nota de autor – este texto nasceu das minhas falhas
matinais e da teimosa mania de perder os chinelos – escrevi-o para aprender a
rir de mim e. quem sabe. ajudar outros a rirem-se de si – se há aqui alguma
verdade. é esta: ser ridículo também é uma forma de existir
nesse dia acordei cheio de falhas – perguntei-me o que me falta para
deixar de ser ridículo – sentei-me na
beira da cama. atirei os pés para o chão. olhei-me de cima a baixo. estava todo
– depois olhei o relógio. marcava as horas certas para me encontrar com o mundo
– voltei a olhar-me e comecei a contar as falhas que encontrei em mim – a
primeira que encontrei foi um botão do casaco de pijama desabotoado. e
interroguei-me. como fui capaz de me deitar assim? estou a perder o brio –
quando envelhecemos vamos perdendo tudo – abotoei-o. mais vale tarde do que
nunca – de seguida percebi que o telemóvel não estava a carregar. outra falha.
esta grave. o mundo que me serve vive no interior desse aparelho. o mais certo
é ficar isolado de mim a qualquer momento – quando pensei que as falhas
ficariam por ali. mais uma. faltava-me os chinelos de quarto – como poria os
pés no chão sem proteção? vou ter que ir para o banho em bicos de pés. mesmo
assim estou sujeito a ficar rendido. e um homem rendido é um homem diminuído –
só de pensar sinto o escroto a contrair – não há nada pior do que acordar com a
sensação de que sou um falhado – as manhãs são sempre intensas. um homem quando
dorme mal acorda devagarinho. às vezes. de tão devagarinho. fica sem saber se
se está a levantar ou a deitar – mas hoje estava acordado. não diria bem
acordado. mas no ponto. médio. como os bifes quando me perguntam se quero bem
ou mal passado – olhei em frente. que não era grande distância. a tocar-me os
olhos tinha um guarda-vestidos. e dentro dele uma vida inteira protegida – abri
a porta. de correr para os lados. comigo raramente alguma coisa anda para a
frente. e veio-me à memória um casaco que me levou à lapónia – não foi uma
grande viagem. culpa minha. quem se lembra de ir visitar o pai natal no mês de
agosto. só lá estavam as renas e o capataz que tomava conta delas – era um
sujeito mal humorado. barrigudo e com uma barba enorme. branca. nem se dignou a
responder às minhas perguntas – quem respondia era o cão. um husky siberiano. mas
não percebi o que me queria dizer – mas também o que importa. um cão só é o
melhor amigo do homem porque não fala a mesma língua dos humanos – e ali
fiquei. num estado de sonolência que comprometia o dia. a interrogar-me: onde
falhei. onde estão os chinelos do quarto? olhei para o interior da porta onde
guardo os dias que já me aconteceram. e ao lado do casaco um colete de sarja.
com os dentes marcados de um leão do serenguéti – não era um mau leão. estava
apenas aborrecido com o excesso de turistas na sua terra – acabei por ter
sorte. juntei-lhe uma pitada de coragem. uma lata de espinafres. e quando abriu
as mandibulas meti-lhe a mão pela boca dentro. bem até ao fundo. e virei-o do
avesso – foi uma viagem memorável. apanhei o avião para a tanzânia. e depois segui
para as planícies sem fim. no norte do país. em cima de um elefante-da-savana.
primo afastado do dumbo – as orelhas eram menos irrequietas e mais pequenas – mas
via-se que era da família – não foi uma viagem fácil. corri várias vezes
perigo. lutei com uma anaconda da américa do sul. mas já emigrada em áfrica há
muitos anos – aborreci-me também com um crocodilo. felizmente resolvi a
situação com diálogo – quando me apanhei no avião de volta fiquei numa alegria.
estas viagens são cada vez mais perigosas. não sei se é pelo buraco do ozono.
pelo aumento das temperaturas. mas os animais saíram do seu habitat e
misturaram-se com os humanos – claro que hoje já se começa a ouvir com
frequência no reino animal: diz-me com quem andas. eu te direi quem és – e com
razão. no dia em que ia embarcar para o meu país. estava um urso polar a chegar
com destino ao serenguéti. mas com aquele casaco de pelo não vai passar bem –
imagino o pobre coitado com o rabo metido num frappé de cerveja e um prato de
tremoços na mão – foi então que me voltei a perguntar: o que me falta para
deixar de ser ridículo? onde estão as minhas falhas? estava ainda ensonado. aborrecido por não
saber onde tinha deixado os chinelos de quarto. olhei para o relógio digital.
