1.
fazia frio
dentro de mim. foi a primeira vez que um frio assim me tocou. no entanto. o
corpo não reclamava agasalho – mas bem lá dentro. nas profundezas de mim mesmo.
senti tudo a gelar – estava irremediavelmente só. como sempre. tinha as mãos
metidas em bolsos fundos e vazios. apenas procurava em mim um pouco de calor.
algo aquecesse a alma – sempre procurei o que não existe. pelo menos em mim.
mas sou assim. nada posso fazer – já nos outros. vejo sempre bandos de pássaros
a voar rumo às temperaturas do sul. são pássaros fantásticos. cheios de certeza
e destino – nem sei o nome os seus nomes. mas vêm em bandos. com asas
carregadas de coisas. fragmentos do tempo. vão para lugares onde o horizonte é certo
– mas eu. aqui estou. andando sem rumo. à procura das minhas coisas. do meu
tempo. mas já perdi a conta ao meu tempo. ando de um lado para outro. sem rumo.
perdido dentro do meu próprio corpo – já não há movimento de rotação. a noite
nunca clareia e. a cada hora. surge uma fantasmagoria do sol. pintada na
esperança morta pelo instantâneo do mesmo escuro – procuro-me. levo a ponta dos
dedos até aos abismos da minha consciência. marcada por cicatrizes do viver.
ferida pela mesma sensação incessante: castração – sinto que ou fui hostilizado
por deus. ou fui que me sufoquei. perdi-me no certo temendo o erro. escondi-me
para não voltar a magoar-me – agora sinto-me morto. e quando a morte não me
consome por completo. é como se tivesse um pé na sorte e outro no abismo. às
vezes rezando. outras vezes. implorando por um silêncio eterno. e é quando
pergunto ao deus da catequese: se sempre respeitei os teus mandamentos. se
sempre me preocupei em ser justo. se a minha casa é feita de paz e amor. porque
este calvário. porque estas dores a magoar. se já não sei se estou vivo. ou se
já morri e estou noutra dimensão – é quando me lembro da minha procedência. e tudo
que lhes prometi. é então que saio de mim. e com voracidade. mexo as mãos. e
digo: e grito para mim mesmo: é preciso estar vivo. é preciso sonhar. é preciso
acreditar na esperança. pois só assim me sinto destemido. corajoso. sinto-me
eu. sinto-me com futuro – olho para o céu. mesmo sabendo que a salvação esta na
terra que piso. deixo as mãos aceitar o destino. é nesta procura louca que
acabo por aprender a sobreviver – eu crio dor. cerro os dentes. meus olhos afundam-se.
minha pele contorce-se em uma gritaria que me desperta violência. e toda esta
dor apenas por tentar pensar – quem compreende esta automutilação? caio no
fundo de mim. procuro calor. que é esperança. aconchego. que é companhia para
desabafar. porque no fundo. bem lá no fundo. existe sempre uma réstia de
esperança. e eu queria tanto encontrar essa portas com luz. que me atenuasse
este frio estranho – às vezes. quando tento encontrar-me. imagino que este frio
seja dos fantasmas que habitam dentro de mim. talvez eles procurem algo que possivelmente
nunca tive. eu nunca tive nada – sei apenas que tenho uma vontade enorme de
sobreviver e esta dor. mas também compreendo que o tempo mata a esperança.
acaba por morrer. como morrem todas as primaveras que inventei – o tempo passa por
todos. e estas primaveras de esperança. não mais voltarão a florir. mesmo o sol
chegue à minha eira – olhei para a distância que havia entre os meus olhos e a
vontade de ter outro futuro. medi como quem mede uma rasa de milho. e percebi
que nunca iria encontrar nada em definitivo. o meu destino será sempre uma contenda
com o que não tenho. mas quero ter. talvez seja mesmo uma guerra. com tudo que
cresce e vive em mim – este frio cada vez mais frio. alimenta-se de esta minha
vontade de querer mais. na vontade louca de transformar tudo. em cumes que
tocam o céu
2.
