.................................................................................não tirem o vento às gaivotas

11/08/2014

28 – aceito. até que o caminho se gaste




frans hals
 



o caminho nem parecia ser longo – fui caminhando tantas vezes sem saber que caminhar era somente falar e de cada vez que falava mais caminho ficava caminhado – falava muito. de princípio sozinho. imaginava que ninguém me queria ouvir – depois descobri que é muito melhor falar para quem gosta de saber o que digo – dei então a mão e falei – falei. por cada dia de caminho o dobro gasto em palavras e de tanto falar deixei de olhar para o caminho – descobri que falar era a solução para caminhar em afeição. o tempo foi passando sem nunca dar conta do caminho feito – quando se começa a falar é muito difícil voltar ao silêncio. as palavras guardadas na privacidade do corpo emergem à boca em aflição. como se necessitassem de respirar. ou de luz. ou companhia. ou somente para dizer que existem – falo. falo porque as mãos não me obrigam a tapar a boca. os lábios enchem-se de um vermelho alegria-esperança enquanto os olhos alargam o sorriso ao corpo por inteiro – fico mais jovem. quase gaiato. adolescente. namoradeiro – falar é bom. falar é companheirismo. é cumplicidade. é amizade – falo. falo sem parar. falo com o corpo. com as mãos. com o toque. com os olhos e no intervalo das pernas o tempo a escapar com verdade. com lealdade. com saudade. com estima – no caminho que fizemos falei. sempre muito. sem parar. falei o que era só meu. sacrifiquei o silêncio. nunca imaginei sacrificar o meu silêncio íntimo. mas sacrifiquei – nunca mais te perdi a mão – sou assim. quase nada a teu lado e quase tudo por te ter ao meu lado – acredito que estas palavras não serão as últimas que te escrevo. bem que poderiam ser. sempre quis partir a sorrir. mas ainda não é o tempo-adeus – sinto. sinto que tenho ainda tantas coisas para te dizer. coisas que só tu és capaz de compreender. sei – falo-te. desta vez falo-te com estas palavras que escrevo. escrevo-as por ti. a vida só faz sentido em ti – no timbre da voz o fervor lê-se em desejo: quero-te agora e para sempre – estamos a falar há tantos anos – são tantos os relógios a marcar tempo. tantas palavras-momentos. palavras-datas. palavras-mel. algodão. algodão-doce a derreter no recanto dos teus lábios e eu sempre a falar-te mais. sempre mais. falar do destino que escolhi  – não merecias tão pouco do destino – para trás ficou tanta coisa nossa. tanta luta. tanta renúncia. tanta coragem. tanta apreensão. tanta ilusão e tu a dizer que tudo irá dar certo e eu sempre a prometer um mundo azul só para ti – nem sempre temos o mundo da cor que idealizamos – acredito que aquela nuvem além. um dia. silenciosamente. chegará ao pé do que somos hoje – somos agora tão diferentes – talvez comece então a chover e as palavras comecem a cair dos olhos e nós sem saber o que fazer para as parar – os corpos estão mais embranquecidos e já não entendem o desencanto das palavras. teimam em cair quando as árvores continuam a florir pássaros-em-primavera – não sei companheira. não sei nada de pássaros. juro-te que não sei. juro-te que não tenho culpa de não saber –  gostava de saber tudo de pássaros e primaveras. gostava muito. por mim e por ti. principalmente por ti. mas não fui competente para saber – talvez tenham medo desta minha forma de falar ou viram alguma coisa que eu nunca vi – os pássaro não tem estradas vão para onde os olhos querem estar – mas companheira. eu também estou onde quero estar. quero estar ao pé de ti. – tu és a árvore onde sossego. onde conto alvoradas. gaivotas talvez. tu sabes que amo gaivotas. gaivota é liberdade. gaivota é mar. gaivota é paz. gaivota é esperança. gaivota é verdade. gaivota é vento. gaivota é o teu nome. e tu és tudo o que preciso para continuar a teimar a vida – vivo para te falar. vivo para nunca te largar as mãos – falo-te. falo-te sem parar. muito. não sei dizer amo-te numa única palavra – gosto dos teus abraços. dos teus beijos. dos teus gestos. do teu cheiro. gosto dos teus olhos quando encontram os meus. gosto do teu cabelo quando o enrodilho nos dedos. gosto de me deitar no teu colo e ouvir o mar a chamar o vento norte enquanto as gaivotas gritam o teu nome a sul – é por lá que o sol se esconde de todas as injustiças do amor – já não falta muito para que a noite se abeire com tudo que é arrependimento. pesarosa. negra. sombria. escura. só não a quero muito negra. não suportaria deixar de te ver. preciso – enquanto viveres nos meus olhos sou imortal – o tempo passa e não me canso de te falar. falo-te como se fosse a primeira vez – nunca esquecerei a nossa primeira vez. nunca. nunca. nunca – tudo agora faz sentido – para trás não olho. não quero. ainda ouço as palavras que nos trouxeram até aqui: aceito. sim aceito. até que o caminho se gaste – parece que ainda foi ontem. passaram vinte e oito anos – guardo-te no coração

 

sampaio rego – 21 de julho de 2012




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