.................................................................................não tirem o vento às gaivotas

24/09/2014

ponto vernal



foto autor - holanda - keukenhof



atapetam-se jardins
de flores
colhem-se novas cores

 
- é o ponto vernal

 
adossado
chalaceia o caminheiro
do inverno


- o solstício ainda vem longe


solfejam alegria
andorinhas
em pomares de fartura


abrem-se:
janelas de esperança

 

22/09/2014

espírito totémico


eliana bonini

 

nunca sei de onde me chega esta coragem para vos dizer como sou – loucura – retalho-me pelo que sinto – se soubesse não era insano. não me retalhava. não me temia – insano pode ser um qualquer. talvez não – por uma coisa pessoal. quiçá não – pelo demónio. possivelmente não – ou. unicamente. uma porta emperrada. ou talvez outra razão – quem sabe. talvez o mais certo. é esta loucura acontecer como luta contra o destino – uma questão de sobrevivência. algo da alma – mas o cérebro sabe que a morte é inevitável – é necessário ser louco quanto antes – a morte é silêncio apenas para quem parte – quando partimos. levamos tudo. tudo? apenas as palavras que ficam por dizer – gosto de me dar. depois. dizem que sou louco – que culpa tenho eu? nasci assim – a morte só não cala a escrita 



17/09/2014

14/09/2014

procuro uma palavra que queira falar...


vânia lopez


olhe para seu relógio
os campos mudaram de cor
uma peça de mobília
preenche o quebrar da sala
o tempo que nunca esteve aqui
parece estar voltando...
 

chove tudo agora,
chove o dia que some na colina
chove noite no céu azul.
chove o voo na face das asas,
que só as gaivotas compreendem.
 
 
em tua memória, quando estiver chegando
traga uma palavra doce,
com uma pitada de sal
para engordarmos juntos.
e perder tudo que não significa nada.
afogo o céu de esperas
como se sua alma inteira se libertasse
na ponta do pincel.
 
 
(para - sampaio rego)


12/09/2014

ressacado


fábio magalhães


quase louco

estou muitas vezes assim – o presente amarrado a um dente do siso que sempre senti a abanar – agora. com raiva. enrolei-lhe uma guita em volta. a outra extremidade atada a uma porta que separa o presente do futuro – um dia. lançarei a porta contra o destino 

ou

fechá-la-ei para sempre 



05/09/2014

não corre peta de vento


harrison gomez


estou semimorto – não tenho papel. nem esferográfica. nem palavras. nem leitores – estou um caco – desprovido completamente de tudo. quer dizer. sinto-me um perfeito mentecapto dentro de um corpo que não serve para coisa nenhuma – nada na minha cabeça além do desejo de possuir um abecedário – nem uma mísera palavra. um antónimo de oco – mendigo-me – só quero uma palavra para anunciar a felicidade de quem se escreve – expectativa – não corre peta de vento – estou fodido 


01/09/2014

[também] somos o que fazemos com as palavras


fernando botero

[também] somos o que fazemos com as palavras

 

vânia!


o celular - na minha terra. telemóvel - é uma modernice do novo homem tecnológico – este homem. ligado a um futuro que não para de surpreender. faz-me existir com o número 00 351 XXXXXXXXX – esta é a minha conexão ao satélite que liga o continente europeu com aquele que abriga o brasil. américa. onde reside a minha amiga vânia lopez – escreve a vânia:

-- um dia. não distante. prometo-te surpreender

diz que vai usar o seu celular. marcando o número que me faz existir para o mundo – acredito. mas. pelo sim e pelo não. espero sentado para não cansar as pernas – quando concluíres a “call”. cara colega. um sujeito antigo. subjugado agora ao valor das memórias. vai responder a “você” assim:

- - sim. boa tarde. quem fala?

e vossemecê do outro lado. responde em bicos de pés que não param de elevar o sorriso ao patamar das deusas mitológicas

- - oi meu qu(i)rido. qu(i) legal falar com você. qu(i) surpresa boa. valeu.  estou tão feliz – nem acredito que foi capaz de ligar. qu(i) legal

dois mundos ligados por fios invisíveis giram amarrados a um fuso desgovernado pela emoção – tudo agora é enviesado: o eixo do mundo. as palavras permutadas. os corpos que cruzam palavras com sentimento. os braços descaídos para bolsos com medo de não saberem o que dizer. e os olhos. em órbitas desconhecidas. percorrem uma nova trajetória emocional sob influência de uma nova lei do universo: escrever cria afetos – ligam as palavras o que o mar teima em separar – para o mundo literário. chegou uma nova descoberta: um novo enviesamento tecnológico emocional – tudo sorri dentro de uns fios imaginados que ainda ninguém conseguiu ver – neste mundo. os olhos são cegos. descansam para outros encantos que as palavras juram existir de verdade –  as cabeças não param de imaginar o que vem da voz. doidas pela descoberta. ajardinadas pelo aroma. enfeitadas pela alegria. tombam para a emoção cruel da distância aprisionada a um fio-algema – seguram o céu ao imaginário de duas crianças escondidas em corpos feitos à palavra-papel. tantas vezes incompreendida. tantas vezes ignorada. tantas vezes manipulada. tantas vezes a teimar a verdade. escrevem-se numa vida censurada em solidão – comoção. agitação. perturbação. emoção e tudo oblíquo desde o dia em que o criador engendrou um homem de pó e uma mulher da sua costela. enviesámos para sempre em palavras – só ele sabe o porquê de nos colocar a rodar de lado para o universo – bem que podíamos estar verticais. olhos nos olhos. a tocar com as mãos numa perpendicular ao corpo. a dizer: estou aqui porque neste momento não poderia estar em mais lado nenhum. estou aqui porque descobrimos muito mais do que palavras escritas. descobrimos afeição – não é assim. mas a culpa também não é nossa. nós fazemos a nossa parte. gostamo-nos  – quem manda. pode – palavra. a palavra. vamos eletrizando o espaço com um perfume alfabético guardado em boiões de uma prosa universal – bem nos queremos. escrevendo ou falando  –  ninguém arquitetava um mundo assim.  cada vez mais global. cada vez mais informal. nunca bell imaginaria que a sua descoberta um dia habitaria tão perto das estrelas  –  se ele pudesse. afigurar que um simples par de números estivesse ligado a um país. a uma operadora e a um nome que. por sua vez. com a voz. faz com que a ida e a vinda de todas as palavras acabem por informar em grandes parangonas:

