31/10/2019
manuel de barros
22/10/2019
eu. a dama e a celulite
em contramão. uma dama rebuliça e enérgica
dirige-se para mim – acerto-lhe com os olhos. e interrogo-me: será que vou ter
problemas. a esta velocidade vai-se-me enfaixar no pescoço – cabelo loiro
oxigenado. levantado à frente. face redonda e rosada. não sei se é cor natural
ou se está apenas afogueada pela velocidade que imprime ao andamento. uma
pochete louis vitton contrafacionada num bairro chinês de pequim. acompanha o
movimento das pernas numa desordem perigosa. ainda vai dar com o adereço na
cabeça de algum transeunte – botas douradas. furadas com estilização. sobem-lhe
pela perna com ganas de chegar o mais longe possível – dois dedos acima de uma
rótula rombuda e três abaixo da cintura. uma minissaia branca vestida com
desprezo. a fazer sobressair uma cicatriz mal-arrumada no umbigo. mascarada de
importância com piercings-diamante falso de quinze quilates – confesso que
fiquei com a ideia de que a saia era apenas um adorno para desviar as atenções
do umbigo – olhos redondos. claros. a contrastar com uma pintura excêntrica. um
negro que não era luto. balançava o corpo numa agitação perigosa para os dois
enormes seios amarrotados pela licra preta de uma camisola de alças – confesso
que por momentos entrei em pânico. a aproximação apresentava-se desatenta.
descuidada. desnorteada. e decididamente em excesso de velocidade – tinha que
evitar a todo o custo o embate – já não tenho condições para choques com
viaturas que transportam matérias perigosas – cerrei os dentes e preparei-me
para a fusão dos corpos – quando pensei que o embate era inevitável. a dama.
num movimento de toureio. atira com as ancas para um lado. e sai com o tronco pelo
outro – foi tudo tão rápido que comecei à procura da bandarilha espetada no
corpo – felizmente tudo não passou de excitação – olhei para trás e ainda não
recuperado percebi que a minha alucinação se deveu a uma mini saia comprada nas
galerias lafayette de paris. encandeou-me. cegou-me. roubou-me o norte e mesmo
numa excitante desordem mental. percebi de imediato que me tinha perdido nos adereços.
a testosterona invadiu-me os neurónios. começou a descer-me pelas vértebras. comecei
a suar em bica e quando dei conta estava com a dama em pecado. em pensamento. mesmo
à minha frente – era muita mulher para mim. era muita curva e contracurva. era
um pecado quase mortal. deus. e a minha companheira. nunca me perdoariam um
pecado com esta dimensão – desorientado. fiquei sem saber se seria melhor
atirar-me para uma valeta ou aceitar o embate como inevitável e preparar-me
para as consequências – era impossível ficar indiferente às propriedades naturais.
penso eu. desta excêntrica dama – deitei os olhos ao chão. arrependi-me. voltei
a olhar. deitei novamente os olhos ao chão. voltei a arrepender-me. voltei com
os olhos para o chão. e foi então que. surpreendentemente. a dama me dirigiu a
palavra: estás a olhar para onde – surpreendido. envergonhado e embaraçado
respondi: estava a olhar para a celulite. isso não está nada bem. e não condiz
com a minissaia – e assim. numa manhã de quarta-feira nos cruzámo-nos numa
eternidade de tempo: eu tão cedo não vou esquecer esta dama e a dama vai comprar
todos
18/10/2019
deambulações noturnas LXII
escrever:
à desonra do erro. ao medo do julgamento – cada leitura uma sentença. e para
cada sentença. um castigo – imerecido?
