.................................................................................não tirem o vento às gaivotas

23/04/2018

um dia serei livro


pintura - willian michael harmett


um dia serei livro mesmo que não seja o dia mundial do livro – mas enquanto não sou livro. enquanto a lombada não se enche de mim. enquanto não concebo o título e o prefácio se escreve e se apaga. número os dias que escrevo como se em cada momento me escorresse pelo braço o corte da espada de salomão – e tudo feito numa palavra-silêncio vil. tão vil como o artista. tão podre como poeta. tão chula como o sujeito [poético] que escreve o que mata e mata com o que escreve – o livro cheio de coisas que pode ser nada ou pode ser tudo aquilo que um homem tem para sobreviver à morte – um dia serei capa. com letras firmes. redondas. pintadas a ouro e alinhadas numa estética para vender. mágica. a ilustrar o que não é – do outro lado a contra capa. envergonhada por encerrar tudo o que é livro. diz apenas o que o autor manda dizer – e o que está para lá da capa a falar baixinho. tão baixinho que só os pássaros de ruy belo sabem pousar sobre as entrelinhas de um livro fechado: um dia. todo o livro terá a hora da morte assinalada como efeméride apoteótica [quase sempre. morre o livro antes do autor] – para o escritor um livro é um punhal encostado ao batimento da mão que escreve. é sofrimento e paixão. raiva e sossego. é vida feita palavra tantas vezes incompreendida. rejeitada. ostracizada e deportada para uma ilha sem olhos – bonita ou feia cada palavra sozinha é inútil. mas sem palavras. sem palavras a falarem de si. fazem alimento para uma multidão – um livro é mais do que uma vida. é a vida de quem o lê – hoje é o dia do livro e eu continuo sem parir porra de livro nenhum – juro que um dia terei um livro só meu e os sinos baterão ao nome do seu criador: aleluia. aleluia. salvação e ressurreição às metáforas porque as portas do céu abriram-se ao inferno da vida – não importa quantas páginas se agarrem à lombada. não. o que importa é que será para sempre um livro do mundo. mesmo sem ser mundial – todo o livro encerra dentro de si um mundo. o do seu criador – mas o meu livro. que será o livro da minha vida por não ter outra para escrever. será também vil. ordinário. será cruel. mas também será verdadeiro. guardará tudo o que presta como o que não presta – o meu livro será injusto. profundamente injusto e justo também. será fel e mel. e terá letras direitas – será raiva. será de gente que ainda vive e de outra gente que. por não estar viva. já partiu sem saber ler nem escrever – no meu livro. aqueles que o lerem encontrarão o que não procuram e descobrirão que o certo será quase sempre incerto – um dia serei livro mesmo que não seja o dia mundial do livro. ou do poeta egocêntrico ou mesmo de um escritor que nunca soube escrever. como quem que. não sabendo ler. folheia página a página a história que tem na ponta dos seus dedos – um dia. mesmo que não seja o dia do livro. pode ser até a merda de um dia qualquer. serei livro contra a vontade do sonho e por cada página escrita entregarei um grito de clemência e tolerância – nesse dia serei o que o livro quiser. vontade e ilusão. vontade e vazio ou o nada de nada absoluto e serei também o que cada um souber ler – um dia. no meu livro. serei mesmo só o que quiserem que seja e. se não quiserem... também nada serei para além do livro que sou



22/04/2018

depois de abril. antes de maio






um dia

depois de abril

serei apenas

o que sou

e nem mais um dedo

do que sou

e em boa verdade me interrogo

que mais poderia ser

não sei

talvez encantador

talvez altaneiro

ou talvez

louco

se me arrogasse

num pedestal

e vos cantasse

que sou mais

do que vos fala

esta

boca intranquila

 

mas aqueles

que antes de maio

dizem que nada sou

um dia

que não sei quando

mas será sempre depois abril

dirão

que sou este mundo

e ainda outro

que não sei onde fica

 

 lá terão

as suas razões

que

não serão nunca as minhas

sejam de mil

ou

apenas de um de abril

 

dirão que fui bobo

e tolo

também

mesmo que não saibam

verdadeiramente o que dizem

porque tudo o que sou

não está na razão

está no que

não sou

 

e não sou tantas coisas 




20/04/2018

deambulações noturnas XXVIII


pintura - giovana santiago



noite: e por aqui ando a contar paralelepípedos enquanto os sinos dobram para o inevitável 



