quem
escreve
teme
quem
teme
existe
quem
existe
vive
quem
vive
sofre
quem
sofre
escreve
quem
escreve
teme
foi
pela mão de um poeta
que
nasceu a expressão:
pescadinha
de rabo na boca
quem
escreve
teme
quem
teme
existe
quem
existe
vive
quem
vive
sofre
quem
sofre
escreve
quem
escreve
teme
foi
pela mão de um poeta
que
nasceu a expressão:
pescadinha
de rabo na boca
I.
prostrado no estrado de madeira. o tronco –
guilhotinei-me. a cabeça rebolou em silêncio para o lado dos rejeitados. repousando
agora à beira do precipício – a norte. as testemunhas assistem vigilantes ao
fim. aguardam calmamente o último suspiro – olham-se num silêncio uníssono. agitam
as cabeças para cima e para baixo – morta – na cabeça inerte. só os olhos
teimam em guardar o que resta da vida. abertos. fitam o mundo a sul. agora num
plano raso. em profundidade horizontal. olhos e vida deitados no mesmo estrado
– tudo o que era vertical está agora nivelado pela linha imaginária do
horizonte – o mundo também foi guilhotinado – nuvens tombadas. árvores tombadas.
casas tombadas. janelas tombadas. chaminés tombadas a desfalecer pelo chão.
talvez mortas. talvez guilhotinados também – só as crianças se mantêm de pé –
talvez o mundo exista para ser visto de outra forma que não na vertical – agora
está tudo deitado. tudo inclinado para perto da terra. a fazer lembrar a
trágica constatação de eclesiastes: “Tudo caminha para um mesmo lugar; tudo vem
do pó e tudo volta ao pó” – nunca me tinha apercebido de que a vida também se
faz para os lados. só quando estamos prostrados é que compreendemos que o mundo
não é só altura. é feito de lados – aglomerados de pessoas marcam lugares como
se fossem a rosa dos ventos. fazem vida para todos os lados. só o norte aponta
sempre para o mesmo sítio. guilhotina – nunca vi uma rosa dos ventos enquanto suportei
o corpo na vertical – talvez estivesse a olhar o céu. talvez estivesse à
procura de uma estrela com o meu nome. nunca vi nenhuma. nem mesmo a estrela
polar – crescer para os lados é prioridade. crescer para o céu. só depois de
preenchido o vazio entre lados – para os lados crescemos em direção ao nosso
semelhante. não crescemos para cima indiscriminadamente. crescemos de encontro
uns aos outros e quando nos tocamos acabam os lados. ficamos ligados pelo toque.
pelo encontro da pele e o que era esquerda é agora centro. e a minha direita é a
esquerda de quem vem ao meu encontro – a fusão de pequenos núcleos formam um
núcleo colossal. único. monocelular. a teoria de
einstein aplicada ao homem. um novo big bang dá origem a um novo planeta-luz – a
radiação de luz solidária é uma nova recombinação molecular do material
genético humano – talvez neste novo homem se possa aplicar a teoria renegada
pelos físicos do estado estacionário – agora há matéria nova nos intervalos
crescentes. o toque da pele é real – crescer para os lados é o triunfo sólido
da evolução das espécies de darwin. evoluímos por processos naturais. crescemos
em resultado do erro. da persistência para o evitar. da vontade de nos superarmos.
crescemos porque fizemos da vida uma marcha coletiva. distinguimos o bem do
mal. o homem do animal. o abraço do gelo. o beijo do punhal. a fé do desalento.
