.................................................................................não tirem o vento às gaivotas

30/06/2014

pescadinha de rabo na boca



françoise nielly
 
  

quem escreve

  teme

quem teme

  existe

quem existe

  vive

quem vive

  sofre

quem sofre

  escreve

quem escreve

  teme

 

foi pela mão de um poeta

que nasceu a expressão:

pescadinha de rabo na boca 




28/06/2014

meta[-]morfose



a. amorim
 


noite: o coração bate borboletas
– crisálida –
manhã: ressurreição de outro mundo



25/06/2014

guilhotinei-me


google - autor desconhecido
  

I.

prostrado no estrado de madeira. o tronco – guilhotinei-me. a cabeça rebolou em silêncio para o lado dos rejeitados. repousando agora à beira do precipício – a norte. as testemunhas assistem vigilantes ao fim. aguardam calmamente o último suspiro – olham-se num silêncio uníssono. agitam as cabeças para cima e para baixo – morta – na cabeça inerte. só os olhos teimam em guardar o que resta da vida. abertos. fitam o mundo a sul. agora num plano raso. em profundidade horizontal. olhos e vida deitados no mesmo estrado – tudo o que era vertical está agora nivelado pela linha imaginária do horizonte – o mundo também foi guilhotinado – nuvens tombadas. árvores tombadas. casas tombadas. janelas tombadas. chaminés tombadas a desfalecer pelo chão. talvez mortas. talvez guilhotinados também – só as crianças se mantêm de pé – talvez o mundo exista para ser visto de outra forma que não na vertical – agora está tudo deitado. tudo inclinado para perto da terra. a fazer lembrar a trágica constatação de eclesiastes: “Tudo caminha para um mesmo lugar; tudo vem do pó e tudo volta ao pó” – nunca me tinha apercebido de que a vida também se faz para os lados. só quando estamos prostrados é que compreendemos que o mundo não é só altura. é feito de lados – aglomerados de pessoas marcam lugares como se fossem a rosa dos ventos. fazem vida para todos os lados. só o norte aponta sempre para o mesmo sítio. guilhotina – nunca vi uma rosa dos ventos enquanto suportei o corpo na vertical – talvez estivesse a olhar o céu. talvez estivesse à procura de uma estrela com o meu nome. nunca vi nenhuma. nem mesmo a estrela polar – crescer para os lados é prioridade. crescer para o céu. só depois de preenchido o vazio entre lados – para os lados crescemos em direção ao nosso semelhante. não crescemos para cima indiscriminadamente. crescemos de encontro uns aos outros e quando nos tocamos acabam os lados. ficamos ligados pelo toque. pelo encontro da pele e o que era esquerda é agora centro. e a minha direita é a esquerda de quem vem ao meu encontro – a fusão de pequenos núcleos formam um núcleo colossal. único. monocelular. a teoria de einstein aplicada ao homem. um novo big bang dá origem a um novo planeta-luz – a radiação de luz solidária é uma nova recombinação molecular do material genético humano – talvez neste novo homem se possa aplicar a teoria renegada pelos físicos do estado estacionário – agora há matéria nova nos intervalos crescentes. o toque da pele é real – crescer para os lados é o triunfo sólido da evolução das espécies de darwin. evoluímos por processos naturais. crescemos em resultado do erro. da persistência para o evitar. da vontade de nos superarmos. crescemos porque fizemos da vida uma marcha coletiva. distinguimos o bem do mal. o homem do animal. o abraço do gelo. o beijo do punhal. a fé do desalento. crescemos porque a dor deixou a singularidade e fundiu-se numa pluralidade de inteligência emocional – foi assim que as montanhas cresceram. primeiro para os lados e só quando se tocaram é que cresceram para o céu – depois apareceram as nuvens. trouxeram água. de seguida os pássaros. os peixes. as flores. as árvores. e quando tudo era perfeito plantaram-lhe crianças a jogar à bola. às escondidas. à macaca. à estátua e por último desenharam-lhes na face sorrisos infinitos. sorrisos que nascem para lá da linha do horizonte – dentro dos sorrisos um planeta azul. redondo. com mar. sol e sal – não há crianças sem sorrisos – enquanto estive com a cabeça ligada ao tronco convenci-me de que só era possível crescer para cima. ingénuo. a ambição de crescer para as estrelas não dava tréguas ao corpo – as montanhas queriam tocar o céu. as árvores queriam tapar o sol. os rios queriam galgar as margens. e os pássaros de um lado para o outro a fugirem de mãos-prisão – nenhum pássaro vive sem liberdade. voar em sentido contrário às nuvens é a solução. voar para sul. voar para a terra quente. terra da fraternidade – só os pássaros voam junto ao céu. os homens nunca serão capazes de voar junto ao céu. o céu não é dos homens. muito menos daqueles que cortam a cabeça – para o céu só vão as crianças que cresceram para os lados – as crianças que conheço cresceram todas em direção ao céu. fizeram-se homens. algumas têm as cabeças presas por um fio. perderam-se em pecados terrenos e partiram para norte à procura da criança perdida – caminham descalços e a falar sozinhos. atiram pedras ao passado sem nunca acertar – o passado sobrevive a tudo. às pedras. às desilusões. às injustiças. às perdas. às lágrimas. ao arrependimento. à segregação. ao fim do corpo uno – o passado alimenta-se da dor. do erro. do equívoco. da frustração. depois vem o silêncio. a solidão e o fim dos sonhos – sem asas não há céu – os homens não têm asas. têm sonhos. mas nem todos os sonhos aprendem a voar  