marcava uma hora que desconhecia. talvez fosse cedo demais para pensar. talvez ainda
fosse noite profunda. talvez me tivesse perdido num qualquer fuso horário. talvez
tivesse perdido greenwich. ou o juízo – para ser franco não quero saber. sei
que a porta da minha vida está aberta. e que toda a roupa no seu interior
encaixa nas minhas medidas. sou o reflexo das cores que usei – um homem não
pode acordar rápido. para acordar sem abrir os olhos era na adolescência. nessa
altura os sonhos penduravam-se nas pálpebras. eram tantos que nem as deixavam
abrir – agora já não é assim. há sempre um bico de papagaio a queixar-se do
colchão. o mau hálito preso a um filete de peixe do jantar do dia anterior. e o
chá de camomila para sossegar a alma. dar-lhe descanso ainda em vida. acaba por
dilatar a bexiga e mais cedo ou mais tarde vou ter de dormir com um urinol ao
pé da cama. porque enquanto procuro os chinelos arrisco-me a fazer xixi pelas
pernas abaixo – um homem nunca deveria envelhecer. antigamente sonhava ir ao
evereste. e no outro dia peguei na mochila e fui – toda a gente dizia que era
muito alto. mas nunca achei isso. era do tamanho dos meus sonhos – quando lá
cheguei. tirei uma manta de arraiolos da mochila. estendi-a no chão. sentei-me.
olhei para o futuro e perguntei a mim mesmo: o que vieste fazer ao teto do
mundo – nunca encontrei resposta que me satisfizesse. dei uma volta inteira
sobre mim. trezentos e sessenta graus. e nunca me vi em lado nenhum – foi então
que percebi que o melhor que fazemos é viver um dia de cada vez – levava comigo
uma sande de marmelada. igual à que comia na escola primária. juntei-lhe um
jarro de tinto verde carrascão. um pastel de nata. e no fim um café expresso
com adoçante por causa dos diabetes – ali fiquei. a olhar o mundo que tinha
deixado em baixo. e por muito que possamos subir. nunca deixaremos de levar
connosco as nossas origens – somos o que somos – e pior de tudo é que mesmo no
cimo do monte continuo sem saber onde deixei os chinelos – ainda bem que guardo
as botas de subir dificuldades dentro do armário – e por ali me
demorei a olhar para o que fui. nada de novo guardo naquele armário. tudo
dentro dele já foi usado – mas estou numa fase da vida que já não quero roupa
nova. quero-me a mim. por inteiro. quero-me a viver dentro de uma caixa de
burronas com mais de mil cores – e para cada dia em que perco os chinelos
pinto-me de uma cor que me faça existir como nunca fui – tenho duas vidas.
teria mais se tivesse tempo para as escrever. mas como hoje quero algo rápido.
como antigamente os telegramas – hoje deixo de ser ridículo. stop. amanhã
voltarei a ser o que sou. stop. cumprimentos – quero ser um telegrama que diga
pouca coisa mas que faça muita distância – quero ser astronauta. neil armstrong.
e poder dizer para mim. hoje é um pequeno passo sem chinelos. mas um passo
gigante descalço – quero ser jacques cousteau. construir um calypso. e navegar
por mim. descobrir o meu mundo silencioso. e colocar uma tabuleta no coração a
dizer: em construção. não faça barulho – quero ser pintor. edvard munch. e que
de dentro de mim saia um grito que se faça ouvir em todos aqueles que se sentem
ridículos. e se mesmo assim a surdez teimar em não ouvir. então que se levante
uma tempestade de areia e cubra o mundo de pó para que ninguém possa cuspir para o ar – quero ser
relojoeiro. com uma luneta no olho da precisão. a dar corda a rodinhas.
ponteirinhos e parafusinhos. mas se mesmo assim não der ao tempo uma razão para
eu continuar a existir. então que me marquem na testa um relógio de sol. e no
céu uma estrela polar. quero partir para chegar a horas de me reinventar sem
falhas – por último. e porque quero ser todas as profissões do mundo.
mas não domino a física quântica. nem sei viajar no tempo à velocidade da luz.
quero ser escritor. quero escrever-me numa história de humor. e mesmo que
ninguém ria por não me achar ridículo. quero que saibam. que em cada palavra
escrita há uma falha que invento em mim. não é por mal. mas preciso de ser
ridículo para escrever – estamos numa quadra especial. temos que ser solidários
com quem não é ridículo. por isso por momentos deixei de ser ridículo e nada
melhor que terminar com um poema de natal – não gosto de passar por esta quadra
sem deixar um apontamento de luz
a revolta das vacas
dez vacas entraram num supermercado
[perto de si]
ameaçaram o leiteiro
destruíram as bolas de queijo
e
e torturaram os ovos kinder
de seguida colocaram-se em fuga
num carro a alta velocidade
[testemunhas. sérias. afirmam ter
visto um pacote de leite magro ao volante de uma carrinha mimosa]
só escapou a margarina e os pais natal de chocolate
[estavam no frigorífico protegidos por
uma camada de frio]
e assim terminou a minha história. stop. os
chinelos ainda não apareceram. stop. mas se aparecerem. stop. que seja perto de
mim. stop. não estou para grandes viagens. stop. saudações ridículas. stop
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