-- a lua está cada vez mais perto do mar

estamos os dois na lua – longe vai o tempo daqueles telefones enormes. operados por senhoras de blusa branca. esguias. sempre a sorrir. cabelo apanhado. lábios pintados de um vermelho a trazer alquimia à voz: alô! quem fala?... tem uma chamada em linha da senhora vânia lopez aceita atender? o que era longe fez-se perto.. o que era solidão fez-se saudade. o que era tempo fez-se presente. falamo-nos com abraços feitos de voz – mas o mundo não parou num telefone de manivela. e agora as palavras acontecem velozmente –  inesperadamente. chega uma nova vaga de afetos tecnológicos:

--qu(i) saudade tinha de ouvir você. legal mesmo

verdade. verdade mesmo. digo eu que já o sentia sem celular – este “legal” que pode ser também bestial. brutal ou boçal se as palavras não afagassem – ainda agora vi um golfinho a saltar para dentro de uma cratera lunar e um homem verde a ficar cor-de-rosa. talvez azul. cor do mar que separa a idealidade da nossa escrita – estou certo que um dia este mar será o nosso “mare nostrum” – mergulham as palavras que escrevo no avental de quem me quer bem. procuram conforto. proteção. talvez um comentário carinhoso escrito em verso livre. ou um like de polegar virado para o céu – são rosas senhora. são rosas. e no regaço a mágoa de quem não sabe escrever a raiva dos continentes cercados de água por todos os lados menos pela escrita – são rosas com espinhos. ou são espinhos com rosas – a lua presa a um mar que teima em dividir o que as palavras querem unir numa nova estrada metafórica – as mãos pedem cada vez mais acerto. ritmo e harmonia na escolha das palavras que atapetam oceanos em cores de amizade – há flores que teimam em nascer nesta encruzilhada de mãos amarradas aos pés – é afinal esta coisa de escrever que me faz pintar um quadro para ti: traço acanhado. suave. harmonioso. silencioso. pacato e a decair para o tom verde-esperança. o mar sem ondas. parado entre marés onde o futuro é ilegível e se pode ver um golfinho sentado na orla crescente da nossa lua sorrindo à beleza de um pensamento cristalino – a lua que canta fado no beiral da minha janela é a mesma que dança samba na avenida do marquês de sapucaí – é a tela que tenho para te oferecer minha amiga. uma tela feita do meu mundo. do meu sentir. do meu eu por inteiro onde a água engole as palavras de um mar ainda insuperável – sobrevive esta pequena luz de palavras em confronto com uma triste nostalgia de quem espera pelo tocar das vozes – só as sombras sabem o que existe do outro lado escuro da lua – um dia derrubarei com palavras que ainda não escrevi todas as sombras do mundo e a água será para sempre engolida pela terra – escreveremos então um novo poema a duas mãos – [também] somos o que fazemos com as palavras

  

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correspondência com a vânia em junho de 2011 que deu origem a uma nova crónica - [também] somos o que fazemos com as palavras
 

o celular. na minha terra. telemóvel. coisa da era dos homens do futuro e com o número 00 351 XXXXXXXXX - esta é a minha ligação ao satélite que liga o continente europeu com aquele que suporta o brasil - deste lado um homem vai responder - sim. quem fala? e do outro lado do celular a voz. a voz caçadora de emoções. vânia. ui meu qu(i)rido. qu(i) bom falar com você - e o mundo sempre a girar. e o eixo que suporta os nossos pés a dizer: a lua está cada vez mais perto do mar. ainda agora vi um golfinho a saltar para dentro de uma cratera e um homem verde a ficar cor-de-rosa. talvez vermelho. talvez azul. cor do mar que separa a terra que mergulha nas palavras que escrevo - são rosas senhora. são rosas. e no regaço a dor de nunca escrever a ira do coração. são rosas com espinhos. são espinhos com rosas - e a lua à distância de uma mão e o A.E.I.O.U. a pedir outras letras um V. um n e as flores a nascer nesta encruzilhada de mãos amarradas aos pés - é afinal esta coisa de escrever que me faz pintar um quadro para ti. traço pequeno. irrequieto. em tons verdes e o mar sem ondas. parado entre marés. e o golfinho sentado ao tempo de um pensamento - é tela. senhora. é uma tela senhora dos mundos pincelados de brilho. contrastes de luz que só as sombras compreendem

 
 
06 – 11 -2011 - [revisto em 18.06.2014]