 

II.

sinto a cabeça pesada. deve ser de estar parada nesta posição. sempre a olhar a sul. o cabelo desarrumado incomoda-me. mas não tenho mãos para o ajeitar – não sei por que me importa o cabelo agora se estou decapitado. quando tinha mãos. nunca o ajeitava. andava sempre no ar e nunca percebi porquê. talvez fosse das correrias e agora que estou decapitado. chegou-me a vaidade – resquícios da educação. um homem deve perder a cabeça asseado. ainda ouço a minha mãe dizer: esse cabelo está uma vergonha. tens que ir ao barbeiro. pareces um pobre de pedir – tinha razão. sempre fui um pobre de pedir. mesmo quando vinha do barbeiro com o cabelo cortado à navalha. sempre soube que o meu destino seria feito à lâmina – continuo com a cabeça ao pé do precipício. não me importo. nem tiro os olhos do horizonte. não quero saber. já é tarde. sempre me dei bem perto dos precipícios. tal como ulisses. precisei de me amarrar à vida para resistir ao chamamento das ninfas dos abismos – nunca coloquei cera nos ouvidos. sempre gostei de ouvir: sampaio. sampaio. sampaio. salta. salta. a felicidade está no desconhecido – em equilíbrio e num pé só. com o corpo a querer ficar e a cabeça a pedir para cair. com os pássaros a voar em círculo. como se a morte estivesse anunciada pelo cai ou não cai da cabeça. a mão num dilema. apanho um pássaro. não apanho. só quero um par de asas. mais nada – ambição maldita – em frente aos olhos. o céu estatelado. horizontal como eu. o que teria acontecido? será que também foi decapitado e tombou no meu estrado? não creio. o céu não me faria uma desfeita dessas. um homem que corta a cabeça não quer o céu como companhia – quem se guilhotina não quer esperança. não quer fé. queremos desistir. partir para um lugar onde ninguém saiba nada de guilhotinas. queremos silêncio – quero ficar só. quero abraçar-me sozinho. beijar-me. perdoar-me no tempo. não quero o céu no meu estrado. não quero – no céu só tem entrada quem morre a mando de deus – não me dou com deus – tenho a certeza de que deus não suporta ouvir o meu nome. quanto mais chamar-me para o seu pé – confesso que também não ia. não quero como parceiro um deus injusto. sempre com a treta de que está literalmente em todo lugar. isto é. omnipresente – mentiroso. nunca o senti por perto – em mateus 18:20. jesus faz uma promessa aos que lhe consagram a vida a servi-lo: “Porque, onde estiverem dois ou três reunidos em meu nome, aí estou eu no meio deles” – mentiroso. em minha casa sempre nos reuníamos em sua honra e nunca o senti no nosso meio – éramos mais de dois ou três. éramos uma família inteira – para perder a cabeça não preciso de nenhum chamamento. sou surdo há muito tempo. muito antes de pensar em guilhotinar-me. muito antes de tudo – o dia está cinzento. cinzento triste. talvez cinzento descanso. mas que seja só cinzento. nunca guilhotinaria a cabeça num dia de sol. não quero ficar amarrado a nenhum raio de sol – mas o céu está deita-se ao meu lado. à espera de me ver fechar os olhos. apagar o passado. sem pedras a magoar – talvez o céu me queira a dormir por uma última vez. quando durmo sou feliz. os sonhos nunca deixam de ser sonhos. confesso que a alguns faço-os voar. transformo-os em gaivotas malhadas. das que não têm medo das nortadas – talvez consiga pôr o céu a dormir um soninho. pequenino. aconchegadinho. os dois enroladinhos um no outro por uma última vez – não é fácil. quem sabe se hoje é o meu dia da sorte – ficava feliz. nunca o vi de olhos fechados. anda sempre a correr de um lado para o outro. sempre a dizer que pode acabar tudo a qualquer momento e que a vida passa num abrir e fechar de olhos – se o céu adormecer a meu lado. nem que seja só por um momento. prometo que. quando acordar. não terá mais os olhos virados a sul. aceitarei o destino com resignação e adotarei para sempre o norte como a minha última morada. prometo. nunca quebro uma promessa – o silêncio é agora verdadeiro. quando perdemos a cabeça do corpo. o silêncio é de cortar à lâmina – as mãos atadas atrás das costas suam