.................................................................................não tirem o vento às gaivotas

31/07/2019

bem sei






bem sei

bem sei que sou o que sou

e outra coisa não poderia ser

porque se fosse

deixaria de ser o que sou

esquecer o que não posso esquecer

amar o que sempre amei

 

bem sei

bem sei que se fosse outra pessoa

não gostava de mim como sou

mas eu gosto

gosto pouco ou quase nada

e a diferença não sei explicar

o que sei

é que não me posso nausear

por não gostar de mim

como os outros gostam de si

 

bem sei

bem sei que quando gosto de mim

não é um gostar egocêntrico

gosto porque gosto das pessoas que me gostam

e são essas pessoas

que gostam de mim assim como sou

que me fazem sonhar

e talvez quem sabe…

um dia

gostar de mim como sou

 

bem sei

bem sei que sou o que sou

e outra coisa não poderia ser

mesmo sabendo que não gosto muito do que sou

não me importo

não é coisa danada

nem avaria complicada

não me aprecio

neste brio que não brilha

mas gosto de estar comigo

de me falar

e depois

quando me enfado do que digo

e as palavras abrutecem

aborreço-me

e sigo com o que sou

porque em boa verdade

já não quero saber para onde vou

e se no passado

me importava com o destino

agora

digo para aquilo que não gosto em mim:

que se lixe

e dou comigo a pensar

como é possível gostar de alguém assim

 

bem sei

bem sei que se eu pudesse gostar de mim

como os outros gostam de si

talvez não fosse como sou

seria outra coisa qualquer

que não esta

e se amanhã

por ser dia especial

eu pudesse gostar

do que sou

gostava sem favor

mesmo que tivesse que vender

os valores de ser quem sou

[que são poucos]

por não poder ser outra coisa

 

bem sei

bem sei que ninguém merece partir

sem gostar um pouco de si

sei lá

das mãos. dos abraços

ou da forma como anda ou fala

e se do corpo mais nada houver para louvar

que seja a alma a exaltar

e mesmo que a fala se cale

leia-se o que ficou

e interroguem-se

se cada palavra valer um segundo

na vida deste mundo

então. viveu para lá de marte

 

bem sei

bem sei que tenho que gostar de mim

mesmo que me apeteça não gostar

não me posso negar

porque quando me olho ao espelho

vejo o meu pai a dizer: gosto de ti

e é quando eu olho para mim

como se não pudesse olhar para mais ninguém

como se o mundo fosse…

só meu

e do espelho com o meu pai

que se fez de morto 

para me ver crescer assim como sou

 

bem sei

bem sei que o mundo não é o que penso

é o que sinto

e o que sinto é tão estranho

que prefiro não pensar

naquilo que sou quando sinto

não fosse eu um dia gostar do que sinto

naquilo que sou

e sou tão pouco

para gostar de mim de outra forma

que não esta que sou

 

bem sei

bem sei que todo o caminho

confunde o certo e o errado

e se todas as incertezas

passassem a certezas

o que seria então do que sou…

não seria

e quando me olhasse ao espelho

o meu pai teria partido

seria então outro

que não este que me fez

ser o que sou

 

bem sei

bem sei que para ser o que sou

sempre a cabeça sonhou

e se marte mora ao pé de uma vírgula

a lua é o meu ponto final

e a culpa

era afinal de quem

do que sou

ou do que gostava de ser

nunca saberei

creio que a culpa é apenas

a culpa de ser quem sou

e se assim é

nada posso fazer

se me desfizesse desta culpa

deixaria de ser o que sou

 

bem sei

bem sei que sou o que sou

e mais nada quero ser 

porque se não fosse este que conheço

seria outro muito diferente

e quem sabe…

não gostaria eu de vocês

e diriam então:

coitado

antes o quero como o sampaio

não é grande coisa

mas é o que é

e quem assim é

a mais não é obrigado

 

bem sei

bem sei que nunca deixarei de ser quem sou

mesmo não gostando do que sou





frans hals


jamais saberei o que sou e quem sou – mas quando escrevo sou realmente o que sempre quis ser: autêntico

 

24/07/2019

ouço




noites onde o escuro é feito unicamente de sons – ouço. encolho-me contra a almofada. agonizo. suporto-me num quase-silêncio que me rompe os tímpanos e mutilo-me num negrume que me esconde o corpo dos próprios fantasmas.