11/10/2019
fósforo
escrevo. escrevo e existo para logo desaparecer
como desaparece o fósforo em combustão – a palavra é um amor súbito. uma única
chama intensa – depois. como se tudo não passasse de um caso. tudo
esmorece com a leitura – no chão. como que a dizer que afinal a palavra não
é para durar. o pauzinho carbonizado aduba a terra. onde um dia.
quem sabe. há de nascer uma flor qualquer – paz ao escritor que se queima
para iluminar
09/10/2019
07/10/2019
talvez
talvez esteja louco. mas às vezes acredito que estou sempre
num lugar onde nunca consigo chegar – se não estou louco. então. sou a vontade
de um deus. ou de um génio. ou de uma peça de um xadrez estranha. ou até quem
sabe. um caminho tortuoso até chegar a um lugar que ainda não sei se existe. ou
sou apenas uma coisa insignificante. sem valor. prostrado no chão da feira da
ladra – se eu soubesse que isto terminaria assim. talvez tivesse amado uma
boneca de porcelana. só para não ter que me envergonhar. para não ter que
encontrar nenhuma palavra que me absolvesse de ter nascido assim. louco – mas
se nasci louco como penso. porque raio continuo a gostar de mim. mesmo quando
procuro chegar ao que nunca alcanço – não sei. se soubesse possivelmente era
dono de uma torre de babel. de um cavalo de corrida. de dezassete gaivotas. e de
uma cama que me aceitasse quando sonho
03/10/2019
eu. o che e a revolução
com o sol de volta renasce a manhã – ergo-me das
trevas. espreguiço-me. chego-me à janela. olho o céu como quem quer medir a
distância entre o chão e os milagres. sorrio… e por ali fico a existir sem
querer saber nada do que dizem os astros para o dia de hoje – apetece-me
unicamente viver. aceitar o destino e respirar o mundo – adoro estas manhãs em
que olho para o futuro sem me preocupar com o destino e. tal como disse nelson
mandela. “Seja qual for o Deus, eu sou mestre do meu destino e capitão da minha
alma.” – hoje. também eu me sinto mestre e capitão da minha alma – a imensidão
do céu azul liberdade de tomie ohtake disputa a luz com o castanho infantil dos
meus olhos. atrás de mim a juventude e a cama por fazer. para a frente. o que
me sobrou dos sonhos revolucionários e o fim das camas por fazer – a linha do
horizonte é sempre ténue e dolorosa para quem acaba de acordar para o erro.
para o sacrifício. para a resiliência e para o combate diário corpo a corpo.
não fosse eu um sobrevivente da revolução de abril – olho o fim do mundo que os
meus olhos alcançam e digo para mim que estou a acordar: se o mundo é assim tão
enorme como dizem. porque será que me sinto sempre tão apertado. tão acanhado.
a sufocar. como se o céu a todo o momento me pudesse cair em cima da cabeça –
agora percebo bem o medo do obelix. também ele andava sempre apavorado que “le
ciel lui tombe sur la tête” – não nasci nem vivo em gália e também sinto que o
céu me pode cair a todo o momento sobre a cabeça – sorrio num jeito de deixa andar.
hoje não me quero aborrecer. afinal o dia até está bonito – sei e sinto que
mereço este dia – para me despedir deste céu que me guarda o infinito.
espreguiço-me até tocar com as pontas dos dedos nas fronteiras do mundo e parto
em direção ao polibã a cantarolar grândola vila morena. do nosso amado zeca
afonso – atiro-me para debaixo da água “muy caliente”. digo uma dúzia de
palavrões e reafirmo: fascismo nunca mais.
o povo é quem mais ordena – eu sou esse povo – lavo-me dos pesadelos da
noite e prometo a mim mesmo enfrentar o meu destino com briga. “é melhor morrer
pelo fogo. em combate. a morrer em casa. pela fome” [fidel castro] – enrolo-me
num toalhão estampado com um cravo vermelho de abril. dou duas lufadas de bafo
quente para o espelho e desapareço – às vezes não me suporto. mas não é o caso
de hoje – limpo-o com a ponta da toalha e dou comigo a brilhar. a sorrir e com
a barba a dançar de um lado para o outro – é a minha barba revolucionária da
manhã. um pelo virado à esquerda e outro à anarquia – um homem lavado é sempre
bonito – sinto-me enorme. poderoso e pergunto-me: será que é hoje o dia certo
para vestir a t-shirt do che guevara – penso duas vezes. olho para mim
novamente… e. tudo como dantes: sorridente. barbudo. enorme e poderoso – com
convicção digo para o gajo do espelho: é hoje que vais vestir o raio da t-shirt
– sei muito bem o que vale uma revolução. já vivi as suas mentiras. paradoxos e
promessas quebradas – a democracia chegou à minha adolescência exatamente como
chegavam os propagandistas às romarias: carregados de quinquilharias para
vender ao preço da uva mijona – eram os famosíssimos vendedores da banha da
cobra e na verdade. tudo o que impingiam. era muito mais do que produtos de
baixa qualidade. era magia. era o
ressurgimento do milagre da multiplicação no mundo contemporâneo. um truque de
ilusionismo onde uma nota dava lugar a um saco cheio de nada – tal como os
políticos - a ladainha era sempre a mesma. com uma voz firme e uma oratória treinada.