crescemos porque a dor deixou a singularidade e fundiu-se numa pluralidade de
inteligência emocional – foi assim que as montanhas cresceram. primeiro para os
lados e só quando se tocaram é que cresceram para o céu – depois apareceram as
nuvens. trouxeram água. de seguida os pássaros. os peixes. as flores. as
árvores. e quando tudo era perfeito plantaram-lhe crianças a jogar à bola. às
escondidas. à macaca. à estátua e por último desenharam-lhes na face sorrisos
infinitos. sorrisos que nascem para lá da linha do horizonte – dentro dos
sorrisos um planeta azul. redondo. com mar. sol e sal – não há crianças sem
sorrisos – enquanto estive com a cabeça ligada ao tronco convenci-me de que só
era possível crescer para cima. ingénuo. a ambição de crescer para as estrelas
não dava tréguas ao corpo – as montanhas queriam tocar o céu. as árvores
queriam tapar o sol. os rios queriam galgar as margens. e os pássaros de um
lado para o outro a fugirem de mãos-prisão – nenhum pássaro vive sem liberdade.
voar em sentido contrário às nuvens é a solução. voar para sul. voar para a
terra quente. terra da fraternidade – só os pássaros voam junto ao céu. os
homens nunca serão capazes de voar junto ao céu. o céu não é dos homens. muito
menos daqueles que cortam a cabeça – para o céu só vão as crianças que
cresceram para os lados – as crianças que conheço cresceram todas em direção ao
céu. fizeram-se homens. algumas têm as cabeças presas por um fio. perderam-se
em pecados terrenos e partiram para norte à procura da criança perdida – caminham
descalços e a falar sozinhos. atiram pedras ao passado sem nunca acertar – o
passado sobrevive a tudo. às pedras. às desilusões. às injustiças. às perdas.
às lágrimas. ao arrependimento. à segregação. ao fim do corpo uno – o passado
alimenta-se da dor. do erro. do equívoco. da frustração. depois vem o silêncio.
a solidão e o fim dos sonhos – sem asas não há céu – os homens não têm asas. têm
sonhos. mas nem todos os sonhos aprendem a voar
II.
sinto a cabeça pesada. deve
ser de estar parada nesta posição. sempre a olhar a sul. o cabelo desarrumado incomoda-me.
mas não tenho mãos para o ajeitar – não sei por que me importa o cabelo agora
se estou decapitado. quando tinha mãos. nunca o ajeitava. andava sempre no ar e
nunca percebi porquê. talvez fosse das correrias e agora que estou decapitado.
chegou-me a vaidade – resquícios da educação. um homem deve perder a cabeça
asseado. ainda ouço a minha mãe dizer: esse cabelo está uma vergonha. tens que
ir ao barbeiro. pareces um pobre de pedir – tinha razão. sempre fui um pobre de
pedir. mesmo quando vinha do barbeiro com o cabelo cortado à navalha. sempre
soube que o meu destino seria feito à lâmina – continuo com a cabeça ao pé do
precipício. não me importo. nem tiro os olhos do horizonte. não quero saber. já
é tarde. sempre me dei bem perto dos precipícios. tal como ulisses. precisei de me amarrar à vida para resistir ao
chamamento das ninfas dos abismos – nunca coloquei cera nos ouvidos. sempre
gostei de ouvir: sampaio. sampaio. sampaio. salta. salta. a felicidade está no
desconhecido – em equilíbrio e num pé só. com o corpo a querer ficar e a cabeça
a pedir para cair. com os pássaros a voar em círculo. como se a morte estivesse
anunciada pelo cai ou não cai da cabeça. a mão num dilema. apanho um pássaro.