hoje
estou morto. é estranho como a morte ainda me permite pensamentos. mas não sei
bem quem morreu . só ainda não sei bem quem morreu. só espero que não tenha
sido aquele que escreve a morte em vida – ele ainda me faz falta para continuar
a jornada. tenho umas quantas palavras presas dentro de mim. à espera de
tombarem em papel pardo. cru. como restos de árvores que um dia formaram uma
floresta viva – estas palavras. também elas agonizantes. marcadas pelo tempo
que levou para moldá-las em literatura. jamais aceitarão o silêncio. as noites
tornar-se-ão um inferno. e as manhãs estarão cada vez mais distantes da
realidade – estou louco. há dentro de mim um sofrimento desordenado. caótico. sem
ritmo ou direção. atravessa a multidão que vive aprisionada em um único
corpo – tenho um passado. ainda em
memória. em que os olhos não conheciam as cores fortes. e tudo era suave. tudo
era algodão doce. até os primeiros ruídos. por tão novos serem. confundia-os
com músicas de embalar – esta dor de não saber escolher. de não ter um líder
capaz de criar uma ordem para o meu destino. é insuportável – estar morto assim
não é justo. não acredito que algum deus queira que uma criação sua seja como
eu. talvez deus não seja assim tão perfeito como penso. talvez suas mãos tremão
com o peso do tempo. moldando e construindo pessoas pelos séculos. talvez ele
também sinta o cansaço – milhares de anos. milhares de pessoas. e sempre a
inventar caras novas com jeitos novos. e tudo para os por a rezar. a jejuar. a
falar dele. a encher igrejas. a pedir esmolas para a fome. para as missões.
leprosos. e outros males do coração. e eu a acreditar que um dia também teria
de pagar em promessas este jeito de ser. quase feliz. quase a morrer – o que
deus criou não foi para pessoas com o meu jeito. mas não o culpo. quem sabe.
naquele dia. também ele estava desgostoso. triste. aborrecido. cansado de lidar
com o mundo. talvez tenha sido descuidado. e em vez de um paraíso com homens à
sua semelhança. saíram-lhe marionetes num mundo de terror e pecado – falhou
como eu. pobre coitado. nem estando em todo o lado percebeu que só fez asneira –
hoje. adão e eva esqueceram o gosto da maçã proibida. cresceu em
monstruosidade. agora. ergue-se em andas frágeis. cheia de cabeças a observar o
caos – acredito que este meu deus também está desorientado. perdido entre as
múltiplas criações cada vez mais exigentes e complexas – já percebi que está exausto
pela dor de ver que até um deus. fazedor de milagres e ressurreições. acabou
por me parir assim. sem manual de instruções. sem um qualquer código de barras.
uma etiqueta com as indicações de uso. de lavagem. de vida. mesmo para uma vida
de dor. esgotamento e delírio – passei a sentir-me assim. uma marioneta presa
por fios cruzados. enredado numa encruzilhada que mais parece obra do diabo –
este meu deus. também ele na merda. arrasado. acabou por criar um boneco triste
à sua semelhança – se estivesse feliz aparecia mais vezes. mas não. está
magoado. cheio de feridas. e com uns braços pequenos. tão pequenos que nunca me
conseguiu acarinhar. e eu. todos os dias. olho para o meu interior e digo: não
suporto mais este mundo que construí dentro de mim – preciso de ter uma
conversa com deus. talvez ele também precise do meu perdão. talvez me deixe
limpar o suor do seu cansaço com uma mortalha. afinal suportar esta sua criação
não deve ser fácil – mas ainda estou à disposição de deus para ouvir sobre o
dia ruim em que me criou – este deus. mais cedo ou mais tarde. vai ter que me
ouvir. vai ter que me explicar porque me fez com vários corações. alimentados
de dor. atrofiados pelo tempo – bastava-me um único coração. que soubesse
escrever versos de amor. versos tão profundos
que me fizessem chorar. talvez uma estrofe que narrasse a minha breve jornada
pela terra
3.
meu
deus. se hoje estou mesmo morto. tanto que até os sinos dobram pelo meu
descanso – porque não vens falar comigo? deverias ter esse cuidado. sempre que
alguém morre é teu dever vir ao seu encontro. penso ser digno de uma palavra.
