nota de autor
este texto nasceu do silêncio. escrevi-o para
aprender a despedir-me de mim e para agradecer aos que me deram forma – não é
um funeral: é uma devolução. um regresso ao princípio. um gesto de amor pelo
que fica
naquele momento todos os corpos estavam hirtos. todos
menos eu e o padre – eu já só era corpo-silêncio. deitado com o que restava de
mim – o padre de joelhos. em vénia. naquele friozinho divino rezava ao sagrado.
enquanto as mãos se entrelaçavam em orações de salvação – hoje é o
dia em que me despeço da vida. quer dizer. para os que me rodeiam já me
despedi. mas não sabem que ainda estou naquele limbo. o escuro e as sombras –
as mãos emparelhadas ao centro de mim ajustam o fato ao correr do corpo –
camisa branca engomada presa ao nó de gravata que me sufoca. sapato negro. e um
terço a contar os rosários da vida – e eu a ver os santos pendurados nos
pedestais – tantos e todos a olhar para o céu – a igreja que me recebe como
último adeus está cansada destas despedidas. todos os humanos se despedem. não
importa o que foram ou o que fizeram. tudo vale o mesmo — até o que fingimos
esquecer – e aqui fico a olhar o teto numa subtileza que os olhos não temem – e
eu ali. refletido naqueles que me velam. entre o altar e o que já não sou. a
olhar para cristo – e a dizer baixinho: tem uma coroa igual à minha – e os
santos a murmurar entre dentes – os bancos corridos de sicupira percorrem
a igreja em dois lados. cansados de tanto corpo que não regressou – a meio o
corredor preso a uma carpete vermelha foge da porta em direção ao sacrário.
entra no conopeu. e enfrenta o corpo do senhor numa hóstia alumiada por duas
velas sem dúvidas do que ali existe – só não sei se os santos olham para
algum defunto – talvez escolham uns e não outros por capricho. ou pelas esmolas
– não creio que se interessem muito pelo que fizemos em vida. ou então pelo que
tentamos alcançar – as velas ardem para nos anunciar o inferno. em cada chama
um pecado a gritar salvação. e um santo a olhar de soslaio – está meia casa.
não tenho muitos admiradores. nem muitos amigos. mas os que aqui estão deram-me
imenso trabalho. por isso sinto-me confortável. aceito a meia igreja como se
fosse uma multidão – não sei tudo o que deixei para trás. mas sei que estou
aqui. e sei que a morte é um momento roubado à vida. enquanto o manustérgio e galheteiros
correm para o altar nas mãos do sacristão – é preciso despachar o defunto
– só cristo se mantinha impávido. braços abertos. pregados a uma cruz que
bem podia ser a minha – afinal somos cúmplices um do outro desde a catequese –
enquanto ele se demorava nos seus mistérios. eu saí à minha procura – agora
sempre que olho para ele fico sem saber o que lhe dizer – talvez me esteja a
tentar perguntar: está aqui a fazer o quê? sempre o conheci naquela posição.
imaginava que estava assim para poder abraçar. mas não – nasceu assim. e mesmo
que quisesse fechar os braços não seria capaz – é a forma de se equilibrar nos
humanos. suspenso num arame que ninguém vê – eu também não podia
mudar – a estola avança primeiro que o padre. mãos em prece e o cíngulo
sem saber se anda para a frente ou para trás – o missal marca a
abertura para o fim – fez-se um silêncio de morte – o padre virado de costas
para cristo. remoía baixinho o silêncio – não sei se por mim ou se pelos santos
olharem para o céu – não sei há quanto tempo estou aqui. sei apenas que ainda
sou este vento fininho preso a mim – já não consigo ver nada do caminho
percorrido – só tenho a porta como destino – mas que importa o que está
para trás. se não lhe posso tocar – a missa de corpo presente prossegue como se
houvesse muito para contar – as palavras são o que são – mas algumas ainda me
incomodam – obrigam-me a cerrar os olhos – ninguém ouve nada num sermão de
despedida – os santos não lhe ligam. não tiram os olhos do
além. mas também não posso estranhar. sempre foram assim. pelo menos
comigo – nem são judas tadeu. o santo das causas impossíveis. me deu
ouvidos – a sineta do altar estremece o silêncio – o corpo de cristo é levado
às alturas – e eu à procura de uma esmola para a volta do sacristão – a
putrefação é o meu último aroma – o que sei é que não estou só nesta despedida
– leva-me o silêncio – mas não posso falar do que me sustém antes de falar
de mim – eu sou a família. e todos são apenas um – foi nela que procurei
um lugar para chegar – foi com ela que fiz da terra estrada. da voz rugido. e
das mãos orações para eu escutar – foi por ela que me inventei para que o
amanhã chegasse mais cedo – para que vivessem sem medo – fiz de mim uma
autoestrada. e se nunca fui abençoado. foi porque nunca cheguei ao destino
– a família sempre foi o lugar onde a minha vida assentou. e carreguei-a
comigo com toda a minha honra e dignidade – e agora. que estou nesta antecâmara
do que fui e do que possa vir a ser. sei que. mesmo quando me perdi. permaneci
inteiro – e tudo o que me deram é o que sou – fiz de mim procura. e se nada me
encontrou. foi porque a chegada nunca foi o meu lugar – antes de seguir
para o silêncio do meu pai. tenho de falar da minha mãe – foi ela que me trouxe
ao mundo. foi ela que fez dos seus dias o gesto de esperar por mim – e quando o
grito chegou. eu fiquei para sempre perfume seu – é este perfume agora que
sufoca a putrefação – e nos dias em que me tornei passageiro do desacerto. com
o corpo esquecido da razão. foi a memória primeira. o sopro inicial. que me
levou de encontro à voz que havia dentro de mim – afinal era a tua – porque
para uma mãe um filho não cresce. somos sempre o seu segredo. e no abraço o
gesto mais puro de todo o universo – um homem só encontra o peso inteiro do seu
nome quando o céu se faz órfão – a minha mãe viveu até aos noventa e quatro
anos – tive tempo para lhe mostrar que. a memória do dia em que me deu um nome.