tomava conta da vontade do cliente que. como serpente hipnotizada. ficava imóvel
e rendido. a sua única motivação era deitar a mão às pechinchas – estes homens
subiam para cima das suas caminhetas. levantavam o tolde de lona e logo
apareciam umas quantas “rumas” de cobertores. bem empilhados. com as cores
organizadas num degradê harmonioso e mais outros mil e tantos produtos que
ninguém sabia para que servia cada um deles – ajustavam à boca um micro preso
ao peito. protegiam-no com um lenço de mão para absorver os perdigotos. davam
três pancadinhas e começavam os testes: um dois três. um dois três. um dois
três quatro cinco… seis mil cobertores vendidos. e logo de seguida. para não
perder nenhum romeiro. numa voz poderosa a imitar os primeiros locutores da
rádio. começava a propagandear os seus produtos com a arte dos grandes mestres
da oratória – eram homens cansativos. não se calavam um único segundo e o
romeiro nem tempo tinha para se questionar porque estava ali estacado. e quando
despertasse do encantamento. estava sem a nota de mouzinho da silveira – o
propagandista era um homem astuto e matreiro. e para que os romeiros se
sentissem mais tranquilos e confiantes. apontava-lhes o dedo em riste.
percorria-os um a um. agora numa locução meiga e doce e. benzia-se com um olho
na fé e outro nas notas de quinhentos – comunicar com doçura era a sua arma
secreta para apanhar na sua teia comunicacional os clientes mais difíceis e desconfiados
– era chegado o momento para juntar à doçura uma laracha inofensiva e quebrar
pelo humor o gelo dos mais resistentes:
-- estamos nesta romaria
também a pedido do seu santo padroeiro… não fiquem espantados! sim!… é verdade…
santo também tem as suas necessidades – o nosso querido s. judas tadeu. mais
uma vez. aproveitará a nossa presença nesta gloriosíssima celebração em ação de
graças para suprimir muitas das suas necessidades – podem não acreditar. mas os
santos também têm frio – por isso é que aqui estamos todos mais uma vez. para
agradecer. para louvar e proclamar a obra salvífica de deus. que protegidos
pela sua imensa bondade nos permite. mais um ano. estarmos neste convívio
religioso. alegrados pelos seus feitos e sempre fiéis ao seu chamamento
misericordioso – mais uma vez obrigado meu deus por poder tirar o frio aos teus
fiéis. amém
o suor caía-lhe em bica ensopando
a camisa em nome da paixão. de arte e do sacrifício – tanto palavreado. tanta
gesticulação. tanta imaginação só para vender um cobertor – este sujeito não
parava um minuto. talvez use pilhas duracel –
-- mas como vos dizia. este é
também o momento para que o nosso querido s. judas tadeu. possa adquirir os
nossos fantásticos produtos. que. como sabem. são os mais baixos do universo –
já não há milagre que faça baixar o preço destes maravilhosos produtos – só
deus e eu sabemos que este é o preço justo para a excelência do que trazemos
nesta carrinha que é o nosso ganha pão de quatro rodas – vejam só -apontando
para os cobertores- podem dar a volta ao mundo duas vezes que. não encontrarão
cobertores com esta qualidade – saibam que com um cobertor fabricado com esta
magnifica lã nunca mais terão que ter medo às frentes frias que nos chegam da
sibéria – o senhor sabe que falo verdade e porque sou um homem grato aos seus
desígnios a “minha boca anunciará todos os dias vossa justiça e vossas graças
incontáveis” (Sl 70,14-15) amém – este cobertor será a minha ruína – senhores e
senhoras. o que vos peço por este fantástico cobertor será muito menos do que
um automóvel. um barco. um avião. uma viagem ao brasil. um jantar no pedro dos
leitões… este cobertor… este cobertor vai custar a módica quantia de…
e a multidão em desordem
emocional comprime-se para ficar o mais perto possível do mestre das vendas – é
importante ver bem esse incrível cobertor que desafia os frios gélidos
siberianos – e lá continuava com a ladainha sem anunciar o preço do cobertor –
era assim que prendia a atenção dos romeiros
-- senhoras e senhores.