não necessitas de grandes formalidades. espero apenas que me indiques qual o
caminho a seguir. ou então. manda-me um mensageiro. um anjo. um qualquer
pacóvio daqueles que nunca pecou. nem por pensamentos. atos ou omissões. um
daqueles sem coragem de te questionar. a bater com a mão no peito sempre que
pronuncia o teu nome – se me queres irritar. manda-me uma beata. arrependida. daquelas
que se ajoelham no confessionário com a face no assoalhado envergonhada por te
ter blasfemado – mas tu não queres mesmo saber de mim para nada. até fico na
dúvida que saibas da minha existência – um homem sem honra é capaz dos maiores
disparates. e é nesse momento que sobe para cima de si. revoltado. grita por ti
– e com as estrelas à distância de uma mão. pede para não voltar a cair na
incerteza. lembrando-te de todas as
vidas que ainda guardo em mim – mas não
penses que vou chorar. talvez haja tempo para sorrisos. quem sabe. quando por
fim encontrar o teu sinal. quero ainda acreditar que amanhã tudo será melhor –
reza o último pai nosso – o passado fica ali tão perto. e as luzes do mundo são
apenas pequenos pontos de esperança. casas onde ainda há vida. mas nenhuma tem
o meu nome. a fé está tomada por gente sem rosto – a fé são sorrisos. mesmo os
que deixei perdidos. foram-se no seu vagar. até já não ter um único para me
lembrar – um dia disseram-me que eras também meu pai. e que para um pai o sorriso é obrigação. mas eu
já não sei mais como criam sorrisos – é aqui que não te consigo compreender. eu
nunca abandonaria um filho. nem os sorrisos – estou triste. sinto cada vez as
estrelas mais perto e tu mais distante –
não precisavas de aparecer pessoalmente. podia ser qualquer coisa. um bilhete.
um sinal. qualquer coisa que mostrasse que ainda sabes da minha existência. ter
a certeza de que ainda és tu que mandas no céu. e assim. aliviar-me deste medo
que sobrevive dentro dos meus olhos – podes não acreditar. mas ainda mantenho a
fé que és tu quem decide tudo. que és tu quem tem a balança na mão – mas não me
peças para acreditar que tens os olhos vendados. muito menos uma espada
amarrada à mão. és tu que fazes as escolhas dos que tem direito a viver em paz
– sempre ouvi dizer que não suportas violência. ainda me lembro da minha
catequista me contar umas quantas histórias a teu respeito. e eu cheio de
orgulho por pertencer à tua família – lembro-me da primeira vez que me ensinou
o pai nosso. disse-me que era a forma mais direta de comunicar contigo. de te
fazer feliz. de me ouvires – passei noites a declamar o teu pai nosso.
repetia-o. repetia-o. repetia-o. e pensava. um dia. pensei. vai ficar felicíssimo.
e há de entrar pelo meu quarto adentro – acabava por cair de cansado. adormecia
com os olhos espetados numa imagem onde o teu filho subia ao reino dos céus – o
que mais me impressionava eram a luz que levava consigo. sempre acreditei que
era a trilha para te levar até ti – tanto procurei essa luz. tinha a esperança
que me levasse até ti – havia dias. desesperado por nunca falares comigo. que
dizia o pai nosso em voz alta. tão alto. que acabava sempre a imaginar ver-te a
tapar os ouvidos por já não aguentares o pranto dos meus suplícios – perdido na
noite. perdido do meu próprio corpo. partia em busca de respostas que nunca
encontrava – havia tanta coisa que não sabia explicar. a solidão muitas vezes
deixava-me apenas com os ossos do corpo – nunca entendi muito bem essa treta de
dar a outra face quando levamos uma bofetada. a minha professora. muitas vezes
amargurada pela ingratidão dos alunos. percebendo que jamais iria aprender as
letras com aquelas formas arredondadas. recorria à sua palma da mão para me
abrir a mente – nunca percebi se era por não saber as letras. ou se por deus
nunca me ter aparecido – talvez por ser o único que usava suspensórios por cima
da camisa branca. sempre mal ajeitado. o botão apertado junto ao pescoço. cabelo
bem penteado e sem lêndeas. e umas botas enormes preparadas para aguentar o
inverno da vida – ela só não sabia que por baixo da camisa havia uma medalha do
anjo da guarda. benzida no mesmo dia em que me entregaram a ti. numa pia de
pedra rodeada de santos e promessas de proteção – nunca ganhei coragem para lhe
oferecer a outra face. bem queria ser como tu. mas não. nem era pela dor. era
pelo orgulho. era diferente. sempre senti o corpo a pedir liberdade. viver em
liberdade sempre foi a minha vocação – eu nunca entendi porque me batia. e nem
compreendia como podias. ali na parede. com os olhos presos em mim. permanecer
imóvel diante de tudo – bem sei que tinhas as mãos e os pés pregados à cruz.