 

ouço;

ouço orquestra. ouço hauser e a consciência a enlouquecer;

ouço datação. ouço paixão e coisas que já não sei como são;

ouço assombro. ouço asserção e palavras de papelão;

ouço lamentos. ouço frustração e o pulmão a pedir perdão;

ouço amigos. ouço tiaguinho e o mundo todo em pequenino;

ouço zé. ouço herói e a separação é o que dói;

ouço bola. ouço piões que nada sabem de ladrões;

ouço carrejões. ouço camiões com frutas de outras regiões;

ouço encarnado. ouço golão e a luz é lampião;

ouço crenças. ouço capelões e a religião aos trambolhões;  

ouço sombras. ouço lázaro e a luz voa como pássaro;

 

ouço amo-te. ouço sim e o caminho é valentim;

ouço prenha. ouço destino e a cabeça ficou sem tino;

ouço pai. ouço amor e o corpo todo num tremor;  

ouço moda. ouço glória e a roda é vitória;  

ouço coração. ouço vida e a alegria revivida;

ouço papá. ouço medo e a morte será cedo;

ouço saudade. ouço luanda e a luta não abranda; 

ouço caçula. ouço festança e tudo agora é mudança;

ouço horror. ouço despedidas e gritos que são partidas;

ouço terra. ouço dor […];

 

ouço ua. ouço ações em cinco gerações; 

ouço mutação. ouço destempo e a certeza num contratempo;

ouço livro. ouço glosas e leituras graciosas;

ouço braços. ouço labuta e a fábrica chalupa;

ouço aflição. ouço injustiça e o sino enfermiça;

ouço prantos. ouço sentenças e abraços de malquerenças;

ouço mandarins. ouço pasquins e o fim dos jardins;

ouço anjos. ouço querubins e tudo a valer xelins;

ouço liberdade. ouço gaivotas e o sustento às cambalhotas;

ouço mãos. ouço prosa e a pena pesarosa;

 

ouço amigo. ouço coração e abraço com gratidão;  

ouço aterro. ouço odor e os dias com calor;

ouço boda. ouço prata e a vida sempre grata;

ouço diversão. ouço exaltação e fé na religião;  

ouço formatura. ouço orgulho com postura;  

ouço nora. ouço casamento;  

ouço netos;

ouço escrita;  

ouço luta;

ouço traição;

ouço batalha;

ouço fim;

ouço mãe;

ouço para sempre;

ouço terra. ouço dor […];

 

ouço a alma e a paz;

ouço as gaivotas e o mar;

ouço os filhos com as noras;

ouço um louvor para o meu amor;

ouço um abraço a apertar e a saudade a chorar;

ouço o sombrio a chegar e o perdão a estoirar;

ouço o corpo a perecer;

ouço;

ouço;

ouço o que não quero ouvir.

 

ouço porque ouvidos que me nasceram no peito se abrem como as magnólias em abril – ouço o tempo que faz na rua e também ouço o tempo que faz dentro de mim – ouço o que me dizem e o que me nasce na cabeça – sou prisioneiro do que ouço – ouço [vos] mesmo que o silêncio se eternize

 


23/07/2019

in - paradoxo de teseu II






vivo mesmo sabendo que não sou nada. mesmo sabendo que poderia ter sido outra coisa que não nada. se de arte o corpo se tomasse