enquanto o tronco espera a absolvição de todos os pecados – permanece imóvel. consciente da sua perda. a cabeça. não é a primeira vez na vida. já andou sem cabeça antes. e nem por isso deixou de fazer o que era certo. só não tinha as mãos presas – mas agora é diferente. agora também não tem mãos – agora tudo vai ser muito mais difícil. sem mãos tudo será mais difícil – também não sei se quero ver de novo as mãos desatadas – há nós que nunca se devem desatar. são feitos de destino. e destino não se toca – não percebo por que é que o destino me reservou este final de mãos atadas. nunca fizeram nada para merecer castigo – nada. absolutamente nada – se o destino me queria castigar. apertava-me o pescoço num laço apertado. talvez assim tivesse evitado a guilhotina – não adianta. o que está feito. está feito. a cabeça partiu e não volta – só encontro uma razão para as mãos estarem atadas. não me deixarem escrever – que estupidez – não sei para quê. sempre que escrevo. as palavras dizem coisas que poucos entendem – coisas que fui amealhando da vida – não é fácil dizer o que me vai na alma com as mãos atadas e a cabeça guilhotinada – estou doido. juro que não sabia. um homem são não se guilhotina  – tantas vezes me diziam: a escrever essas coisas um dia vais acabar no inferno – ninguém consegue chegar ao céu só porque tem a cabeça bem presa ao tronco. é preciso ter asas – não tenho asas. bem queria ser gaivota. mas não sou – amo gaivotas. amo aquela liberdade de se atirarem contra o mar. contra o vento. contra o destino. com a coragem de construírem os seus abrigos em precipícios – mas agora. com o céu de lado. posso meter-me a caminho. talvez consiga chegar ao seu pé. mesmo que não leve a cabeça – estou mesmo doido. nunca pensei chegar a este estado de loucura – já não há mais mentira. o que sinto não é barulho. sinto o coração a baloiçar. num vai e vem que mais parece não levar a lado nenhum. cheguei a pensar que pudesse estar a soluçar. mas não. o meu coração já não sabe chorar.  o que sinto é o corpo entregue ao vento norte – baloiça. para lá. para cá. perdido entre idas e vindas. num barulho que não é barulho. é silêncio sem retorno – baloiça com um corpo que. por não ter olhos. não sabe que este baloiçar é o perder da cabeça para sempre – não há arrependimento. um dia. todos temos que partir. eu vou mais cedo. mas vou pelas minhas mãos e as guilhotinas são elegantes. vistosas. aparatosas. altas e as lâminas sempre afiadas. a cortar tudo de uma só pancada – poucos homens partem guilhotinadas pelas suas mãos – o corpo bamboleia para lá. por força do vento norte. para cá. escorraçado pelo vento sul. não há troncos sem cabeça a sul. a sul só se aceitam homens inteiros – é a guerra dos ventos e o corpo a bambolear contra o destino mesmo depois de perder a cabeça – neste ir e vir do corpo. a cabeça mantém-se imóvel. olhos abertos. cabelo desarrumado. da boca nem um ai – não estranho. sempre fui assim. sempre andei para lá e para cá – não é justo. decapitei-me e. mesmo assim. não me deixam descansar – nunca nada chega para este mundo – já não é céu. é refém. mesmo dentro de um corpo sem cabeça – talvez uma mão surja para me fecha os olhos. com os olhos fechados. os sonhos ressuscitam e. quem sabe. aprendam a voar – quando os olhos não abrem. a noite torna-se eterna. os sonhos não acordam. a fantasia dissolve-se no real e as crianças nunca chegam a ser homens – quem sabe um dia o corpo acorda inteiro. acorda homem. homem a jogar às escondidas. à macaca. à bola. à vida quase perfeita – infelizmente. só a morte é redentora – agora. sim. creio na vida depois da morte. preciso de acreditar. mesmo sem cabeça para me dizer o que está certo ou errado – só quem morre abandona o corpo e regressa ao passado – e é no passado que me esperam – decapitei-me e nem uma lágrima deito pelo homem que fui – o salmo 23  lembra que ele está ali. ainda que eu ande pelo vale da sombra e da morte. não temerei mal algum. porque ele está comigo – este ele é a minha esperança. não é deus. é o meu pai

