um dia.
antes de partir. voltarei à minha igreja. aquela que me batizou para o mundo
dos justos – pela última vez. suplicarei ao “meu” deus que me aceite no reino dos
homens que não tiveram coragem de morrer pregados a uma cruz – estou quase
certo de que não obterei qualquer tipo de resposta – o silêncio na sua casa é
sepulcral – concluirei que deus é surdo. mudo. e não conhece a linguagem
gestual – desconfortável com o próprio corpo. castigarei a fé cega com que
animei os sonhos – partirei. invocarei todos os demónios que acolho em mim.
cerrarei definitivamente os olhos em frente ao santo que jurou proteger-me
contra todos os males. passados. presentes e futuros. tanto da alma como do
corpo – não há justiça nos homens feitos à tua imagem e semelhança – parto. deixo
a tua casa com o sabor de uma partida amarga – sossega. não acredito na
ressurreição. como diz mia couto “o que está queimado não volta a arder”
27/09/2012
última oportunidade
18/09/2012
carne. lembra-te que és mortal - II
2.
gosto da palavra partida. não gosto da
palavra morte – quando partimos deixamos sempre qualquer coisa para trás que um
dia podemos voltar para encontrar. um livro. uma cadeira. uma história. uma
foto com um sorriso enganoso. um sinal que nos descreve por dentro. um gesto
calmo marcado por contornos subtis. leves. delicados. feitos de carvão abandonado
dum fogo que “arde[u] sem se ver”. e tudo isto guardado num jeito de andar que
não é de mais ninguém. de mais nada no mundo. é só meu – gosto da palavra
partir porque é vaga. verbo. verbo de ação. onde o sujeito se desloca para
algum lugar. ninguém sabe para onde. nem em que direção. mas vai – partir.
partiu. partirás. partirei. não importa a forma verbal. gosto da palavra. deixa
a ideia de quando partimos deixamos sempre qualquer coisa para trás que. um dia.
podemos voltar para encontrar tudo no mesmo lugar inacessíveis às mãos – há
gente que parte tão devagarinho que verdadeiramente nunca chega a partir. e as
imagens aqui paradas para sempre. os olhos em cima do jornal repousam os óculos
castanhos nostálgicos e o corpo a cair para a frente contraria a fotografia na caderneta
militar. capa preta. folhas amarelas. ombros em confronto com o quico caído
ligeiramente para a frente da vida. a dizer ao bigode à errol flynn que a boca anda
agitada pela procura de beijos – tudo são imagens – as pernas a fazer andar o
corpo. de um lado para o outro. um braço para a frente e outro em espera. balança
num porta-chaves alfa romeu – calça creme. casaco azul marinho apertado por uns
botões de metal dourado forte. e no cimo
do corpo. um estupor de um lenço ao pescoço. cheio de cores fortes a dizer que
a vida é consumida num carro desportivo de alta cilindrada – à cabeceira da
mesa a sombra assenta nos cotovelos. os lábios batucam desespero que ninguém
ouve. o silêncio é agora feito num caminho de memórias que já não são o
presente e o peito sente os gestos presos às cadeiras. com nomes. estamos todos
ali. todos em carne. e o ar dos pulmões cai
lentamente para um prato sopeiro vazio e a bucha de pão partida em bocados
certos como o número de lugares na mesa – a roupa do dia seguinte à espera na
cadeira. camisa engomada. calças dobradas pelas vincas com o cinto a roçar a
alcatifa. sapatos bem engraxados e alinhados pela biqueira. cordões abertos em
sorrisos à espera dos pés. e depois aquele quadro na parede diz que a vida é
quase sempre feita no outono. as folhas mortas no chão esperam por um vento que
nunca acontece. e a casa de pedra anuncia vida. a chaminé não para de bocejar
fumo que não corre – naturezas mortas de pintores que partiram. sem saber que
deixaram a vida parada para sempre em quadros de tabopan – quando partir não
quero que a minha vida fique assim parada. não me quero em pinturas com pessoas
que não vão para lado nenhum. paradas como o fumo na casa de pedra – quando
partir quero virar as costas à vida com a certeza de que para trás tudo fica
igual. continuará o movimento. e toda a gente de um lado para o outro a gastar
a vida como sabe. falam. protestam. trabalham. sorriem. fazem crescer famílias.