18/04/2018

xerife de mim



foto - arquivo familiar


quarta-feira. estou cansado da idade. todos os dias mais velho. todos os dias a andar para a frente. para a frente do inevitável. do fim do papel. do lápis. dos leitores. dos amigos. dos filhos. da minha maria joão e desta vontade de vos falar escrevendo – hoje. dezoito de abril de dois mil e dezoito. mais uma vez vestido de meio cowboy. estou na escola gulbenkian num carnaval de catraios e fantasias – o mundo completamente perfeito. mascarado de alegria. intenso nos sorrisos e nas notas de um piano de cauda que continua a tocar mesmo que hoje nada se ouça – e eu parado na foto. como se não houvesse tempo entre aquele dia e o momento presente – viajo: os mesmos olhos negros. o mesmo jeito do corpo. as mesmas mãos caídas como se adivinhassem o que estava para vir e um silêncio secreto na boca que ainda hoje continua a lacerar – e eu ali de pé. estático. sem medo que a foto me roube a alma. a respirar o presente porque o futuro só existe quando o corpo cresce – pelo chão. às cores. raspas de papel em alegria contorcem-se num alvoroço descontrolado e invadem o corpo num sorriso tímido e inocente – na foto todo o caminho está suspenso no tempo e num lenço ao pescoço. vermelho vivo. da cor pulsante do sangue… e no peito. do lado contrário ao coração a estrela dos justos: sou xerife – e assim fiquei. xerife de mim para toda a vida – nesse dia. distante. era um cowboy meio escangalhado. o dinheiro era caro e a minha mãe entendeu que meia fardeta já seria suficiente para sair aos tiros pela vida fora – não me tornei num homem sem lei. nem precisei de fugir à justiça. saí a correr comigo e acabei aqui. defronte a este papel que é metade desabafo e outra metade sentença – a vida puniu-me devagarinho para não ser muito injusta. roubou-me lentamente um dia de cada vez. como quem vai apagando devagarinho numa morte assistida pela qual sou o único responsável. eu e o destino escondido na foto – nada podemos fazer contra o destino – envelheci. perdi aqueles olhos negros inocentes carregados de futuro e caminho e desatei a fugir da fotografia – a vida é imperfeita e talvez por isso resista neste mundo imprevisível – atirei-me ao destino e magoei-me. atirei-me à verdade e desiludi-me. atirei-me à injustiça e cansei-me. atirei-me às palavras e nunca mais fui justo comigo – com o tempo fui perdendo tudo. primeiro a estrela. depois o lenço. de seguida o colete e o chapéu e por último a pistola. e lá se foram os sonhos que estavam dentro das balas – quando dei conta já não estava no carnaval e o mundo já não disfarçava a tristeza – o tempo no meu caso serviu apenas para medir a distância entre a esperança e a morte. não digo a morte física. mas a morte dos sonhos que se realizam com um tempo que sabes já não ter – um homem sem sonhos perde as noites. e sem noites também não há manhãs – o fim da vida acontecerá com o fim das minhas coisas escritas – vivemos a fazer coisas. algumas coisas sem nenhuma utilidade. outras. só são relevantes porque nos permitem caminhar como caminham os homens e por fim. as coisas que realmente nos dão dimensão temporal e que nos fazem existir: a família. os amigos. os abraços que entregamos. o calor de um abraço. os afetos trocados. e as fotos em que aparecemos a rir e a sonhar – são estas fotos que me obrigam a viver mesmo que os sonhos já não passem de curtas metragens – aqui estou. dezoito de abril de dois mil e dezoito. a respirar calmamente. mãos caídas e os olhos negros de saudade. a imaginar a vida depois da minha última foto 



13/04/2018

o mecanismo do coração



pintura - pablo picasso



[dia internacional do beijo]


meu coração tem um pequeno cérebro dentro de si. como a pilha nos relógios. não faz tic-tac. mas faz-me sorrir sempre que te dou um beijo



