.................................................................................não tirem o vento às gaivotas

17/11/2010

talvez um monólogo com deus






1.

fazia frio dentro de mim. foi a primeira vez que um frio assim me tocou. no entanto. o corpo não reclamava agasalho – mas bem lá dentro. nas profundezas de mim mesmo. senti tudo a gelar – estava irremediavelmente só. como sempre. tinha as mãos metidas em bolsos fundos e vazios. apenas procurava em mim um pouco de calor. algo aquecesse a alma – sempre procurei o que não existe. pelo menos em mim. mas sou assim. nada posso fazer – já nos outros. vejo sempre bandos de pássaros a voar rumo às temperaturas do sul. são pássaros fantásticos. cheios de certeza e destino – nem sei o nome os seus nomes. mas vêm em bandos. com asas carregadas de coisas. fragmentos do tempo. vão para lugares onde o horizonte é certo – mas eu. aqui estou. andando sem rumo. à procura das minhas coisas. do meu tempo. mas já perdi a conta ao meu tempo. ando de um lado para outro. sem rumo. perdido dentro do meu próprio corpo – já não há movimento de rotação. a noite nunca clareia e. a cada hora. surge uma fantasmagoria do sol. pintada na esperança morta pelo instantâneo do mesmo escuro – procuro-me. levo a ponta dos dedos até aos abismos da minha consciência. marcada por cicatrizes do viver. ferida pela mesma sensação incessante: castração – sinto que ou fui hostilizado por deus. ou fui que me sufoquei. perdi-me no certo temendo o erro. escondi-me para não voltar a magoar-me – agora sinto-me morto. e quando a morte não me consome por completo. é como se tivesse um pé na sorte e outro no abismo. às vezes rezando. outras vezes. implorando por um silêncio eterno. e é quando pergunto ao deus da catequese: se sempre respeitei os teus mandamentos. se sempre me preocupei em ser justo. se a minha casa é feita de paz e amor. porque este calvário. porque estas dores a magoar. se já não sei se estou vivo. ou se já morri e estou noutra dimensão – é quando me lembro da minha procedência. e tudo que lhes prometi. é então que saio de mim. e com voracidade. mexo as mãos. e digo: e grito para mim mesmo: é preciso estar vivo. é preciso sonhar. é preciso acreditar na esperança. pois só assim me sinto destemido. corajoso. sinto-me eu. sinto-me com futuro – olho para o céu. mesmo sabendo que a salvação esta na terra que piso. deixo as mãos aceitar o destino. é nesta procura louca que acabo por aprender a sobreviver – eu crio dor. cerro os dentes. meus olhos afundam-se. minha pele contorce-se em uma gritaria que me desperta violência. e toda esta dor apenas por tentar pensar – quem compreende esta automutilação? caio no fundo de mim. procuro calor. que é esperança. aconchego. que é companhia para desabafar. porque no fundo. bem lá no fundo. existe sempre uma réstia de esperança. e eu queria tanto encontrar essa portas com luz. que me atenuasse este frio estranho – às vezes. quando tento encontrar-me. imagino que este frio seja dos fantasmas que habitam dentro de mim. talvez eles procurem algo que possivelmente nunca tive. eu nunca tive nada – sei apenas que tenho uma vontade enorme de sobreviver e esta dor. mas também compreendo que o tempo mata a esperança. acaba por morrer. como morrem todas as primaveras que inventei – o tempo passa por todos. e estas primaveras de esperança. não mais voltarão a florir. mesmo o sol chegue à minha eira – olhei para a distância que havia entre os meus olhos e a vontade de ter outro futuro. medi como quem mede uma rasa de milho. e percebi que nunca iria encontrar nada em definitivo. o meu destino será sempre uma contenda com o que não tenho. mas quero ter. talvez seja mesmo uma guerra. com tudo que cresce e vive em mim – este frio cada vez mais frio. alimenta-se de esta minha vontade de querer mais. na vontade louca de transformar tudo. em cumes que tocam o céu

 