meninas e meninos casadoiros. vejam só a qualidade deste cobertor de pura lã
virgem – com este cobertor vindo diretamente das conceituadíssimas fábricas da
serra da estrela. os vossos invernos nunca mais serão enregelados – adeus frio para
sempre. e atenção senhoras e senhores!... para levarem este fantástico e único
cobertor para vossa casa… sim. vocês vão querer levar o cobertor para vossa
casa. não vai pagar mil escudos. não vai pagar novecentos. não vai pagar
oitocentos e seiscentos também não. vai pagar uma miserável nota de quinhentos
escudos – por apenas quinhentos escudos terá no seu inverno o insuportável
calor deste mês de agosto. será como se vivessem na ilha selvagem das caraíbas.
como se embrulhassem num casaco de vison – uma pechincha… e mesmo que viva mais
duzentos anos. nunca mais terá a oportunidade de comprar um cobertor com esta
qualidade a este miserável preço de uma nota de quinhentos paus
e sem deixar esmorecer o
desassossego numa multidão que não parava de aumentar. de se empurrar. o mestre
das vendas embriagado com a exaltação dos romeiros não parava de pinchar de um
lado para o outro. de gesticular. como se os braços a todo o momento quisessem desprender-se
do corpo – já pouco espaço restava à sua volta. tinha captado. definitivamente.
a atenção dos romeiros – este homem saltava quilómetros inteiros em cima da sua
caminheta. ninguém ficava indiferente à sua resistência física: pernas. braços.
olhos e a língua em perpétuo movimento – vender era o seu sustento. dava tudo o
que tinha. e até o pouco que já não tinha. nada nem ninguém o desalentava e. se
sentisse desânimo num ou outro possível comprador. a solução era falar-lhe
olhos nos olhos – e ele fazia-o. arregalava os olhos de tal forma que era como
se dissesse: sair daqui sem o cobertor é pecado – o suor caia-lhe testa abaixo.
a luta era corpo a corpo. romeiro a romeiro. cada cobertor vendido era um dia
de sustento
-- e atenção caríssimos
senhoras e senhores. saibam que com o cobertor ainda levam uma faca de cozinha
em aço inox mil e noventa e cinco. usada pelos famosos ninjas na china antiga.