11/04/2018

eu. a escola. e o pão com marmelada



ron mueck



encosto o corpo à cadeira. recolho-me num escritório esgotado de reboliço.  retiro as concordâncias para o lado. fecho o word e olho pela janela com a sensação de dever cumprido – dou o que tenho e o que não tenho por cada palavra. quem assim o faz a mais não é obrigado – a noite anuncia em breve a chegada do dia. as estrelas estão em debandada. o escuro já não é um escuro de meter medo enquanto os demónios fogem a sete pés para as catacumbas – reconforto-me numa poltrona que me pertence. o tempo cavou-lhe o esboço do corpo. acerto-me. encaixo na perfeição e procuro arredar-me do que sobra da noite. engulo duas golfadas de ar. liberto-me na desarrumação mental e livro-me do corpo – por fim. livre de todas as malapatas emito um último pedido em banda divina: encomendo aos meus guias espirituais um punhado de sonhos felizes – quando encontrar esse sono afortunado terei então oportunidade de descansar da vida e retratar a morte: sossego absoluto – viver é uma barulheira infernal – sentado e sem corpo. coloco os olhos no parapeito da janela e ordeno-lhes com semblante autoritário: façam o favor de me trazer ao corpo os primeiros raios de luz da manhã – ninguém consegue dormir em silêncio sem pelo menos um raio de luz dentro do corpo – esta não é uma manhã qualquer. é a manhã que traz a primavera. a estação das flores. dos pássaros. da fruta. dos sorrisos em dias grandes. dos namorados encantados com os ninhos das andorinhas. das amizades leais. dos abraços entre pais e filhos. da esperança. da fartura e do conseguimento do corpo para apreender que a vida depende de um raio de sol – com a primavera esqueço que o março é madrasto. esqueço a saudade do meu pai e também esqueço as saudades que tenho de mim – tenho tantas saudades de mim – cresci em demasia. nunca deveria ter crescido. nunca me devia ter desfeito dos meus calções com suspensórios. da bola de couro. daquele chapeuzinho redondo com que um dia atravessei o rio minho no colo de minha mãe. do cheiro a terra na minha aldeia. ou do reboliço na minha cidade com a feira semanal – hoje sei que cresci enganado – cresci. mas não esqueço a minha rua. o mercado. os camiões da fruta a chegar ao mercado. e os carrejões sujos como áfrica a carregar as primeiras uvas do algarve – não esqueço as tendas a vender coisas e coisinhas e aquela gente de preto. mal vestida. suja por fora. limpíssima por dentro. e o bom dia numa vénia humilde. límpida. de gente genuína. gente do meu chão que carregava à cabeça sorrisos de encantar. simples. bonitos. agradecidos a cada raio de sol mesmo quando a boca se fechava de fome – não devia ter crescido. era um miúdo feliz. bonito por dentro e por fora. gostava da minha escola com os seus catraios esfarrapados. pobres como jó. e eu a comer pão com marmelada. eles especados. com os olhos a afoguear necessidade. e eu de bata azul às riscas a imaginar o mundo do tamanho do recreio da escola. raparigas de um lado. nós do outro. e a professora a meio. alta num corpo de mulher perfeita. bata branca. como se tivesse descido do céu. linda. com as mãos a cheirar a conhecimento. e a boca transbordando de letras e números – assim aprendi a ler. os olhos grandes de alegria e o a. e. i. o. u desenhado na perfeição num caderno de duas linhas que nunca se cruzavam – o mundo cabia-me tudinho nos olhos. os sinos batiam as horas certas e a vida anunciava-se tranquila e pressentível. gostava de viver e gostava de falar com deus – mas cresci. agora estou enorme. afundado numa cadeira maior do que eu. com umas mãos que não sabem escrever em cadernos com linhas –  agora já não há magia. nem hora para o recreio. deus deixou de falar comigo. tirou-me a professora – estou cansado de mim. o sol nasce todos os dias da mesma forma. sem trazer o imprevisível. a inocência. aquela esperança cega ou a teimosia. é um sol amorfo. batoteiro. sem aquele calor que queimava. mas não trilhava e sem aquela vontade ingénua de arrastar o corpo para um imenso que afinal nunca descobri – aqui estou nesta primavera que já não reconheço como minha. a apontar para dentro do corpo perdido de quase tudo. a olhar o passado como se tudo em mim cheirasse a defunto. imóvel. sem uma única palavra da minha escola. com a linha do sorriso a cair do queixo e os olhos emudecidos seguram as pernas para não saírem a correr pela desgraça – que saudades tenho do pão com marmelada. que saudades tenho de mim – olho-me de cima a baixo. junto ao corpo uma pistola imaginária apontada ao que sobra do meu nome. e o dedo a tremer. disparo? não disparo? – onde anda a minha professora? onde anda a minha tabuada? tanta reguada para coisa nenhuma – agora as máquinas resolvem as contas de uma vida num segundo – um segundo que nunca terá a magia das mãos da minha professora. uma máquina nunca será alta. bonita. nem nunca virá do céu. nunca. talvez do inferno. porque tudo à minha volta é máquina e tudo parece um inferno – mas não é a mesma coisa. as máquinas não cantam a tabuada. fazem as contas. mas não cantam. nem sabem o valor de um pão com marmelada. e muito menos do que é ter uma professora – estou triste. amargurado. abril trouxe-me ao mundo e o mundo é demasiado belo para tanta tristeza dentro de mim – nunca sabemos quando vai ser a nossa última manhã. e talvez nem importe. hoje tenho este dia para viver e vou amarrá-lo ao corpo como se ainda usasse calções e a bola rolasse de pé em pé.  os amigos a deitar passos para escolher a equipa do maior para o mais pequeno e o jogo a mudar aos oito e acabar com oitenta primaveras. para todos – brevemente será abril. o mês que me trouxe à vida enrodilhou-me num trapo e ali fiquei para crescer. escondido de mim e de todas as palavras do mundo – é nas noites de abril que resisto aos intervalos do coração a bater. resisto em silêncio para que a magia volte a romper num amanhecer e me traga um raio de sol inocente. porque em cada raio de sol vive uma gaivota. e em cada gaivota um vento sul aberto a abril – sei que um dia carregarei comigo todos os amanheceres de abril – mas resisto. resisto amarrado a um raio de sol. de primavera. de abril