2.

hoje estou morto. é estranho como a morte ainda me permite pensamentos. mas não sei bem quem morreu . só ainda não sei bem quem morreu. só espero que não tenha sido aquele que escreve a morte em vida – ele ainda me faz falta para continuar a jornada. tenho umas quantas palavras presas dentro de mim. à espera de tombarem em papel pardo. cru. como restos de árvores que um dia formaram uma floresta viva – estas palavras. também elas agonizantes. marcadas pelo tempo que levou para moldá-las em literatura. jamais aceitarão o silêncio. as noites tornar-se-ão um inferno. e as manhãs estarão cada vez mais distantes da realidade – estou louco. há dentro de mim um sofrimento desordenado. caótico. sem ritmo ou direção. atravessa a multidão que vive aprisionada em um único corpo  – tenho um passado. ainda em memória. em que os olhos não conheciam as cores fortes. e tudo era suave. tudo era algodão doce. até os primeiros ruídos. por tão novos serem. confundia-os com músicas de embalar – esta dor de não saber escolher. de não ter um líder capaz de criar uma ordem para o meu destino. é insuportável – estar morto assim não é justo. não acredito que algum deus queira que uma criação sua seja como eu. talvez deus não seja assim tão perfeito como penso. talvez suas mãos tremão com o peso do tempo. moldando e construindo pessoas pelos séculos. talvez ele também sinta o cansaço – milhares de anos. milhares de pessoas. e sempre a inventar caras novas com jeitos novos. e tudo para os por a rezar. a jejuar. a falar dele. a encher igrejas. a pedir esmolas para a fome. para as missões. leprosos. e outros males do coração. e eu a acreditar que um dia também teria de pagar em promessas este jeito de ser. quase feliz. quase a morrer – o que deus criou não foi para pessoas com o meu jeito. mas não o culpo. quem sabe. naquele dia. também ele estava desgostoso. triste. aborrecido. cansado de lidar com o mundo. talvez tenha sido descuidado. e em vez de um paraíso com homens à sua semelhança. saíram-lhe marionetes num mundo de terror e pecado – falhou como eu. pobre coitado. nem estando em todo o lado percebeu que só fez asneira – hoje. adão e eva esqueceram o gosto da maçã proibida. cresceu em monstruosidade. agora. ergue-se em andas frágeis. cheia de cabeças a observar o caos – acredito que este meu deus também está desorientado. perdido entre as múltiplas criações cada vez mais exigentes e complexas – já percebi que está exausto pela dor de ver que até um deus. fazedor de milagres e ressurreições. acabou por me parir assim. sem manual de instruções. sem um qualquer código de barras. uma etiqueta com as indicações de uso. de lavagem. de vida. mesmo para uma vida de dor. esgotamento e delírio – passei a sentir-me assim. uma marioneta presa por fios cruzados. enredado numa encruzilhada que mais parece obra do diabo – este meu deus. também ele na merda. arrasado. acabou por criar um boneco triste à sua semelhança – se estivesse feliz aparecia mais vezes. mas não. está magoado. cheio de feridas. e com uns braços pequenos. tão pequenos que nunca me conseguiu acarinhar. e eu. todos os dias. olho para o meu interior e digo: não suporto mais este mundo que construí dentro de mim – preciso de ter uma conversa com deus. talvez ele também precise do meu perdão. talvez me deixe limpar o suor do seu cansaço com uma mortalha. afinal suportar esta sua criação não deve ser fácil – mas ainda estou à disposição de deus para ouvir sobre o dia ruim em que me criou – este deus. mais cedo ou mais tarde. vai ter que me ouvir. vai ter que me explicar porque me fez com vários corações. alimentados de dor. atrofiados pelo tempo – bastava-me um único coração. que soubesse escrever versos  de amor. versos tão profundos que me fizessem chorar. talvez uma estrofe que narrasse a minha breve jornada pela terra

 

3.