e ainda… e ainda… mais uma dúzia de copos em cristal da mongólia. e mais… hoje
estou mãos-largas… e só porque estou aqui nesta terra abençoada. e porque estou
tocado pela emoção… quero que saibam que com este maravilhoso cobertor… levam
esta fantástica faca. estes deslumbrantes copos. e ainda. e ainda… e ainda…
mais um saca rolhas com um design singular do excêntrico magasin printemps
parisiense – hoje é o vosso dia de sorte
e uma série de milagres extra
pela mesma módica quantia de quinhentos escudos – e o povinho romeiro ali de
volta a babar. inquieto. a aconchegar-se o mais à frente possível. não fosse
acabar a mercadoria – todos querem ser os primeiros a receber o cobertor da
serra da estrela e todas as fantásticas quinquilharias pela insignificância de
uma nota de quinhentos escudos – é um grande negócio. o propagandista ganha a
vida e o romeiro leva para casa a ilusão de que fez o negócio da sua vida. e
mesmo não necessitando de nada do que mercou. sente que foi uma pechincha de
ocasião que nunca mais se voltará a repetir – todos felizes: o propagandista. o
povinho e também o santo padroeiro. afinal de contas é mais um milagre registado
no seu livro de milagres. acabando por subir uns pontos no ranking dos santos
e. obviamente. agradar a deus – ele sabe
que ninguém gosta mais de milagres do que deus em pessoa – e quando anunciava o
começo da distribuição dos produtos não se cansava de avisar. em voz ainda mais
encorpada. que a graça era finita e o stock sagrado era limitado – a agitação
era total. empurrões e mais empurrões e as notas de quinhentos no ar em preces
desesperadas – era o black friday dos nossos dias
-- e mais um conjunto para
aquele cavalheiro. e outro para esta menina casadoira e ainda mais outra para
esta bonita família. e esta senhora quer dois cobertores e quem levar dois
cobertores não leva uma faca. leva duas. não leva um saca-rolhas. mas sim dois
e o homem a desfazer-se em
simpatia e as notas de quinhentos em pilha. pousadas num cobertor com um
paralelepípedo em cima não fosse o vento armar-se em democrata e espalhar a
fortuna pelos menos abastados – foi mais ou menos assim que chegou a democracia
ao meu país. uns quantos políticos subiram para cima do palanque e começaram a
vender-nos a banha da cobra gesticulando não só os braços. mas também as
idiotices – e o zé povo a viver um momento único e histórico. eufórico. inculto.
desprevenido e sem malícia para perceber que estava a lidar não com
propagandistas. mas com charlatões – esta raça escabrosa de políticos
camaleónicos não troca cobertores por notas de quinhentos. trocava votos por cadeiras
numa casa que fingem ser da democracia – mas não. não é a casa do povo nem de
coisa nenhuma. é o esconderijo
legalizado de um grupo de malfeitores que a coberto do voto democrático
duvidoso sonegam o erário público com a maior hipocrisia e desfaçatez. tornando
os pobres mais pobres e os ricos ainda mais ricos e poderosos – é a toca onde
duzentos e trinta bandidos. sem escrúpulos. ano após ano. nos afogam em mentiras
e sangram a esperança – infelizmente ainda não inventaram uma nova ordem
política mais competente e justa – temos que nos aguentar com estes
malfazentes. temos que votar nos menos maus. nos que nos roubam com mais discrição
e revolta – e o povo iludido na revolução gritava palavras de ordem como se
também eles tivessem derrubado a ditadura – a nossa democracia acabou com mais
de mil privilégios. mas depressa criou outros que. de tão abundantes.
perderam-se na contagem – o mundo das
revoluções está repleto de contradições – uma sociedade livre é uma sociedade
desigual. injusta e discriminatória – mais liberdade é igual a mais horror nas
desigualdades – e é assim que aparecem os desarreigados. os inconformados. os
que precisam de revoluções diárias para aceitar as suas contradições – a
revolução de hoje retificará os erros da revolução de ontem – eu vivo numa
revolução contínua. também eu retifico hoje os erros de ontem e. amanhã. noutra
revolução. já sei que retificarei os de hoje – liberdade. fraternidade e
igualdade são conceitos sustentados pela retórica política porque em boa
verdade nenhuma destas palavras sobreviveria ao produto final das revoluções –
mas como diz nelson mandela: “não existe nenhum passeio fácil para a liberdade
em lado nenhum, e muitos de nós teremos que atravessar o vale da sombra da
morte vezes sem conta até que consigamos atingir o cume da montanha dos nossos
desejos” – é por isso que eu vivo num mundo de revoluções. o meu vale da morte
é diário. e a luta para o ultrapassar é o meu grito de guerra – mas o
importante é que mesmo nesta democracia imperfeita o meu país ficou mais justo
depois da revolução de abril – o meu lamento vai apenas para o tipo de gentalha
que tem comandado o destino desta fantástica nação de gente boa e bonita – na
verdade. os políticos que nos impingiram a democracia não foram nada diferentes
dos propagandistas da minha adolescência. prometeram-nos um cobertor e não sei
mais quantas coisas que depressa percebemos que não correspondia à verdade –
mas quem for sério não pode nunca dizer que a sua vida não melhorou depois da
revolução de abril. melhorou e muito – estou imensamente grato a todos aqueles
que de uma maneira ou de outra contribuíram para que aquele movimento das
forças armadas rompesse naquela madrugada de abril – confesso que ao fim destes
anos todos sou ainda um resistente de abril. faço parte do povo unido jamais
será vencido; “da força. força. companheiro vasco. nós seremos a muralha de
aço; do trabalho dá pão. repressão não; da terra a quem a trabalha; medo nunca
mais; da paz. pão. habitação; e viva a liberdade e o MFA [movimento das forças
armadas]” esse punho de abril que rompeu a madrugada – e eu a crescer com a
velocidade dos cometas. feliz. como se as revoluções existissem para sempre.