não apanho. só quero um par de asas. mais nada – ambição maldita – em frente
aos olhos. o céu estatelado. horizontal como eu. o que teria acontecido? será
que também foi decapitado e tombou no meu estrado? não creio. o céu não me faria
uma desfeita dessas. um homem que corta a cabeça não quer o céu como companhia
– quem se guilhotina não quer esperança. não quer fé. queremos desistir. partir
para um lugar onde ninguém saiba nada de guilhotinas. queremos silêncio – quero
ficar só. quero abraçar-me sozinho. beijar-me. perdoar-me no tempo. não quero o
céu no meu estrado. não quero – no céu só tem entrada quem morre a mando de
deus – não me dou com deus – tenho a certeza de que deus não suporta ouvir o
meu nome. quanto mais chamar-me para o seu pé – confesso que também não ia. não
quero como parceiro um deus injusto. sempre com a treta de que está
literalmente em todo lugar. isto é. omnipresente – mentiroso. nunca o senti por
perto – em mateus 18:20. jesus faz uma promessa aos que lhe consagram a vida a
servi-lo: “Porque, onde estiverem dois ou três reunidos em meu nome, aí estou
eu no meio deles” – mentiroso. em minha casa sempre nos reuníamos em sua honra e
nunca o senti no nosso meio – éramos mais de dois ou três. éramos uma família
inteira – para perder a cabeça não preciso de nenhum chamamento. sou surdo há
muito tempo. muito antes de pensar em guilhotinar-me. muito antes de tudo – o
dia está cinzento. cinzento triste. talvez cinzento descanso. mas que seja só
cinzento. nunca guilhotinaria a cabeça num dia de sol. não quero ficar amarrado
a nenhum raio de sol – mas o céu está deita-se ao meu lado. à espera de me ver
fechar os olhos. apagar o passado. sem pedras a magoar – talvez o céu me queira
a dormir por uma última vez. quando durmo sou feliz. os sonhos nunca deixam de
ser sonhos. confesso que a alguns faço-os voar. transformo-os em gaivotas
malhadas. das que não têm medo das nortadas – talvez consiga pôr o céu a dormir
um soninho. pequenino. aconchegadinho. os dois enroladinhos um no outro por uma
última vez – não é fácil. quem sabe se hoje é o meu dia da sorte – ficava
feliz. nunca o vi de olhos fechados. anda sempre a correr de um lado para o
outro. sempre a dizer que pode acabar tudo a qualquer momento e que a vida
passa num abrir e fechar de olhos – se o céu adormecer a meu lado. nem que seja
só por um momento. prometo que. quando acordar. não terá mais os olhos virados
a sul. aceitarei o destino com resignação e
adotarei para sempre o norte como a minha última morada. prometo. nunca quebro
uma promessa – o silêncio é agora verdadeiro. quando perdemos a cabeça do corpo.
o silêncio é de cortar à lâmina – as mãos atadas atrás das costas suam enquanto
o tronco espera a absolvição de todos os pecados – permanece imóvel. consciente
da sua perda. a cabeça. não é a primeira vez na vida. já andou sem cabeça
antes. e nem por isso deixou de fazer o que era certo. só não tinha as mãos
presas – mas agora é diferente. agora também não tem mãos – agora tudo vai ser
muito mais difícil. sem mãos tudo será mais difícil – também não sei se quero
ver de novo as mãos desatadas – há nós que nunca se devem desatar. são feitos
de destino. e destino não se toca – não percebo por que é que o destino me
reservou este final de mãos atadas. nunca fizeram nada para merecer castigo – nada.
absolutamente nada – se o destino me queria castigar. apertava-me o pescoço num
laço apertado. talvez assim tivesse evitado a guilhotina – não adianta. o que
está feito. está feito. a cabeça partiu e não volta – só encontro uma razão
para as mãos estarem atadas. não me deixarem escrever – que estupidez – não sei
para quê. sempre que escrevo. as palavras dizem coisas que poucos entendem –
coisas que fui amealhando da vida – não é fácil dizer o que me vai na alma com
as mãos atadas e a cabeça guilhotinada – estou doido. juro que não sabia. um
homem são não se guilhotina – tantas
vezes me diziam: a escrever essas coisas um dia vais acabar no inferno – ninguém
consegue chegar ao céu só porque tem a cabeça bem presa ao tronco. é preciso
ter asas – não tenho asas. bem queria ser gaivota. mas não sou – amo gaivotas.
amo aquela liberdade de se atirarem contra o mar. contra o vento. contra o
destino. com a coragem de construírem os seus abrigos em precipícios – mas agora.