 



10/06/2014

06/06/2014

bernardo soares – livro do desassossego



bernardo soares - fernando pessoa



A solidão desola-me, a companhia oprime-me. A presença de outra pessoa descaminha-me os pensamentos.



bernardo soares - livro do desassossego


05/06/2014

não leia prosa


sérgio gaspar
 
 
ler prosa é uma chatice de grande desgaste intelectual. onde os minutos são como elefantes. pesados. lentos. e de tromba – para dar descanso os meus amigos leitores prosistas. resolvi tirar o dia para versejar um pouco

 

ler prosa

é uma  chatice

 desgasta? sim. desgasta

intelectualmente. às vezes

gasta? sim. gasta

os minutos

e os elefantes também

cria trombas? sim. cria

no leitor

e no escritor

mas os elefantes. esses

já nascem trombudos


04/06/2014

estar morto é o contrário de ter memória



 ivan solyaev


momentos em que morro – morro para me apagar do mundo – estar morto é bom. é o contrário de ter memória. é sair do corpo. entrar por uma rua qualquer sem hora de retorno –

 

                                                        perguntam-me: a que horas regresso

 

não sei. não esperem por mim. vão comendo. não deixem arrefecer a comida – quando chegar como o que houver. aqueço os restos – sempre me dei bem com os restos. liga bem com o que resta de mim – nos restos encontro sempre mais de mim – não me importo de comer comida aquecida. às vezes até é melhor. está mais apurada. como eu – também sou apurado – gosto de paladares fortes. às vezes picantes. doces também. salgados. e insossos como nos hospitais. com a enfermeira a gritar em voz dominadora: o sr. doutor mandou fazer uma dietinha. tudo a meio sal. tem que ser sr. sampaio. é para seu bem –

 

                                                              quem é que sabe o que é melhor para mim. na minha doença não há doutores  

 

não gosto nada de comida a meio de nada. ou é. ou não é. ou desce. ou não desce – para mim não há trinta e seis. só o oito. ou o oitenta – desde que chegue inteira. até pode tostar o céu-da-boca –