amam-se. recordam os que partiram felizes – quero olhar para trás e ouvir os
meus dizerem: lembras-te dos kilos de perfume com que aparecia pela manhã. como
era teimoso. raio de feitio. gostava daquele casaco preto de bombazine com cotoveleiras
de pele castanha. assentava-lhe bem. fazia-o mais magro. mais elegante. havia
dias em que nem parecia ele. aparecia tão esticado. aquele cabelo sempre a cair
para trás – mas o que eu mais gostava mesmo era aquela mania de que sabia
escrever e o like no facebook era obrigatório. disso não há dúvidas – quero
partir com a saudade a ser a razão da conversa. e as memórias feitas de corpos
sãos. corpos contentes. corpos ágeis. corpos sábios. onde o mundo roda porque
as pessoas rodam de um lado para o outro com tranquilidade por saberem que quem
parte. parte feliz – esta gente que roda sem parar ainda não descobriu que um
dia também terá de partir – gente que amo. gente nuvem. todos os dias guarda uma gota. e depois outra
e mais outra. e o corpo cada vez mais feito de água-afeto. água-amor.
água-companheirismo. água-amigo. água-vida e um dia. sem que no horizonte se vislumbre
sinal de tempestade. o corpo vai tombar e toda a água vai partir em torrente
levando tudo o que é alegria. para sempre – não há forma de as mãos segurarem
esta água. nem a dor de um corpo seco. e tudo o que foi deixou de ser. e o que
vem nunca será igual ao que partiu – só o tempo é capaz de amainar o corpo. e o
que era enxurrada transforma-se numa linha de água límpida. cristalina. pura.
como tudo o que chega ao mundo pela primeira vez caminhando pelos sulcos da
pele. de um modo tão suave que mais parece uma bailarina em pontas. a rodar
sobre si como se quisesse imitar o mundo quando gera vida e sem que se aperceba
chega ao chão como toda a água dos rios chega aos oceanos. e os pés para sempre
húmidos – entro na cama. ajeito o corpo ao travesseiro e ali permaneço quieto.
o coração bate nos ouvidos. o cobertor tapa o frio do mundo. olhos serrados.
silêncio em espera. e quando a voz
atravessa o sonho tudo é como dantes. volto a ter tudo o que tinha antes de
todas as partidas – como diz shakespeare “um homem que não se alimenta de seus
sonhos, envelhece cedo” – o meu sonho é escolher o dia da partida. não quero
morrer sem memória. não quero morrer em dor. não quero que ninguém me veja
fechar os olhos. ou me abrace em lágrimas. quero partir. partir como parte o
vento das janelas – “os covardes morrem mais vezes antes da morte; o valente
experimenta o gosto da morte [partida] apenas uma vez" – gosto da palavra
partir porque imita as andorinhas. o fim do verão. uma nuvem no céu. uma gota
de chuva apanhada pelo oceano. um vento fresquinho. e o bando parte em fuga
para uma vida melhor. para o sul quente – a esperança está de volta. novas casas.
novos telhados. novos caleiros. novos fios elétricos. novas árvores. frutos sem
nome. e um novo mundo. um novo recomeço prometido pela intuição de saber partir
à hora certa – gosto das partidas de quem acredita que há um mundo novo à sua espera. diz-se que para encontrar este novo mundo é
obrigatório partir pela vontade de deus – confesso que não sei muito bem se
assim é. já muitas vezes escrevi que a minha relação com deus não é a mesma
desde o dia em que o meu pai morreu. não partiu. morreu como morrem os cães
abandonados. cercado de gente branca sem nome. sem memória. sem semelhanças.
sem uma mão que o ajudasse a partir como o vento por aquela janela que dava
para o mundo das andorinhas – morreu. gelado. sozinho. perdido no escuro. onde
a luz não existe. podia ter partido. mas não. morreu. morreu ele e morri eu e
tudo o que escrevo é agora pela revolta de saber que não quero morrer assim. nunca.
quero partir – junto todas as minhas coisas numa mala pequena. uma camisa
branca. um casaquinho de lã que me aconchegue o corpo às memórias. uma gravata
preta. uns sapatos de sola de borracha porque não gosto de sentir os pés frios.
um par de lâminas. gosto de ter um ar asseado. sempre ouvi dizer que um homem
de barba bem feita não necessita de roupa. um aftershave. umas quantas fotos. um
livro. nem sei bem qual. talvez em branco. assim poderei escrever de novo todas
as palavras que ninguém compreendeu. dar-lhes outro trilho. outro rumo. com a
caneta mais inclinada para sul. mais sol. mais calor. mais mar. mais gaivotas. mais
esperança. juntá-las a outras que ficaram esquecidas nas mãos. e por fim
reescrever-me. de novo para dizer exatamente o mesmo. eu só sei escrever o que
sou – a escrita não muda o homem. ensina-o a ver-se tal e qual como é –
pensando bem talvez alterasse esta mania de escrever na primeira pessoa e
passasse a escrever na terceira. diria então: eles pensam que são donos do
tempo e depois partimos. partimos sem destino. para sempre – parto. para trás deixo
o corpo. fica como sempre foi. grande. firme. hirto. com o cabelo empastado em
gel superforte. e o cheiro ao perfume jean paul gaultier a dizer em voz grossa:
sou vaidoso. até já. até já. não se esqueçam que não morri. um homem não morre.
