.................................................................................não tirem o vento às gaivotas

25/06/2019

epístola de um não crente - I


peter rubens 


deus:

hoje. voltei a entrar em tua casa e lembrei-me da parábola do filho pródigo – empurrei a porta e caminhei. benzi-me. ajoelhei e falei-te como se nunca te tivesse abandonado – mas a verdade é que não estavas lá para me ouvir. não me vieste receber de braços abertos e não mandaste matar um cordeiro para fazer um banquete porque este teu filho estava morto e reviveu. estava perdido e foi encontrado*– a tua casa estava cheia de silêncio e os teus santos. sisudos. não tiraram os olhos do céu – era como se nada vivo existisse entre o teu altar e a porta que deixa entrar gente magoada – percebi então que não pequei contra o céu – não se pode pecar contra aquilo não existe – levantei-me. passei por s. judas tadeu e meti na caixa das esmolas um bilhete com um recado para ti: estou em minha casa



Lucas 15:11-32 - A parábola do filho pródigo


24/06/2019

carlos drummond andrade - josé



imagem - google



JOSÉ

 

E agora, José?

A festa acabou,

a luz apagou,

o povo sumiu,

a noite esfriou,

e agora, José?

e agora, você?

Você que é sem nome,

que zomba dos outros,

Você que faz versos,

que ama, protesta?

e agora, José?

 

Está sem mulher,

está sem discurso,

está sem carinho,

já não pode beber,

já não pode fumar,

cuspir já não pode,

a noite esfriou,

o dia não veio,

o bonde não veio,

o riso não veio,

não veio a utopia

e tudo acabou

e tudo fugiu

e tudo mofou,

e agora, José?

 

E agora, José?

Sua doce palavra,

seu instante de febre,

sua gula e jejum,

sua biblioteca,

sua lavra de ouro,

seu terno de vidro,

sua incoerência,

seu ódio, - e agora?

 

Com a chave na mão

quer abrir a porta,

não existe porta;

quer morrer no mar,

mas o mar secou;

quer ir para Minas,

Minas não há mais!

José, e agora?

 

Se você gritasse,

se você gemesse,

se você tocasse,

a valsa vienense,

se você dormisse,

se você cansasse,

se você morresse...

Mas você não morre,

você é duro, José!

 

Sozinho no escuro

qual bicho-do-mato,

sem teogonia,

sem parede nua

para se encostar,

sem cavalo preto

que fuja do galope,

você marcha, José!

José, para onde?