 

                                                        merda. a comida está quente para caraças

 

é o único céu que conheço. sem constelações. sem estrelas. sem cometas a indicar acontecimentos de coisas que depois não acontecem. sem descobertas de novas galáxias onde meia dúzia de iluminados garantem que finalmente é possível provar a existência de extraterrestres – no meu céu-da-boca a única forma de vida resistente ao meu oito ou oitenta. são organismos que vivem em comunidade com outros a que não dou importância: parasitas – este ser vivo aproveita-se de mim. alimenta-se dos restos de palavras difíceis. palavras que. por não saber escrever. não sei engolir –

 

                                                              ainda não percebi ao certo se são os parasitas que vivem das minhas palavras. ou pelo contrário. sou eu que os alimento para não findar esta vontade de encontrar novas palavras

 

não importa – nada disto é essencial para deglutir o que me escalda o céu-da-boca – importante é saber que a dor existe. não há palavra sem dor. mas homem que é homem aguenta a dor – com o tempo fui aprendendo a proteger-me destas peladelas maldosas. tantas vezes te queimas que passa a ser hábito –  comer muitas vezes é um verdadeiro inferno. mas se o que me chega à boca queimar. dou duas voltas. e mando tudo para baixo num só trago – prefiro que me queime as tripas do que o céu-da-boca. um homem sem céu não vive em paz –

 

                                                             o inferno conheço eu bem. já do céu sei o que vou ouvindo pelas esquinas do inferno

 

mas se a comida estiver fria também engulo. com custo. mas engulo. não gosto de fazer dos restos mais restos – sempre ouvi a minha mãe dizer que estragar comida é pecado – o que aprendemos em criança fica para sempre. e pesa como chumbo. por muito que queiras modificar não consegues. afinal de contas foi a tua mãe que disse. e mãe só há uma. e onde há mãe há um céu que não queima – por tudo isto não consigo estragar comida. prefiro estragar-me a mim. eu sou forte. aguento tudo. e quando a força me abandona morro. morto sou mais feliz do que vivo e não sou obrigado a comer o que não quero –  

 

                                                               por favor não esperem. desta vez não sei quanto tempo preciso de estar morto

 

quando deixo de acreditar. morrer é a única certeza – quando estou morto não tenho telefone. nem facebook. nem likes. nem email`s. máquina de lavar. micro-ondas. ou outra qualquer tecnologia que produza metamorfoses que me usurpem esta vontade de morrer-catarse –  inevitavelmente só a morte limpa o corpo. é assim comigo – acredito nesta inevitabilidade. por isso quero morrer. não sei por quanto tempo. mas também não é importante. o que me mata não me faz viver –

 

                                                              a morte é o único silêncio absoluto que ninguém ousa interromper

 

quando morro. encontro um tempo só meu. um tempo de perdão. também preciso de me perdoar. aprender a perdoar os outros com doçura – quando estou morto esqueço os amigos. estimo-os demais para os obrigar a estarem presentes na vida de quem morreu – amigo é coisa séria. não é palavra vã. é sacrifício agradável – sempre que morro o barulho ao meu redor diminui. gente que desconheço parte para locais que nunca saberei entender – gente. apenas gente – desta gente que me abandona nada sei. sei que partiram porque o barulho também partiu – um homem com barulho não consegue pensar. se falassem. nem precisavam de falar para mim. bastava que falassem – gosto tanto de ouvir pessoas a falar umas com as outras – mas perdoem-me. bem sei que não sou justo. e logo eu que não suporto a injustiça. mas incompreensivelmente tenho amigos que fazem barulho e gosto deles. gosto de os ouvir. não suportaria vê-los partir para lugares que nunca saberia entender – não sou injusto. sou apenas um homem –

 