com o céu de lado. posso meter-me a caminho. talvez consiga chegar ao seu pé.
mesmo que não leve a cabeça – estou mesmo doido. nunca pensei chegar a este
estado de loucura – já não há mais mentira. o que sinto não é barulho. sinto o coração
a baloiçar. num vai e vem que mais parece não levar a lado nenhum. cheguei a
pensar que pudesse estar a soluçar. mas não. o meu coração já não sabe
chorar. o que sinto é o corpo entregue ao
vento norte – baloiça. para lá. para cá. perdido entre idas e vindas. num
barulho que não é barulho. é silêncio sem retorno – baloiça com um corpo que.
por não ter olhos. não sabe que este baloiçar é o perder da cabeça para sempre –
não há arrependimento. um dia. todos temos que partir. eu vou mais cedo. mas
vou pelas minhas mãos e as guilhotinas são elegantes. vistosas. aparatosas.
altas e as lâminas sempre afiadas. a cortar tudo de uma só pancada – poucos
homens partem guilhotinadas pelas suas mãos – o corpo bamboleia para lá. por
força do vento norte. para cá. escorraçado pelo vento sul. não há troncos sem
cabeça a sul. a sul só se aceitam homens inteiros – é a guerra dos ventos e o
corpo a bambolear contra o destino mesmo depois de perder a cabeça – neste ir e
vir do corpo. a cabeça mantém-se imóvel. olhos abertos. cabelo desarrumado. da
boca nem um ai – não estranho. sempre fui assim. sempre andei para lá e para cá
– não é justo. decapitei-me e. mesmo assim. não me deixam descansar – nunca nada
chega para este mundo – já não é céu. é refém. mesmo dentro de um corpo sem
cabeça – talvez uma mão surja para me fecha os olhos. com os olhos fechados. os
sonhos ressuscitam e. quem sabe. aprendam a voar – quando os olhos não abrem. a
noite torna-se eterna. os sonhos não acordam. a fantasia dissolve-se no real e
as crianças nunca chegam a ser homens – quem sabe um dia o corpo acorda inteiro.
acorda homem. homem a jogar às escondidas. à macaca. à bola. à vida quase
perfeita – infelizmente. só a morte é redentora – agora. sim. creio na vida
depois da morte. preciso de acreditar. mesmo sem cabeça para me dizer o que
está certo ou errado – só quem morre abandona o corpo e regressa ao passado – e
é no passado que me esperam – decapitei-me e nem uma lágrima deito pelo homem
que fui – o salmo 23 lembra que ele está
ali. ainda que eu ande pelo vale da sombra e da morte. não temerei mal algum.
porque ele está comigo – este ele é a minha esperança. não é deus. é o meu pai
há momentos em que. mais importante do que estar
certo. é mais compreender a natureza do erro
ler prosa
é uma chatice
desgasta? sim. desgasta
intelectualmente. às vezes
gasta? sim. gasta
os minutos
e os elefantes também
cria trombas? sim. cria
no leitor
e no escritor
mas os elefantes. esses
já nascem trombudos
há momentos em que morro – morro para me apagar do mundo
– estar morto é bom. é o contrário de ter memória. é sair do corpo. entrar por
uma rua qualquer sem hora de retorno –
perguntam-me: a que horas regresso
não sei. não esperem por mim. vão comendo. não
deixem arrefecer a comida – quando chegar como o que houver. aqueço os restos –
sempre me dei bem com os restos. liga bem com o que resta de mim – nos restos encontro
sempre mais de mim – não me importo de comer comida aquecida. às vezes até é
melhor. está mais apurada. como eu – também sou apurado – gosto de paladares
fortes. às vezes picantes. doces também. salgados. e insossos como nos
hospitais. com a enfermeira a gritar em voz dominadora: o sr. doutor mandou
fazer uma dietinha. tudo a meio sal. tem que ser sr. sampaio. é para seu bem –
quem é que sabe o que é melhor