22/07/2019

se eu pudesse imitar brecht



marc chagall



se eu pudesse imitar brecht

escrevia um poema

um poema migrante

para levar à humanidade

a ordem para acabar com bandeiras

e rime com fronteiras

 

se eu pudesse imitar brecht

escrevia um poema

um poema de amor

para levar às nações

a ordem para acabar com tudo o que é armar

e rime com matar

 

se eu pudesse imitar brecht

escrevia um poema

um poema alinhado

e no controlo da métrica

a ordem para acabar com tudo o que não é cravo

e rime com escravo

 

se pudesse imitar brecht

escrevia um poema

um poema mensagem

para levar a bruxelas

a ordem para acabar com tudo que é conflitual

e rime com desigual

 

se eu pudesse imitar brecht

escrevia um poema

um poema sem parar

que fizesse das palavras

a ordem para acabar com tudo o que não é paz. pão e habitação

e rime com exclusão

 

se pudesse imitar brecht

escrevia um poema

um poema voto

que levasse para as ruas

a ordem para acabar com tudo o que é desflorestação

e rime com devastação

 

se pudesse imitar brecht

escrevia um poema

um poema de ira

que levasse ao parlamento

a ordem para acabar com tudo o que é ozono

e rime com abandono

 

se eu pudesse imitar brecht

escrevia um poema

um poema trovador

que passasse de boca em boca

a ordem para acabar com tudo o que não é fraterno

e rime com inferno

 

se eu pudesse imitar brecht

escrevia um poema

um poema de caneta

que levasse no aparo

a ordem para acabar com a iliteracia

e rime com sabedoria

 

se eu pudesse imitar brecht

escrevia um poema

um poema gaivota

que levasse no peito

a ordem para que se faça política com verdade

e rime com liberdade

 

se eu pudesse imitar brecht

 

poema – sampaio rego

 

 

 

“há homens que lutam um dia. e são bons"

 

Há homens que lutam um dia, e são bons;

Há outros que lutam um ano, e são melhores;

Há aqueles que lutam muitos anos, e são muito bons;

Porém há os que lutam toda a vida

Estes são os imprescindíveis”

 

poema – bertolt recht 



15/07/2019

cachos de mim


gabriella c. ribeiro


a minha vida é como um cacho de uvas: cada uva uma coisa. uma coisa vazia. ou com azia. ou com o medo pendurado num segredo. ou mistérios quase sempre sérios. ou paixão em combustão. ou silêncios que são serviços. ou fé em abraços que são embaraços. ou brado que nem lembra o próprio diabo. ou idiota que se fez gaivota.  mas. todas juntas. fazem um cacho de coisas que depois de espremidas dá uma vida fodida

 

09/07/2019

epístola de um não crente III



pintura - joão zeferino da costa



deus:

procurei-te na tua casa. mas não te encontrei. depois. procurei-te nas ruas. nos becos. nas montanhas. nos pássaros. nas flores. no pão e por último. procurei-te na minha própria casa… e mesmo aí não te encontrei – desisti – mentiste-me. não estás em todo o lado como me fizeste crer – é assim que se perdem os amigos

 

p. s. – oitavo mandamento da lei de deus: não dirás falso testemunho



06/07/2019

bertolt brecht - de que serve a bondade



imagem google



[para os meus filhos porque sempre os desejei mesmo antes de terem nascido]





De que Serve a Bondade 1

De que serve a bondade
Quando os bondosos são logo abatidos, ou são abatidos
Aqueles para quem foram bondosos?

De que serve a liberdade
Quando os livres têm que viver entre os não-livres?

De que serve a razão
Quando só a sem-razão arranja a comida de que cada um precisa?

2

Em vez de serdes só bondosos, esforçai-vos
Por criar uma situação que torne possível a bondade, e melhor;
A faça supérflua!

Em vez de serdes só livres, esforçai-vos
Por criar uma situação que a todos liberte
E também o amor da liberdade
Faça supérfluo!

Em vez de serdes só razoáveis, esforçai-vos
Por criar uma situação que faça da sem-razão dos indivíduos
Um mau negócio!



02/07/2019

epístola de um não crente II



pintura - michelangelo


deus:

faço de tudo para não voltar a acreditar e tu fazes tão pouco para que eu volte a acreditar



in - paradoxe de teseu - 1







gostava de imaginar um corpo inteiro de certezas. gostava que abril fosse o mês certo para quem quer nascer. gostava que todos os úteros se emprenhassem de flores e pássaros e mesmo que os rios não cheguem ao mar com o sol em vénus que o pôr-do-sol me conforte quando o corpo se fizer inverno