                                                              os homens dos oito ou oitenta acabam sempre por perder amigosquem fala expõe-se  

 

quando regresso da morte há sempre menos amigos à minha espera – já não me importo. eles lá têm as suas razões e eu gosto demasiadamente dos meus amigos para os questionar. quero sempre o melhor para quem gosto – estou convencido que a culpa é minha. ando sempre a morrer de um lado para o outro. não deve ser fácil ter amigos que morrem por tudo e por nada – os tempos mudaram e os amigos já não são como antigamente – hoje cada amigo tem a sua vida. e a maior parte dos que conheço nunca quiseram morrer. são felizes com barulho. e estão sempre a sorrir de coisas que não sei valorizar – antigamente a palavra amigo era coisa de responsabilidade. amigo tirava a própria roupa do corpo para dar ao seu amigo  –

 

                                                             dá cá mais um aperto nestes ossos sampaio

 

o último tratado de amizade que li deixou-me com vontade de nunca mais morrer por coisa nenhuma – o romance do escritor húngaro sándor márai. as velas ardem até ao fim – nunca mais fui o mesmo. agora não me sai da ideia de um dia poder morrer por uma amizade igual à do henrik. esperou mais de quarenta anos para terminar o julgamento com o seu amigo konrad. e assim poder morrer pela última vez com o amigo de uma vida – os livros são sempre tão bonitos e ensinam tanta coisa. tanta coisa de outras vidas – queria ser um livro assim –

 

 

                                                              como é que vou encontrar uma amizade para morrer feliz?

 

desculpo com mais facilidade aqueles que meteram papelada assinada sobre palavra-de-honra para uma amizade eterna. e que. por um qualquer cansaço. separaram o abraço e partiram com a coragem de uma despedida. sempre é melhor do que aqueles que partem sem dizer que partiram– não gosto de perder amigos. tenho tão poucos. e espaço também – quando deixo entrar no corpo novos amigos os que tenho ficam mais apertados. não é justo – nos dias de hoje nunca sabemos quem é o verdadeiro amigo. é tudo tão passageiro. tão material. tão interesseiro – não gosto de ver os meus amigos apertados por falsos amigos que ocupam um espaço de afeto – esqueço igualmente os inimigos. os que fazem barulho e também os silenciosos. os indiferentes. os ingratos. os mal educados. os desarrumados. os que lhes falta bom-senso. e que por via disso se tornam injustos. teimando em atribuir a culpa ao feitio – todo o pecado tem remissão –

 

                                                        o meu corpo cada vez está mais apertado

 

quando morro. sinto obrigação de morrer de vez. não gosto de morrer aos bocadinhos – não sou capaz de fazer morrer o fígado num dia. e no dia seguinte decretar a morte de um rim. ou pior ainda. estrangular a garganta numa semana. e passado um mês silenciar os lábios – não sou capaz. não sou homem para deixar morrer o que é meu aos bocados. mesmo que nenhum dos órgãos já não valha grande coisa – não. não seria possível. não fui feito com esse fermento. não consigo ficar a levedar para morrer atrancado de palavras azedas – quando morro. estou morto por inteiro –

 

                                                                         um homem morto vale por dois

 

os mortos têm honra mesmo depois de mortos – não gosto que me tentem ressuscitar com velórios harmoniosos. criados em tempo que não sendo genuíno. já não servem para coisa nenhuma e que. por estar morto não ouço – estou morto porque optei por morrer. certo ou errado gosto de estar assim. é no mundo dos mortos que melhor vejo os vivos – e não tenho dia certo para ressurgir. escusam de esperar. vão às vossas vidas e não deixem arrefecer a vossa comida – a maior parte de vocês não está preparado para comer a comida fria e muito menos aquecida –

 

                                                             há palavras que por serem verdadeiras não podem ser ditas em vida. magoam mais do que a própria morte

 

sou muito melhor morto do que vivo. morto não falo. nem me zango. nem olho para o lado. nem para cima. e muito menos para baixo – detesto olhar para baixo quando tudo o que faço é para manter a cabeça em cima – com a cabeça erguida. os olhos veem claro. e os olhos nunca me enganaram  – quando morro. esqueço a falta que me faz ser desejado. esqueço os que não tem amor próprio. os que não sabem que amar é dar mais que receber. esqueço todas as dores. as do corpo e as da alma –  quando morro esqueço que a vida continua. mesmo para os mortos sem prazo de regresso –