para mim. na minha doença não há doutores
não gosto nada de comida a meio de nada. ou é. ou
não é. ou desce. ou não desce – para mim não há trinta e seis. só o oito. ou o
oitenta – desde que chegue inteira. até pode tostar o céu-da-boca –
merda. a comida está quente para
caraças
é o único céu que conheço. sem constelações. sem
estrelas. sem cometas a indicar acontecimentos de coisas que depois não
acontecem. sem descobertas de novas galáxias onde meia dúzia de iluminados
garantem que finalmente é possível provar a existência de extraterrestres – no
meu céu-da-boca a única forma de vida resistente ao meu oito ou oitenta. são
organismos que vivem em comunidade com outros a que não dou importância:
parasitas – este ser vivo aproveita-se de mim. alimenta-se dos restos de
palavras difíceis. palavras que. por não saber
escrever. não sei engolir –
ainda não percebi ao certo se são
os parasitas que vivem das minhas palavras. ou pelo contrário. sou eu que os
alimento para não findar esta vontade de encontrar novas palavras
não importa – nada disto é essencial para deglutir
o que me escalda o céu-da-boca – importante é saber que a dor existe. não há
palavra sem dor. mas homem que é homem aguenta a dor – com o tempo fui
aprendendo a proteger-me destas peladelas maldosas. tantas vezes te queimas que
passa a ser hábito – comer muitas vezes
é um verdadeiro inferno. mas se o que me chega à boca queimar. dou duas voltas.
e mando tudo para baixo num só trago – prefiro que me queime as tripas do que o
céu-da-boca. um homem sem céu não vive em paz –
o inferno conheço eu bem. já do
céu sei o que vou ouvindo pelas esquinas do inferno
mas se a comida estiver fria também engulo. com
custo. mas engulo. não gosto de fazer dos restos mais restos – sempre ouvi a
minha mãe dizer que estragar comida é pecado – o que aprendemos em criança fica
para sempre. e pesa como chumbo. por muito que queiras modificar não consegues.
afinal de contas foi a tua mãe que disse. e mãe só há uma. e onde há mãe há um
céu que não queima – por tudo isto não consigo estragar comida. prefiro
estragar-me a mim. eu sou forte. aguento tudo. e quando a força me abandona
morro. morto sou mais feliz do que vivo e não sou obrigado a comer o que não
quero –
por favor não esperem. desta
vez não sei quanto tempo preciso de estar morto
quando deixo de acreditar. morrer é a única certeza
– quando estou morto não tenho telefone. nem facebook. nem likes. nem email`s.
máquina de lavar. micro-ondas. ou outra qualquer tecnologia que produza
metamorfoses que me usurpem esta vontade de morrer-catarse – inevitavelmente só a morte limpa o corpo. é
assim comigo – acredito nesta inevitabilidade. por isso quero morrer. não sei
por quanto tempo. mas também não é importante. o que me mata não me faz viver –
a
morte é o único silêncio absoluto que ninguém ousa interromper
quando morro. encontro um tempo só meu. um tempo de
perdão. também preciso de me perdoar. aprender a perdoar os outros com doçura –
quando estou morto esqueço os amigos. estimo-os demais para os obrigar a
estarem presentes na vida de quem morreu – amigo é coisa séria. não é palavra
vã. é sacrifício agradável – sempre que morro o barulho ao meu redor diminui.
gente que desconheço parte para locais que nunca saberei entender – gente.
apenas gente – desta gente que me abandona nada sei. sei que partiram porque o barulho
também partiu – um homem com barulho não consegue pensar. se falassem. nem
precisavam de falar para mim. bastava que falassem – gosto tanto de ouvir
pessoas a falar umas com as outras – mas perdoem-me. bem sei que não sou justo.