como se a adolescência se eternizasse em manifestações e reivindicações e o
corpo nunca parasse de gritar: fascismo nunca mais – mas “adelante adelante”. que
a saudade também mata – amarro nas jeans e enfio-as até que nada reste das
pernas de abril. aperto o fecho e o botão numa correria. enfio a t-shirt do
che. calço uns calcantes tipo charlie chaplin. viro-me para a porta no mundo
que sustenta os astros e questiono-me: vais a correr ou levas o que te pesa
pela mão? saio a correr. corro como se a revolução me perseguisse. olho o céu
novamente. o azul já não é de liberdade e as nuvens ficaram mais pesadas. mais
nuvens do que nunca – será que o mau tempo está por aí a chegar? talvez não
seja má ideia resgatar o guarda-chuva do bengaleiro – volto atrás. contrariado.
nas revoluções a chuva não molha. reabro a porta da minha única casa. olho para
dentro à minha procura e só encontro ausência: o mais certo é ter ido para a
concentração da CGTP [confederação geral dos trabalhadores portugueses] na
avenida central – pego no guarda-chuva do 007 não vá a chuva trazer com ela um
fascista tresloucado. na gabardina do detetive colombo. nunca se sabe se a PIDE
[polícia internacional e de defesa do estado] ainda está operacional. no chapéu e bengala do poirrot. a vida sorri
sempre para quem usa a massa cinzenta. e por último. a lupa do holmes.
envelhecer obriga-nos a ver tudo ao pormenor – e fui pelo mundo fora como se
tivesse acabado de me tornar num revolucionário da LUAR [liga de unidade de
acção popular] – passa por mim. em sentido contrário o zé povinho com um
dinossauro político preso a um cordel. um pato bravo a fazer quá quá e um
elefante branco num show de trapézio. equilibra-se numa só pata em cima de uma
cigarra que não para de gemer. o peso um dia destes parte-lhe a coluna – atrás.
em passo lento e de vara na mão. o destino a tocar tudo para o dia seguinte vai
gritando: sem cultura não há caminho. nem liberdade – ninguém se mete com o
destino. mas eu sou um revolucionário de abril e trago o che ao peito. sem medo
disse-lhe: estás a caminhar para o lado errado. a cultura com liberdade é para
o lado oposto – olhou-me com ar de poucos amigos. aproximou-se. sacou de uma
faca de ponta e mola e encostou-ma ao pescoço. e numa voz rouca-intranquila.
disse-me: cresce. vai-te foder – sorri e disse-lhe: outra vez tu?!!!... – virei
as costas. olhei para a t-shirt e pensei: sou mesmo um revolucionário não só de
abril. mas de todos os meses – e segui rua abaixo cantarolando "hasta
siempre comandante che. hasta sempre comandante che" – e lá foi o destino
à sua vida e eu à minha – agostinho da silva dizia que a liberdade só existe
quando todos os nossos atos concordam com todo o nosso pensamento – não. minha
vida nunca foi um reflexo pleno do meu pensamento. mas uma coisa sei. sempre
escolhi o caminho que pisei e sempre em total liberdade – “hasta siempre”