ser livre. queria ser dono da minha vontade. seguir para onde o corpo me levasse – rezar de nada serve quando deus não te quer ouvir – nunca caí abaixo da bicicleta. mas também o meu pai nunca caiu daquele medo que mais tarde entendi ser amor – nunca me deu uma bicicleta. e morri um pouco de tristeza –  talvez para os filhos o melhor seja mesmo morrer a pedalar de felicidade – aos meus filhos dei-lhes bicicletas. sei que tudo é ainda igual ao meu tempo. só os montes cresceram. hoje são mais difíceis de transpor. as estradas mais perigosas. mais traiçoeiras. mais curvas. mais tudo que. por já ser velho. me foge ao nome – mas nem tudo é pior. sigo atrás a empurrar. a pé. mas feliz por vê-los pedalar as bicicletas que lhes dei

 

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anjo da guarda

minha companhia

guardai a minha alma

de noite e de dia

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anjo da guarda

minha companhia

guardai a minha alma

de noite e de dia

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anjo da guarda

minha companhia

guardai a minha alma

de noite e de dia



18/07/2012

dia zero




antónio gisbert


o tempo vai mudar – sinto. sinto porque sinto. sempre senti tudo na vida. e o tempo deu-me sempre razão – sinto – talvez me corra nas veias algum sangue de nostradamus. ou então sangue cigano. e a sina não se encontra na leitura das mãos. mas na forma como a vida me entra pelos olhos. pelos ouvidos. pela pele. pela forma como batem as pestanas – sentir é saber – eu sei. sei pelo olhar. o pestanejar. o tossir. o mover do pescoço para o lado esquerdo. quando o normal é virar para a direita. a mão que entra no bolso. e não é o costume. o olhar para o chão. o sorriso que não o é. o sim de não. o limpar os óculos. e todas as palavras que se usam sem servir para coisa nenhuma. nem as enciclopédias que guardo na memória de um relógio que nunca parou de trabalhar – e o tic tac a rasgar carne. a tentar chegar à superfície para respirar. por dentro é só dor – tudo o que me chega serve para fazer do amanhã uma certeza – sei tudo o que sinto. e não sei dizer como o sinto. nem porque o sinto – e o corpo reclama a paz.  o vento. o perfume. o futuro incerto. o dia sem fantasmas. e tudo o que parece sombra é somente o sol a crescer num horizonte que se esconde atrás de mim – e sinto as mãos. os sinos a tocar. as velas a gotejar cera por um pavio que ainda arde. e a luz do dia seguinte escorre por uma brisa que é quase certeza – sinto se estou só. sinto ainda mais quando me perco nos meus eus. e por não estar também sinto. e tudo o que é sentir é arrastar à força o amanhã para hoje. sofrer duas vezes. chorar duas vezes. sentir a dor contínua entre o que antecipo e a dor certeza – e a razão satisfeita. orgulhosa de tanto saber – sinto a história que construí à minha volta como um laço de enforcado – chegam os amigos. os inimigos. os cães. os pássaros e até os deuses de uma mitologia que não serve para nada – resta-me a certeza de que o hoje é a verdade. sou hoje porque cheguei do dia anterior. mas não sei de onde. talvez do corpo que me trouxe ao mundo. ou talvez seja apenas sina. ajudar quem merece a ajuda – sou assim e nada posso fazer para que não o seja – sinto um corpo que teima em exalar podridão. um mal que não vem por bem – mas não pedirei nada a ninguém. nem ajuda. nem mar. nem água. nem sequer um ombro para descansar – os que não me conhecem. não querem conhecer. os amigos. que me conhecem. servem para rir. para me fazer ser o que não sou. para dizer que tudo vai bem. quando vai mal. para lhes dizer que são mais importantes do que todos os males que carrego como cruz – gosto da morte. nunca percebi porque os homens choram aqueles que escolhem morrer – morrer é descansar. é sossegar os amigos. é deixar saudade. um abraço a quem conhece a dor de um homem enganado pelo tempo – jamais pedirei conforto. nunca o fiz e nunca o farei – aos amigos não os quero nem no funeral. a terra cairá da pá do coveiro e. no final. depois de bem calcado. talvez um punhado de ervas aromáticas apague o rasto da minha existência

 



14/07/2012

do caos à calmaria




kent williams


escrever é para mim muito difícil – gostava de trazer as palavras para a boca com mais agilidade. mas não. tudo é tão duro. tão complicado. tão sangue. tão sofrimento – leio. releio e tudo merece ser rasurado. riscado. rasgado. rompido com este corpo que escreve – depois. chega um leitor e o desespero metamorfoseia-se. a calmaria volta. e de novo anuncia esta vontade de escrever   



13/07/2012

escrever entre amigos



almeida júnior


na verdade. eu queria mesmo era falar contigo. dizer apenas um olá. um bom dia. um como está passando? e os sorrisos? encantados como sempre – então quando tomamos um cafezinho naquele botequim feito de palavras? estou ansioso para te mostrar dois verbos novos que encontrei ao arrumar a vida que já passou - irias gostar de os conhecer – estavam amarrados a dois adjetivos que nunca adjetivaram coisa nenhuma – confesso. eram tão maus que nunca os levei à rua. ficaram esquecidos - o tempo passou. e agora tudo é diferente. estou mais velho. e o cheiro das palavras já não é igual – no passado estava mais à procura de coisas novas. agora. quero encontrar tudo que é velho dentro de mim e já não está – não guardei nada da vida. os beijos foram esquecidos. os abraços perdidos. as pessoas foram morrendo dentro de mim. e a saliva presa ao céu da boca. roda de um lado para o outro. e eu sem encontrar um lugar digno para cuspir esta azia que me vem de dentro de uma moela seca – e o verbo era é agora o começo de uma história – era uma vez um abril - era uma vez um dia com uma nuvem tão louca que sugou toda a água do mundo. e todos os peixes se fizeram pássaros. e todas as flores se fizeram sonhos. e tudo o que era mundo era afinal um pontinho num espaço que nenhum mês do ano sabia que existia - era uma vez eu. e mais tu. e mais os teus amigos. e os meus amigos. e os teus vizinhos. e os meus. e o teu mundo. e o meu mundo. e tudo é mundo. e nós somos mundo. e em cada pedaço de mundo. um mundo mais completo – nunca esquecerei mais nenhum instante do mundo – escrevo cada sorriso. escrevo cada momento. escrevo mundo