e logo eu que não suporto a injustiça. mas incompreensivelmente tenho amigos
que fazem barulho e gosto deles. gosto de os ouvir. não suportaria vê-los
partir para lugares que nunca saberia entender – não sou injusto. sou apenas um
homem –
os
homens dos oito ou oitenta acabam sempre por perder amigos – quem fala expõe-se
quando regresso da morte há sempre menos amigos à
minha espera – já não me importo. eles lá têm as suas razões e eu gosto
demasiadamente dos meus amigos para os questionar. quero sempre o melhor para
quem gosto – estou convencido que a culpa é minha. ando sempre a morrer de um
lado para o outro. não deve ser fácil ter amigos que morrem por tudo e por nada
– os tempos mudaram e os amigos já não são como antigamente – hoje cada amigo
tem a sua vida. e a maior parte dos que conheço nunca quiseram morrer. são
felizes com barulho. e estão sempre a sorrir de coisas que não sei valorizar – antigamente
a palavra amigo era coisa de responsabilidade. amigo tirava a própria roupa do
corpo para dar ao seu amigo –
dá cá
mais um aperto nestes ossos sampaio
o último tratado de amizade que li deixou-me com
vontade de nunca mais morrer por coisa nenhuma – o romance do escritor húngaro
sándor márai. as velas ardem até ao fim – nunca mais fui o mesmo. agora não me
sai da ideia de um dia poder morrer por uma amizade igual à do henrik. esperou
mais de quarenta anos para terminar o julgamento com o seu amigo konrad. e
assim poder morrer pela última vez com o amigo de uma vida – os livros são
sempre tão bonitos e ensinam tanta coisa. tanta coisa de outras vidas – queria
ser um livro assim –
como é
que vou encontrar uma amizade para morrer feliz?
desculpo com mais facilidade aqueles que meteram
papelada assinada sobre palavra-de-honra para uma amizade eterna. e que. por um
qualquer cansaço. separaram o abraço e partiram com a coragem de uma despedida.
sempre é melhor do que aqueles que partem sem dizer que partiram– não gosto de
perder amigos. tenho tão poucos. e espaço também – quando deixo entrar no corpo
novos amigos os que tenho ficam mais apertados. não é justo – nos dias de hoje
nunca sabemos quem é o verdadeiro amigo. é tudo tão passageiro. tão material.
tão interesseiro – não gosto de ver os meus amigos apertados por falsos amigos
que ocupam um espaço de afeto – esqueço igualmente os inimigos. os que fazem
barulho e também os silenciosos. os indiferentes. os ingratos. os mal educados.
os desarrumados. os que lhes falta bom-senso. e que por via disso se tornam
injustos. teimando em atribuir a culpa ao feitio – todo o pecado tem remissão –
o meu corpo cada vez está mais apertado
quando morro. sinto obrigação de morrer de vez. não
gosto de morrer aos bocadinhos – não sou capaz de fazer morrer o fígado num dia.
e no dia seguinte decretar a morte de um rim. ou pior ainda. estrangular a garganta
numa semana. e passado um mês silenciar os lábios – não sou capaz. não sou
homem para deixar morrer o que é meu aos bocados. mesmo que nenhum dos órgãos já
não valha grande coisa – não. não seria possível. não fui feito com esse
fermento. não consigo ficar a levedar para morrer atrancado de palavras azedas –
quando morro. estou morto por inteiro –
um
homem morto vale por dois
os mortos têm honra mesmo depois de mortos – não
gosto que me tentem ressuscitar com velórios harmoniosos. criados em tempo que
não sendo genuíno. já não servem para coisa nenhuma e que. por estar morto não
ouço – estou morto porque optei por morrer. certo ou errado gosto de estar
assim. é no mundo dos mortos que melhor vejo os vivos – e não tenho dia certo
para ressurgir. escusam de esperar. vão às vossas vidas e não deixem arrefecer
a vossa comida – a maior parte de vocês não está preparado para comer a comida
fria e muito menos aquecida –
há palavras que por serem verdadeiras
não podem ser ditas em vida. magoam mais do que a própria morte
sou muito melhor morto do que vivo. morto não falo.