ainda hoje respira no que sou – onde nós estamos agora – porque ela estará
sempre onde eu estiver – não importa se estou morto ou não. ela vive em mim –
ela é a força que nos ligou em volta de uma missão – mesmo na ausência. sou-te
assim – tanto de nós a caber no silêncio. e logo que a porta se feche quero os
braços da minha mãe – porque no fim somos sempre o que deixamos – fui-lhe
abrigo. fui-lhe filho. e trouxe-lhe a minha família para que soubesse que tudo
o que sou lhe pertence – a minha vida inteira – e agora. nesta imobilidade
temporal. procuro apenas o gesto que me liga à vida – maria joão. os teus
lábios continuam pousados na memória de mim – e nesta alma sem corpo és ainda a
casa onde me abandono – és a claridade que guardo. a imagem que dói por saber
que nunca mais adormecerei nos teus cabelos – os momentos eternos vivem num
beijo que nos abraçou uma vida inteira – tu és o meu lar – uma cama de palavras
e viagens onde a maré sempre nos encontrou – sempre que te procurei. encontrei
onde repousar – sempre que te abracei. fiz-me um barco sem velas – foste o
círculo de fogo que me segurou até ao fim – em cada grito um avanço. em cada
ferida uma cura – e para cada história um recomeço para o fim – e se o vento me
obrigar a pedir perdão. eu o farei – à família que me ergueu. ao pai que me deu
as voltas que ainda carrego. à mãe que me trouxe ao mundo e me guardou até ao
fim. à mulher que me soube. e aos filhos que me continuam – e eu ali. a
ver tudo de baixo para cima. o padre às voltas ao que fui. atira incenso como quem
atira pedras – e os fantasmas perfilados pelas paredes. pendurados em
crucifixos tão nus como eu – e tudo à minha volta é um pedido para partir do
frio que me guarda – o nó da gravata. as mãos do meu pai a dar as
voltas da vida – nunca saí deste nó. foi a mão dele que me segurou sempre que
voava para a minha própria finitude – agora sei que vou embora. vou largar as
amarras – a noite segura-me por dentro. como se quisesse ficar comigo mais um
instante – e o silêncio do meu pai voltará a mostrar-me o mundo dele. e eu
voltarei a saber que sou mesmo seu filho. e do longe faremos palavras – e em
cada oração o sujeito seremos nós – agora vou para onde fores. caminharei contigo
até ao novo fim – e dir-te-ei no caminho o que sou. irás ficar surpreendido por
eu ser tanto de ti – e mesmo que me digas que nada importa. eu te direi que
gosto de ti assim como és – e mesmo que o nó se desate de vez. hoje sei que o
anjo que inventei para me guardar eras afinal tu – o segundo chega sempre antes
do minuto. sempre chegou. mas só agora entendo que é no segundo. e não no
minuto. que a vida decide tudo – já nada me resta de tempo – aqui nesta prisão
terrena fica o melhor de mim em liberdade – e eu. voarei até ao silêncio. e
quando nada em mim restar do que fez dor. daremos as mãos. e juntar-mo-emos à
mamã – todos sabemos que a vida é uma correria – ontem era eu. e agora já
não sei quem sou. nem sei para onde vou – não sei se estou triste ou feliz. sei
apenas que estou em descanso – a vida é uma trabalheira – a consciência nunca
nos é explicada. ocupa-nos a liberdade. e com o tempo percebemos que somos
quase apenas consciência – e sem fórmula matemática podemos dizer que a
consciência é só vida compilada em tempo – a consciência é a lanterna que nos
ilumina o caminho. às vezes é a palavra que não se ouve. ou a mão que nos
impede de cair – agora o que sei é que estarei morto assim que a porta do
sacrário se feche – o cálice da vida arrumado ao escuro. e o corpo de cristo à
porta a chamar pelo meu nome – sentirei pela última vez um friozinho a dizer
baixinho: olha para mim: está na hora da salvação – à porta anjos e querubins
afinam aleluias em trombetas que repetem sempre o mesmo refrão: os desígnios de
deus são insondáveis – e quando a minha noite eterna chegar serei um vagabundo
do universo – todos os sonhos serão terra. as dores barco à deriva. e a raiva
que me consumiu será fogo que se apaga para sempre – e no céu não serei nada.
nem pó. porque a pó só vão os bem-aventurados – mas se o vento me obrigar a
ajoelhar. eu ajoelharei. porque tudo o que levo é abril. e nos vossos beijos o
perfume de ser só o que me deram – vivi para fazer o certo no momento certo. e
sempre que falhei foi por ser apenas um de vós – este é o meu fim – no bolso à
esquerda. por cima do coração. a foto da minha companheira – continuarei a seu
lado para sempre – nas mãos. as dos meus filhos – seguirei de mãos dadas até ao
reencontro – no lado direito a família. os amigos que se tornaram família.
toda a que couber no seu interior – e o porta-estandarte são as mãos dos meus
pais – e agora. deixo-me ir – a porta tomará o seu lugar em definitivo – o fogo
curar-me-á de todos os desassossegos – e na boca. a última oração: não me
salvem. se não levar a memória dos afetos
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