meu deus. se hoje estou mesmo morto. tanto que até os sinos dobram pelo meu descanso – porque não vens falar comigo? deverias ter esse cuidado. sempre que alguém morre é teu dever vir ao seu encontro. penso ser digno de uma palavra. não necessitas de grandes formalidades. espero apenas que me indiques qual o caminho a seguir. ou então. manda-me um mensageiro. um anjo. um qualquer pacóvio daqueles que nunca pecou. nem por pensamentos. atos ou omissões. um daqueles sem coragem de te questionar. a bater com a mão no peito sempre que pronuncia o teu nome – se me queres irritar. manda-me uma beata. arrependida. daquelas que se ajoelham no confessionário com a face no assoalhado envergonhada por te ter blasfemado – mas tu não queres mesmo saber de mim para nada. até fico na dúvida que saibas da minha existência – um homem sem honra é capaz dos maiores disparates. e é nesse momento que sobe para cima de si. revoltado. grita por ti – e com as estrelas à distância de uma mão. pede para não voltar a cair na incerteza. lembrando-te  de todas as vidas que ainda guardo em mim  – mas não penses que vou chorar. talvez haja tempo para sorrisos. quem sabe. quando por fim encontrar o teu sinal. quero ainda acreditar que amanhã tudo será melhor – reza o último pai nosso – o passado fica ali tão perto. e as luzes do mundo são apenas pequenos pontos de esperança. casas onde ainda há vida. mas nenhuma tem o meu nome. a fé está tomada por gente sem rosto – a fé são sorrisos. mesmo os que deixei perdidos. foram-se no seu vagar. até já não ter um único para me lembrar – um dia disseram-me que eras também meu pai. e  que para um pai o sorriso é obrigação. mas eu já não sei mais como criam sorrisos – é aqui que não te consigo compreender. eu nunca abandonaria um filho. nem os sorrisos – estou triste. sinto cada vez as estrelas mais perto e tu mais distante  – não precisavas de aparecer pessoalmente. podia ser qualquer coisa. um bilhete. um sinal. qualquer coisa que mostrasse que ainda sabes da minha existência. ter a certeza de que ainda és tu que mandas no céu. e assim. aliviar-me deste medo que sobrevive dentro dos meus olhos – podes não acreditar. mas ainda mantenho a fé que és tu quem decide tudo. que és tu quem tem a balança na mão – mas não me peças para acreditar que tens os olhos vendados. muito menos uma espada amarrada à mão. és tu que fazes as escolhas dos que tem direito a viver em paz – sempre ouvi dizer que não suportas violência. ainda me lembro da minha catequista me contar umas quantas histórias a teu respeito. e eu cheio de orgulho por pertencer à tua família – lembro-me da primeira vez que me ensinou o pai nosso. disse-me que era a forma mais direta de comunicar contigo. de te fazer feliz. de me ouvires – passei noites a declamar o teu pai nosso. repetia-o. repetia-o. repetia-o. e pensava. um dia. pensei. vai ficar felicíssimo. e há de entrar pelo meu quarto adentro – acabava por cair de cansado. adormecia com os olhos espetados numa imagem onde o teu filho subia ao reino dos céus – o que mais me impressionava eram a luz que levava consigo. sempre acreditei que era a trilha para te levar até ti – tanto procurei essa luz. tinha a esperança que me levasse até ti – havia dias. desesperado por nunca falares comigo. que dizia o pai nosso em voz alta. tão alto. que acabava sempre a imaginar ver-te a tapar os ouvidos por já não aguentares o pranto dos meus suplícios – perdido na noite. perdido do meu próprio corpo. partia em busca de respostas que nunca encontrava – havia tanta coisa que não sabia explicar. a solidão muitas vezes deixava-me apenas com os ossos do corpo – nunca entendi muito bem essa treta de dar a outra face quando levamos uma bofetada. a minha professora. muitas vezes amargurada pela ingratidão dos alunos. percebendo que jamais iria aprender as letras com aquelas formas arredondadas. recorria à sua palma da mão