 

* comentário à vânia. em 9 de julho de 2012. a um seu texto que. com carinho. se tornou minha amiga. preenchendo os silêncios da escrita com palavras de incentivo. ao meu louco e desajeitado amadorismo de querer escrever



12/07/2012

retalhos – número de série 12072012s(r)ego03




jeremy geddes


a vida é longa demais para um só homem – precisamos de ser muitos para a compreender – agora. escrevo



09/07/2012

a cela do pensamento



asako eguchi


volto a face para sul. é para lá que correm as gaivotas – no norte. a macieira do pecado resiste. a serpente cresceu. e fez-se homem pássaro. pássaro-mar. pássaro-palavra – gaivota cinzenta. malhada. dona do imenso: mar. sal. vento. e a falésia sempre a gritar por um nome que desconhecia. no eco o aparecimento de um novo mundo a dizer: voa. voa – todo o homem é feito de pecado – e os sonhos realizados. e tudo cada vez mais azul. e a estrela do mar subiu ao céu. e a água a ir e a vir. e a areia a receber as pegadas do homem que se purifica com a primeira onda da manhã – ilusão – penso. pensar é fundamental para quem escreve – penso. mas tudo é reboliço por dentro. e para fora apenas os olhos à procura de um papel em branco – depois. escrevo nada. não sou capaz de escrever o que sinto. e dentro de mim tudo por dizer – não basta pensar para escrever. há um sentir particular dentro de mim quando penso. ou talvez o contrário: o pensar é que me faz sentir. e juntos fazem-me temer esquecer quem sou no momento – quero guardar numa folha este homem que ninguém conhece – não sei se deva –  é esta a melhor maneira de guardar o que só os meus eus sentem quando penso? não sei – homem real. homem pecador – mas sinto. sinto um sofrimento por não saber escrever o que sinto. se soubesse tirar o meu coração para dentro das mãos – não sei. não posso. não sei – e as mãos sempre revistas. e os olhos a pedir para escrever tudo o que viram por dentro e por fora. e o corpo trémulo por cada palavra caída de dentro de si – sinto. sinto esta coisa de nunca ser eu quando escrevo. e tudo o que tenho para escrever não interessa a ninguém a não ser a mim – homem desapontado – que falsidade. que injustiça. que angústia. se tudo o que tenho é dos outros. se tudo o que sou é o que sinto. o que vejo. o toque da pele com pele. os beijos. os sorrisos. as lágrimas. e as vozes. as vozes que guardo nos ouvidos e os abraços que de tão apertados quase me silenciam a respiração. e as mãos amarradas a todas as mãos. como se todos fizéssemos uma corrente de ferro capaz de amarrar o mundo dentro do meu corpo – sou tanto neste silêncio imperfeito de palavras por dizer – e o mundo dos outros sempre a carregar-me as costas. e tudo parece nada. e o tempo a passar. rápido. brusco. sem piedade. agora tudo parece tudo. e eu a colher. e kant dizia que a missão do homem era saber o que precisava para ser homem. mas saber o quê. se tudo é incerto? se tudo que aprendo só me mostra o que nunca saberei. sempre que penso. sou nada. porque tudo é tanto para saber. e eu cada vez mais distante de ser homem. de ser saber. e ele volta a dizer: “a felicidade não é um ideal da razão. mas sim da imaginação” e eu cada vez mais infeliz porque tudo o que vejo é tudo menos imaginação – o que vejo é tudo real. quero acreditar. e o corpo tão pequeno para tanto. nunca descanso. nunca durmo. e o cérebro sempre a exigir mais espaço. mais saber. mais. mais. mas quanto mais sei. menos vejo. quanto mais aprendo. menos entendo. e no mais de tudo só o vazio cresce – a liberdade morre na curva de cada novo pensamento. e no que me sobra. falta-me o essencial: saber viver com o que tenho. e o pensamento. que me prometia asas. fez-se cela – tudo anda. e o corpo pede. e o cérebro exige. e mais uma chave no molhe de chaves. e mais uma porta a abrir dentro de outra porta. e outra. e outra. e tudo confuso e cada vez menos chaves para abrir tantas portas. e a confusão. e a loucura. e a dor. e os gritos que só dentro se ouvem. ecos de uma mente que se arrasta. pesada. acorrentada ao próprio saber. e depois. uma janela voltada para os quatro pontos cardeais. e as asas. sempre buscando mais vento para se manterem nas chamas. mas eu. de cabeça no ar. sinto o peso do mundo. e tudo dentro de mim a transbordar. e os olhos em compaixão. a boca a ferver. a tinta da caneta seca de tanto pensar sem nada escrever - sou tanto dos outros que de mim já não sobra nada. restam apenas ossos duros de roer – o homem sonha com liberdade. voa alto. crente de que o pensamento o leva além. mas quanto mais sobe. mais percebe que as asas são feitas de dúvidas. e o céu. antes promessa. é apenas uma miragem onde se perde para sempre – meu mundo é de quem me sabe ler