08/04/2018

este poema é teu - audio





este poema é teu



jeffrey smat



este poema é teu

 

[sempre que perdemos alguém que nos quer bem - com a sua leitura]

 

procuro-te

procuro-te todos os dias mesmo que não saiba onde te encontrar

fugiste-me. fizeste-te silêncio

ocupaste as mãos que me tocavam com o primeiro sol da manhã

e o que era pressentimento passou a separação

agora. tudo me rasga nestas veias de sino

emersas em sangue e gás sarin

e sufoco

sufoco quando calo esta boca cada vez mais imunda

e por mais que os astros se alinhem em perdão

o corpo bate em retirada

águas perdidas não moem sentimento

agora

o som da tua voz emancipada pela distância

é fúria de cem fantasmas

paridos em almofia de solidão

 

procuro-te

procuro-te todos os dias mesmo que não saiba onde te encontrar

procuro-te para renasceres

no que sobra deste corpo esquecido

magoaste-me como magoa o som da trovoada

cravaste-me a ausência ao peito

enfureceste-me

roubaste-me o perdão

e agora as palavras são o que são:

sujas e aflitas

maldito seja este eu que vive na ponta da flecha

 

procuro-te

procuro-te todos os dias mesmo que não saiba onde te encontrar

não te procuro para escutar o teu nome ofendido

procuro-te para que me voltes a encontrar em frente a ti

olha-me. corta-me com o silêncio que inventaste

e a pedra que não atiraste

nunca mais te voltará à mão

fugiste-me. fizeste-te memória

nessa corda silenciosa

presa a pássaro que não voa

nem sou deus. nem diabo

nem proveito preso a sino que bate ausência

sou talvez… sentença magoada

 

procuro-te

procuro-te todos os dias mesmo que não saiba onde te encontrar

procuro-te mesmo que o corpo já não saiba o que procurar

e por cada pancada do sino

paira uma gaivota no ar

e pergunto à boca:

será este o meu destino?

não sei -

ouvir-te é um desígnio

nesta imensidão de mim

que te procura sem cansar

serei doente em terra apodrecida?

não sei

as veias dilatadas de tanto escorrer fim

amargam raiva num desvario despercebido

raio de dor essa de ter sinos a gemer

se não sei a cor do que geme

nem o que geme é alerta

dentro de mim

e agora estou assim:

coisa inútil nesta espera

que te espera

 

procuro-te

procuro-te todos os dias mesmo que não saiba onde te encontrar

procuro-te para que me declares de vez

o silêncio da tua boca

mas se as palavras te fugirem para a indiferença

que seja por carta ou por abraço

que o destino me desprenda ao que sobra das manhãs

e se um dia morreres dentro de mim

então

os sinos que batam sem parar

batam sem ser devagar

batam castigo que não seja dor

porque o tempo roubado a vénus

é punição que não sustento

 

procuro-te

procuro-te todos os dias mesmo que não saiba onde te encontrar

e o que parecia um sonho

é afinal um avião a voar para o fim do mundo

fugiste para onde eu nunca parti

e o corpo é agora um grito que ecoa em palavra triste:

mata-me. mata-me ou salva-me da tourada

em que ficou a minha rua

acende-me o corpo com os teus olhos

incendeia-me as mãos de virtude

mesmo que o sol se esconda no teu regaço

e se algum dia escutares touros a correr com saudade

se algum dia ouvires sinos a evocar tristeza

e mesmo que nada entendas de cores

não me voltes a fugir

são apenas palavras minhas

a falar para ti

 

procuro-te

e pela última vez te imploro

este poema é teu

 

[abril trouxe-me ao mundo – brevemente completarei mais um aniversário natalício e. mais uma vez a soma deste aniversário é diferente de tudo aquilo que aprendi no último ano – mas a vida já me ensinou a não procurar mais o santo graal – escrever é a minha expiação. pacificação do corpo – sou feliz a escrever e se houvesse uma porta para o passado. tipo exterminador. sentar-me-ia na primeira carteira da minha escola primária para aprender todas as palavras que perdi pelo caminho – escrever faz-me viver em compromisso com o bem. com dignidade. com verdade. num abraço silencioso. verdadeiro e infindável – por isso aqui estou. em palavra humilde. e com um imenso obrigado a todos aqueles que se me entregam com a sua leitura – confesso-vos que nada mais me poderia deixar-me tão feliz – grato para sempre]



03/04/2018

antenupcial


pintura - paulo fonte


a escrita é um encontro
antenupcial

saibam as ameixoeiras florir
e as metáforas parir
belas e monstros