parte – como dizia lucan “os deuses escondem dos homens a beleza da morte
[partida] para levá-los a aguentar a vida” – mas ainda não parti. ainda ando
por aqui a desiludir – estou debilitado. desalentado. desanimado. desgostoso. estou
exausto. tão cansado que as palavras já não se amarram ao papel. tudo o que
penso ou escrevo parte em busca de descanso e o corpo ainda aqui. quase
moribundo. e as palavras por dentro a sofrer num lugar que já não conheço.
escuro. tão escuro que já não consigo ver com clareza o que dizem – estou
desesperado nesta certeza de partir. gostava de ter dúvidas. gostava de estar cortado
ao meio. não estou. estou inteiro. firme. pela primeira vez todo eu sou
certeza. todo eu sou partida – tenho medo. ainda amo tanta gente – partirei
então como uma andorinha. descubro esse outro lugar onde a vida é vivida sem
interrogações. sem esta dor que me nasceu num canto qualquer do corpo. eu nunca soube onde e as mãos por dentro a
revolver tudo o que sou e cada vez a encontrar menos de mim – estou cada dia
mais sozinho. estou cada dia mais parecido com aqueles que já partiram. branco.
gelado. lábios colados com cola. ossos partidos. velas. fumarolas. os anjos
cantam a canção dos rejeitados: não aceitamos traidores. não aceitamos. não
aceitamos – silêncio. e o corpo sem uma única
lágrima. coberto por um tule que já não tapa coisa nenhuma. nem desespero. nem
revolta. nem raiva. nem saudade. nada – em cima. em forma de cruz só a honra brilha
como o ouro a palavra foi cumprida. sempre cumpri com a minha palavra. é de
família – finalmente o céu dos céus. o jardim dos jardins. o lugar onde aqueles
que partiram esperam por aqueles que livremente decidiram partir. a colina dos
reencontros – fernando pessoa dizia: “morrer é apenas não ser visto. morrer é a
curva da estrada” – eu digo: partir é apenas não ser visto – partir é a curva
da estrada
12/09/2012
gula II
1.
“Oscar Wilde lá dizia que resistia a tudo menos à tentação.
Mas este assim ficou monástico, misterioso.”
2.
Como nos deixa curiosos assim?!!!
Vou deixar-te um poema de gula, para pecares de vez:
Delicioso Pecado
Satânico é o meu desejo
De despir seu corpo
Naquela manhã ensolarada
Tirar da minha boca a fome
Dos seus sabores
Olhando pra você
Enquanto lhe desejo
Desfaço da sua pele
Em suaves descidas
Até que se mostre
Eu lhe mordo a ponta
Até chegar o fim
Do meu prazer
Saciando o mel
Da forma em riste
Da banana que comi
Até o fim!!
não resisti e escrevi:
misterioso? não. nunca – não sou homem de mistérios
– escrevo-me em papel para dizer o que não sei falar – escrevo-me em papel para
dar mais horas de luz aos dias – escrevo-me em papel para me convencer que o
coração tem razão para continuar a bater – escrevo-me em papel porque a escrita
é como um analgésico para uma dor incerta. uma dor que talvez nem exista –
escrevo-me em papel porque. quando escrevo. penso. e logo existo – escrevo-me
em papel porque as palavras obrigam-me a gostar de mim tal e qual como sou –
escrevo-me em papel porque. quando escrevo. sou muito mais do que homem. sou
todos os homens e coisas do mundo. sou gaivota. mar. planta. pinheiro manso.
musgo. terra. pó insignificante. porque todo o pó é insignificante – escrevi sobre
a gula por ser covarde e não saber falar. por não saber contar o tempo. as
palavras. nem perceber o seu valor quando o homem está possuído por este pecado
– escrevi a gula para evitar lançar alguma palavra de que me pudesse
arrepender. e como diz o provérbio chinês: a palavra e a flecha lançada não
podem voltar atrás – comi então todas as palavras do meu mundo. não falei. não
pequei – tudo o que não disse. engoli. digeri. e no silêncio encontrei razões
que o coração desconhecia – de homem cobarde fiz-me homem sensato – engoli
todas as palavras do meu mundo e o mundo não notou a falta de nenhuma – não
existo para o mundo. existo para mim. e é para mim que escrevo – será que alguém entende o que escrevo? não
acredito – ainda bem que não há inquisição