 

                                                             morto compreendo melhor o mundo dos vivos

 

não quero que esperem pela minha volta à vida. desta vez morro para poder descansar da vida – há momentos em que é melhor estar morto do que vivo – gosto de estar morto. quando estou morto tenho a certeza de que não posso voltar a morrer. estou protegido da vida – * “Por vezes é preciso morrer para ver melhor. Morrer para renascer.”


*“Por vezes é preciso morrer para ver melhor. Morrer para renascer.” - paulo josé miranda



03/06/2014

mário quintana – inscrição para um portão de cemitério



mário quintana
 
  
Na mesma pedra se encontram,
Conforme o povo traduz,
Quando se nasce - uma estrela,
Quando se morre - uma cruz.
Mas quantos que aqui repousam
Hão de emendar-nos assim:
"Ponham-me a cruz no princípio...
E a luz da estrela no fim!"


mário quintana


02/06/2014

balancete


radaelli
 

sou – tu. escrita. agora és o meu alimento – bem sei que as palavras estão sem sal. sem vinagre. sem cozedura. sem a força do fogo sagrado. bem sei – trago dentro de mim frases feitas e não sei para que servem. são recordações – amargurado. escrevo – a mágoa alonga sempre o que escrevo – as palavras multiplicam-se na exata medida da mágoa – o que não era relevante é agora tudo o que me resta de um tempo fértil – e eu em banho-maria. a levantar fervura de recordações que nem sabia existirem – um homem carregado de recordações pode morrer a qualquer momento – tempo-sábio. aprendemos tanto com a soma dos dias – trezentos e sessenta e cinco vezes cinquenta e dois. isto é igual… o resultado pouco importa. sei que é muito tempo – depois. chega a prova dos nove. quase tudo é resto zero – nas contas do tempo sobram unicamente as recordações. centésimas que fazem a diferença no acerto das contas – agora. sou feito de tempo e recordações – escrever é um ato solitário. um encontro com o silêncio de todas as almas. cobrem-me com uma proteção sagrada. a mão escreve em estado puro. sem pecado. sem remorsos. sem relógio. sem idade. sem nenhum dedo a julgar. e a balança parada num equilíbrio justo: de um lado o homem errante. do outro. em jeito de contrapeso. o perdão sobre a minha palavra de honra – sou feito de tempo – para quem escreve. o silêncio é a única prova de que a vida existe – no interior as palavras libertam-se finalmente das correntes. o passado volta a ser hoje – com a escrita. volto a ser o que fui. e então. como criança. reencontro a felicidade – ser feliz. alguém consegue ser feliz enquanto pensa?

– só escrevo com a mão direita e a direito

estou só. como gosto. e não tenho para quem ler esta folha. que ainda agora era branca. bastou um leve mover de mão. exagerado. para sarrabiscar tudo o que carrego numa saudade-medo – tenho medo de me esquecer – um dia esquecerei – sinto que as palavras são a única forma de não esquecer deste sou – podia trazer outro sou para a escrita. mas não. trago este – não escolhemos o sou nem o seu fruto. somos o que somos. e não há forma de fugir às palavras que me crescem nas mãos deste sou – da mesma forma que as macieiras dão maçãs e não dão cerejas – sou este sou e nunca conseguirei ser outro – cada árvore dá o que tem na raiz. e a minha raiz é esta. o corpo caído para norte. a mão a teimar escrever para sul – escrevo torto por linhas direitas – escrevo para dizer que existo. se não tivesse estas palavras como testemunhas. neste papel que já foi árvore. ninguém saberia da minha existência. talvez nem eu – neste tempo grisalho. os sonhos encolhem-se cada vez mais – quando escrevo. faço-me existir. ler-me é saber que existo de verdade – escrevo. logo existo