18/06/2019

paradoxo de teseu





pôr-do-sol – um gesto. uma cabeça cheia de incertezas e os olhos pousados em coisas sem mobilidade: um candeeiro. um lápis. uma agenda de um ano que já não me lembro. uns quantos papeis sem o menor interesse. uma miniatura da nau de cabral e uma parede paspatur – nesta parede existo como nunca vivi [as máquinas fotográficas escondem coisas do tamanho do king kong] – voltemos ao pôr-do-sol. voltemos a um não defunto avelhentado. escurecido de medo. desacertado do relógio. do tempo que passa. da régua que mede e de um mar-gaivota – tenho a certeza que noutra vida fui marinheiro – olho as mãos e mudo-lhes a cor. atiro-as para os raios de luz e amarro-me ao que escapa da escuridão – entre os dedos um rosário de coisas a passar como se fossem sombras – será que ainda sou eu? ou será que se me aplica o paradoxo do navio de teseu? acho que já nada resta do que me trouxe a este pôr-do-sol. não tenho a mesma forma. nem os mesmos sonhos. as mãos fizeram-se em letras e os pensamentos fragmentaram-se pela inutilidade – estou amarrado num corpo que se metamorfoseou para chegar a adulto – estou agora numa espécie de estágio de crisálida. estou parado. enrolado na vida a tentar compreender o meu desassossego à incerteza – estou a pensar e a sentir o corpo. a respirar em forma de perdão – quem não pede perdão nunca será perdoado – não posso chegar ao futuro sem ter a certeza de que a minha intolerância à incerteza não tem uma explicação – respiro. concentro-me na parede paspatur e caminho de foto em foto – sigo – “nenhum vento sopra a favor de quem não sabe pra onde ir”* – não sei se a incerteza nasceu comigo ou se me entrou no corpo com a primeira golfada de ar – há coisas que nunca saberei. talvez seja melhor assim. às vezes é melhor não saber a verdade – sei que a incerteza mora com os fantasmas. percorre as mesmas paredes. os mesmos cortinados. as mesmas luzes escorridas. os mesmos sons escondidos e solta as mesmas lágrimas contidas – o que sei mesmo é que tanto a incerteza como o fantasma precisam do humano para existir – e aqui estou. parado. quase sem respirar. a controlar o medo. a justificar-me com o paradoxo de teseu. a dizer que sou o mesmo apesar de quase nada restar das incertezas que me fizeram crescer – se vos pudesse mostrar como foi difícil chegar a este pôr-de-sol – estou desfigurado. alterado. o medo ganhou garras e o que era para voar cravou-se à parede paspatur – resta-me uma obsessão doentia por uma felicidade que em boa verdade não sei se existe – viver não deveria ser tão complicado – ”você nunca vai saber o que vem depois de sábado, quem sabe um século muito mais lindo e mais sábio, quem sabe apenas mais um domingo”** – toda a minha vida viajei pelo meu corpo à procura de explicações para as incertezas. atraquei em lugares que nem sei se existem. mas uma coisa sei. nunca atraquei em amesterdão e nunca encontrei a ana dos olhos enxutos*** – uma brisa me soprou que vem aí mau tempo**** – acredito que sim. estou quase certo de que a ira de poseidon surgirá logo depois do pôr-do-sol – viver com as incertezas não é uma escolha voluntária – e aqui estou a ver coisas. a ouvir coisas. a misturar coisas. a sacudir coisas. e o centro do pensamento cada vez mais estúpido. devolvendo obscenidades para a parede paspatur numa discordância trapezista que baloiça entre merece e não merece – a parede paspatur continua indiferente. mouca. desligada da minha incerteza doentia e melancólica – e eu preso à vida de uma forma que não a compreendo – o pôr-do-sol está [também] prestes a falecer. amarra-se ao que resta da cidade. esvai-se entre as casas numa tristeza depressiva. angustiante e uma brisa fria toca a janela como se já fosse morte – será que se pode colocar o paradoxo de teseu ao pôr-do-sol? não sei – gostava de imaginar um corpo inteiro de certezas. gostava que abril fosse o mês certo para quem quer nascer. gostava que todos os úteros se emprenhassem de flores e pássaros e mesmo que os rios não cheguem ao mar com o sol em vénus que o pôr-do-sol me conforte quando o corpo se fizer inverno – foi tudo tão rápido e incerto – estou cansado. apetece-me encostar o corpo ao vento e ficar para o dia seguinte – não há nenhum pôr-do-sol igual a outro – neste corpo ocupado de incertezas o que resta de luz dá apenas para aclarar a opacidade das coisas que me rodeiam – aos poucos. todas as coisas se tornarão turvas. densas. estranhas e com formas monstruosas – tenho que aproveitar o que resta do pôr-do-sol. esconder as sombras dos fantasmas e correr como se ainda não fosse tarde para que a boca não sinta a minha ausência – mas se o corpo cumprir um destino e as pedras do caminho uma ironia sem tino. então… quero desaparecer. quero chorar prostrado o fim desta minha eternidade e que esta enorme realidade termine como se de uma história de amor se tratasse. e porque a morte não pode ser um equívoco. nem punhal sem desígnio. enveneno o que resta de mim numa última golfada de ar e vomito em sangue o meu nome nas pedras que um dia pisei – só as pedras guardam em silêncio o que resta de um homem – soubesse eu caminhar como um pássaro e sorrir como uma amendoeira em flor e a distância para o céu nunca seria medida de abril – como será o pôr-do-sol no dia seguinte? tenho medo do escuro. tenho medo do que vejo no escuro. tenho medo do que não vejo no escuro. tenho medo mesmo sabendo que algumas coisas só existem quando penso – como se houvesse um trono para quem vive a pensar. não há. tudo o que somos está no que criámos com as mãos e depois. se formos sábios. levamo-nos para dentro das coisas universais – abril é um mês cruel – e aqui estou neste pedaço de terra minúsculo onde existo. a olhar o pôr-do-sol a morrer para mim. e pergunto-me se o mundo não seria mais pequeno se não tivesse nascido em abril – vivo mesmo sabendo que não sou nada. mesmo sabendo que poderia ter sido outra coisa que não nada. se de arte o corpo se tomasse – procuro-me até que o destino me encontre. pois sei que no fim… tudo passará se um pouco de mim não ficar… nem que seja apenas pesar – nunca digas nada que o mundo não compreenda e nunca faças nada que o mundo não aceite sem pensar – o mundo é assim. é um todo distraído e impiedoso e só fazendo parte desse todo distraído e impiedoso é que serás capaz de compreender as tuas incertezas nas certezas do mundo – e as coisas sem parar de passar pelos dedos… a magoar – quero esquecer tudo o que guardo nesta parede paspatur. quero apanhar o vento e navegar no que resta dos mares. procurar-me em cada ilha. em cada gaivota. em cada dia de sol ou chuva. buscar-me em todas as incertezas até me encontrar com a última certeza – depois… em paz. procuro um pôr-do-sol e recordo todos aqueles que me fizeram existir. sento-os comigo. abraço-os e segredo-lhes vida. peço-lhes a absolvição e por fim. aceito-me numa incerteza boa e parto na saudade de ter existido até ao meu último pôr-do-sol… como diz gustave flaubert. salvo se formos cretinos. morremos sempre na incerteza do nosso próprio valor e do da nossa obra – sei que um dia abril descansará em mim