mas então onde gastavas os milagres que sempre me disseram que fazias. quando
acabaram? foi aí que percebi que nunca serias capaz de me salvar das diferenças
que começavam a nascer em mim – tudo me parecia tremendamente estranho: a
escola estranha. putos estranhos. descalços. rotos. com lousas em negro como a
sua vida – apesar de desconhecerem o mundo que tu lhes prometeste. sorriam.
todos menos eu. e eu que tanto queria sorrir. tanto mesmo – o único caderno de
linhas para escrever palavras direitas era o meu. mas sempre que escrevia o teu
nome. o “d”. saía das linhas. nunca percebi o porquê. talvez fosses tu a
empurra-me para fora de ti – a vara. reservada para os dias em que a professora
descansava as mãos. rugia pelas orelhas abaixo. e nos micro segundos entre uma
varada e a seguinte. olhava para ti. suplicava proteção. mas naquela parede
nua. desprovida de qualquer adorno. tua presença era apenas sombra – queria
tanto que descesses daquela imortalidade e que com um milagre. daqueles que me
tinham feito acreditar em ti. parasses aquela vara maldita. aquele desespero.
aquele nunca. pois parecia nunca acabar – mas não. tu nada fazias. continuavas
na tua cruz. ali a olhar para mim como se nada estivesse a acontecer.
ignoravas-me. assobiavas para o ar. para mim e para todos os outros. que tal como
eu. imploravam para os acudir – sempre foi assim. mesmo quando ia para casa
triste e desanimado. nunca encontrei uma criança com cadernos iguais aos meus. com
linhas paralelas. onde o teu nome nunca ficava legível –também nunca me
disseste uma palavra. nem enviaste uma pomba branca. igual às da catequese. ignoraste-me
– nesses dias. queria tanto que me dissesses alguma coisa. mesmo que fosse uma
palavra bruta. um aviso. uma sentença que me condenasse ao inferno. eu
aceitaria – ainda quero acreditar nas histórias do teu filho. nos milagres do
cego que ficou a ver. naquela boda em que o pão e o vinho se multiplicaram. ou
de lázaro. que voltou das trevas para te fazer rei dos homens. mas cada
silêncio teu parece apagar uma vela de esperança dentro de mim – sabes! nesses
dias em que me contavam essas histórias eu era um miúdo feliz. não apenas por
mim. mas por todos aqueles que te puderam tocar a carne. e dizer: obrigado por
me dares esperança – apesar de tudo. talvez por teimosia ou esperança. eu
sempre te perdoei por nunca me teres aparecido nos momentos mais difíceis.
pensava cá para mim. está ocupado! em algum lado alguém precisa mais de ti do
que eu
4.
o tempo passa. e de ti. nem uma
palavra – julgava até que algum som fosse teu sinal. mas não. era apenas um som
– agora que morri. não refuto mais o teu silêncio. tu sabes. quando morro. como
hoje morri. é para tudo o que existe. até para ti – não sou capaz de te
compreender. não mo peças. não me venhas com essas histórias de que escreves certo
por linhas tortas. que estás sempre em todo o lado. que ouves tudo. que vês
tudo – és apenas mais um traidor. outro judas. entregaste-me à inutilidade por
trinta moedas – e não acredito que enviaste o teu filho ao mundo para morrer
por mim. por mim não. pelos outros talvez. mas eu não posso morrer quando já estou
morto. e para ti sempre estive morto – pela manhã. com o nascer o sol. talvez
renasça. desta vez sem cruz na parede. sem água benta. sem anjos. apenas eu.