nem me zango. nem olho para o lado. nem para cima. e muito menos para baixo –
detesto olhar para baixo quando tudo o que faço é para manter a cabeça em cima –
com a cabeça erguida. os olhos veem claro. e os olhos nunca me enganaram – quando morro. esqueço a falta que me faz ser
desejado. esqueço os que não tem amor próprio. os que não sabem que amar é dar
mais que receber. esqueço todas as dores. as do corpo e as da alma – quando morro esqueço que a vida continua.
mesmo para os mortos sem prazo de regresso –
morto compreendo melhor o mundo
dos vivos
não quero que esperem pela minha volta à vida.
desta vez morro para poder descansar da vida – há momentos em que é melhor
estar morto do que vivo – gosto de estar morto. quando estou morto tenho a certeza
de que não posso voltar a morrer. estou protegido da vida – * “Por vezes é
preciso morrer para ver melhor. Morrer para renascer.”
*“Por vezes é preciso morrer para ver melhor.
Morrer para renascer.” - paulo josé miranda
sou – tu. escrita. agora és o meu alimento – bem sei
que as palavras estão sem sal. sem vinagre. sem cozedura. sem a força do fogo
sagrado. bem sei – trago dentro de mim frases feitas e não sei para que servem.
são recordações – amargurado. escrevo – a mágoa alonga sempre o que escrevo –
as palavras multiplicam-se na exata medida da mágoa – o que não era relevante é
agora tudo o que me resta de um tempo fértil – e eu em banho-maria. a levantar
fervura de recordações que nem sabia existirem – um homem carregado de
recordações pode morrer a qualquer momento – tempo-sábio. aprendemos tanto com
a soma dos dias – trezentos e sessenta e cinco vezes cinquenta e dois. isto é
igual… o resultado pouco importa. sei que é muito tempo – depois. chega a prova
dos nove. quase tudo é resto zero – nas contas do tempo sobram unicamente as
recordações. centésimas que fazem a diferença no acerto das contas – agora. sou
feito de tempo e recordações – escrever é um ato solitário. um encontro com o
silêncio de todas as almas. cobrem-me com uma proteção sagrada. a mão escreve em
estado puro. sem pecado. sem remorsos. sem relógio. sem idade. sem nenhum dedo
a julgar. e a balança parada num equilíbrio justo: de um lado o homem errante.
do outro. em jeito de contrapeso. o perdão sobre a minha palavra de honra – sou
feito de tempo – para quem escreve. o silêncio é a única prova de que a vida
existe – no interior as palavras libertam-se finalmente das correntes. o
passado volta a ser hoje – com a escrita. volto a ser o que fui. e então. como
criança. reencontro a felicidade – ser feliz. alguém consegue ser feliz
enquanto pensa?
– só escrevo com a mão
direita e a direito
estou só. como gosto. e não
tenho para quem ler esta folha. que ainda agora era branca. bastou um leve
mover de mão. exagerado. para sarrabiscar tudo o que carrego numa saudade-medo
– tenho medo de me esquecer – um dia esquecerei – sinto que as palavras são a
única forma de não esquecer deste sou – podia trazer outro sou para a escrita. mas
não. trago este – não escolhemos o sou nem o seu fruto. somos o que somos. e
não há forma de fugir às palavras que me crescem nas mãos deste sou – da mesma
forma que as macieiras dão maçãs e não dão cerejas – sou este sou e nunca
conseguirei ser outro – cada árvore dá o que tem na raiz. e a minha raiz é
esta. o corpo caído para norte. a mão a teimar escrever para sul – escrevo
torto por linhas direitas – escrevo para dizer que existo. se não tivesse estas
palavras como testemunhas. neste papel que já foi árvore. ninguém saberia da
minha existência. talvez nem eu – neste tempo
grisalho. os sonhos encolhem-se cada vez mais – quando escrevo. faço-me existir.
ler-me é saber que existo de verdade – escrevo. logo existo