 


*lúcio sêneca

**paulo leminski:

*** música de chico buarque: bom tempo – adaptação da letra

**** música de chico buarque – ana de amesterdão –

chico buarque venceu o prémio camões 2019 – trazê-lo para o meu texto é a minha pequeníssima homenagem à sua carreira como músico e escritor

 

13/06/2019

deambulações noturnas XXXIX



foto - google


se um dia passarem pela minha rua e virem uns olhos pendurados numa janela sou eu a tentar voar

 

in: eu. o max e o avião


04/06/2019

gosto






gosto de quem passa do meu lado e também gosto de quem passa do outro lado – gosto de quem passa para cá e também gosto de quem passa para lá – gosto de quem desce do céu e também gosto de quem sobe do inferno – gosto dos desconhecidos e também gosto dos conhecidos – gosto dos amigos porque gosto e também gosto dos amigos porque gostam de mim – gosto da minha família e não posso parar de gostar porque são sangue do meu sangue – gosto da minha companheira porque sem ela nunca saberia pronunciar o verbo gostar no incondicional – gosto de tê-la a meu lado. gosto de respeitá-la. gosto de lhe dizer que é a mãe dos meus filhos o que concede valor divino a este amor – gosto de a segredar. gosto de a ver sorrir. de a sentir feliz. respeitada por mim e por quem lhe passa pela vida. e gosto de lhe dizer: gosto muito de ti – gosto de a olhar nos olhos. gosto de a abraçar e mesmo nos dias em que não a abraço sei que não parei de gostar – gosto do silêncio do abraço. de a trazer para dentro de mim e escondê-la do mundo da estupidez e da raiva de quem não cabe dentro de um abraço – gosto de abraços. de abraçar e ser abraçado – um homem sem abraços é um homem pequenino. raquítico e mirrado – gosto de fazer alegria mesmo que dentro de mim a tristeza resista ao meu sorriso – gosto da vida cheia de gente. de gente que fala. que fala porque gosta de falar e que abraça porque gosta de abraçar – e agora. depois dos cinquenta. mais sábio. mais tolerante. também gosto daqueles que encontram desculpas para nada aprenderem com a ternura de um abraço. para a sua falta de gentileza por fadiga. de cortesia por machismo de género. de educação por iletrismo e de nobreza por ausência de grandeza – só não gosto de gente que procria a vulgaridade conspurcando as relações sociais com um neandertalismo que presumia já extinto – mas não importa. o importante mesmo é que gosto deste mundo imperfeito. redondo. azul. com mares. sol e sal. mesmo que às vezes me apareçam bestas quadradas. negras. sem mares. sem sol e sem sal – mas a vida é o que é. e hoje sabe-se que a evolução do homem não está completa. e também se sabe que alguns ficaram para trás. perderam-se na centrifugação do mundo e foram atirados para os polos – mesmo assim. gosto de andar por cá e continuo a gostar desta terra que herdei fruto de um abraço único há mais de cinquenta anos – pudesse eu explicar-lhes o valor desse abraço que me gerou. quer dizer. eu poder. podia. mas seria sequer ouvido?! haveria QI?! haveria vontade de sair dos polos?! não importa. existirei sempre para além da escuridão. do erro. da tristeza. da desilusão – sempre – e na minha mão. umas quantas flores colhidas em mim para vos oferecer