vestido da pouca esperança que ainda aguardo – quero acordar nu. despido
de dores. e vestir-me com o último fio de esperança – arranco o coração. e com
o meu coração nas mãos dou-lhe carinho. peço-lhe que bata apenas mais um dia.
só mais um dia – todos os dias quero apenas mais um dia. já não tenho os mesmos
sonhos. aqueles que tantas vezes te pedi para me ajudares a realizar – tu bem
sabias que não era a cobiça que me fazia sonhar. tu sabias – queria apenas que
o meu pai mandasse matar a maior ovelha do rebanho – o orgulho. meu deus. o
orgulho – será que tu não entendes. eu só queria ter o orgulho dos meus. do meu
sangue. queria construir um novo caminho – permitiste que me roubassem o
orgulho. e tu sabias tudo o que havia dentro de mim. tudo. sabias que não havia
pecado. nunca houve – às vezes não há nada que possa inventar com as palavras.
ainda quero ser um dos teus. dou o coração à boca. deixe-o arder na água que
guardei do meu batismo. quero saber se ele ainda bate por ti. purificá-lo do
pecado que não cometi – guardo as palavras que trouxe do passado. as que aprendi
na catequese – ainda quero acreditar naquela história de que fizeste o mundo em
seis dias e descansaste ao sétimo – hoje é o sétimo dia. estou cansado. os
braços caíram no chão. separam-se do corpo. talvez seja decomposição da carne.
ou o peso de todo o silêncio que carrego. mas ainda tenho o teu olhar nos meus
olhos. ainda tenho aquele santinho que um dia me deram numa missa do galo – era
natal e no natal há sempre esperança – neste dia. eu não era diferente –
imaginava-te sentado a meu lado. de mãos entrelaçadas nas minhas. ouvias-me. também
não queria mais nada de ti. queria apenas saber que me ouvias – depois chorava.
chorava para te mostrar como ainda era da tua carne – só chora quem ama ou que
está magoado – mesmo no pecado veniais. os outros não tinha. mas sempre te
amei. arrependia-me por ti. e as lágrimas eram por acreditar em ti - mesmo na
dor. quando ela era insuportável e a tentação das mãos era mais forte do que a
fé. era pelo teu nome que gritava. e quando deixava cair o pão ao chão era com
um beijo que o limpava dos males do mundo – ter-te a meu lado era ter os olhos
secos – não. não. não. eu sei agora que estou morto – mentiroso. mentiroso.
mentiroso. eu sei que estou morto. mas sou eu quem fala. bem sei que perdido
entra palavras que nada valem. mas algumas metáforas ainda crescem dentro de
mim tentando disfarçar a dor – nunca imaginei que iria ter dores depois de
morto – maldito seja esse teu silêncio que consome até as palavras que nunca disseste –
é esse silêncio que ouço desde o dia que levei as mãos aos ouvidos. não te
consigo perdoar. não consigo – obrigas-me a chorar. eu que tinha prometido
nunca mais chorar por mim – preferia chorar por ti. ainda quero acreditar que
estás a sofrer mais do que eu – ninguém de boa fé faz um homem como eu. principalmente
um deus. tenho de te perdoar. não totalmente. isso não posso. mas talvez um
dia. a tua voz me alcance. e se isso acontecer. quem sabe… quem sabe – já não
te pertenço. não porque não quisesse. mas porque fui renegado. abandonado no
meio do nada. sem honra – não vou guardar ressentimento. vou apenas deixar-te
algumas palavras pregadas à tua cruz. parece-me que é também minha. afinal
dizes que eu sou carne da tua carne – magoo-me só para que sintas que existo –
se um dia o teu filho voltar a ser crucificado terás sempre estas palavras. e que
alguém sofreu a acreditar em ti – sempre soube que seria eu a escolher o dia da
minha partida – por agora morro apenas mais um dia. qualquer dia. terás de me
ouvir. e serás tu a limpar-me o rosto com a toalha com que verónica limpou o
rosto do teu filho