para me abrir a mente – nunca percebi se era por não saber as letras. ou se por deus nunca me ter aparecido – talvez por ser o único que usava suspensórios por cima da camisa branca. sempre mal ajeitado. o botão apertado junto ao pescoço. cabelo bem penteado e sem lêndeas. e umas botas enormes preparadas para aguentar o inverno da vida – ela só não sabia que por baixo da camisa havia uma medalha do anjo da guarda. benzida no mesmo dia em que me entregaram a ti. numa pia de pedra rodeada de santos e promessas de proteção – nunca ganhei coragem para lhe oferecer a outra face. bem queria ser como tu. mas não. nem era pela dor. era pelo orgulho. era diferente. sempre senti o corpo a pedir liberdade. viver em liberdade sempre foi a minha vocação – eu nunca entendi porque me batia. e nem compreendia como podias. ali na parede. com os olhos presos em mim. permanecer imóvel diante de tudo – bem sei que tinhas as mãos e os pés pregados à cruz. mas então onde gastavas os milagres que sempre me disseram que fazias. quando acabaram? foi aí que percebi que nunca serias capaz de me salvar das diferenças que começavam a nascer em mim – tudo me parecia tremendamente estranho: a escola estranha. putos estranhos. descalços. rotos. com lousas em negro como a sua vida – apesar de desconhecerem o mundo que tu lhes prometeste. sorriam. todos menos eu. e eu que tanto queria sorrir. tanto mesmo – o único caderno de linhas para escrever palavras direitas era o meu. mas sempre que escrevia o teu nome. o “d”. saía das linhas. nunca percebi o porquê. talvez fosses tu a empurra-me para fora de ti – a vara. reservada para os dias em que a professora descansava as mãos. rugia pelas orelhas abaixo. e nos micro segundos entre uma varada e a seguinte. olhava para ti. suplicava proteção. mas naquela parede nua. desprovida de qualquer adorno. tua presença era apenas sombra – queria tanto que descesses daquela imortalidade e que com um milagre. daqueles que me tinham feito acreditar em ti. parasses aquela vara maldita. aquele desespero. aquele nunca. pois parecia nunca acabar – mas não. tu nada fazias. continuavas na tua cruz. ali a olhar para mim como se nada estivesse a acontecer. ignoravas-me. assobiavas para o ar. para mim e para todos os outros. que tal como eu. imploravam para os acudir – sempre foi assim. mesmo quando ia para casa triste e desanimado. nunca encontrei uma criança com cadernos iguais aos meus. com linhas paralelas. onde o teu nome nunca ficava legível –também nunca me disseste uma palavra. nem enviaste uma pomba branca. igual às da catequese. ignoraste-me – nesses dias. queria tanto que me dissesses alguma coisa. mesmo que fosse uma palavra bruta. um aviso. uma sentença que me condenasse ao inferno. eu aceitaria – ainda quero acreditar nas histórias do teu filho. nos milagres do cego que ficou a ver. naquela boda em que o pão e o vinho se multiplicaram. ou de lázaro. que voltou das trevas para te fazer rei dos homens. mas cada silêncio teu parece apagar uma vela de esperança dentro de mim – sabes! nesses dias em que me contavam essas histórias eu era um miúdo feliz. não apenas por mim. mas por todos aqueles que te puderam tocar a carne. e dizer: obrigado por me dares esperança – apesar de tudo. talvez por teimosia ou esperança. eu sempre te perdoei por nunca me teres aparecido nos momentos mais difíceis. pensava cá para mim. está ocupado! em algum lado alguém precisa mais de ti do que eu

 

4.

o tempo passa. e de ti. nem uma palavra – julgava até que algum som fosse teu sinal. mas não. era apenas um som – agora que morri. não refuto mais o teu silêncio. tu sabes. quando morro. como hoje morri. é para tudo o que existe. até para ti – não sou capaz de te compreender. não mo peças. não me venhas com essas histórias de que escreves certo por linhas tortas. que estás sempre em todo o lado. que ouves tudo. que vês tudo – és apenas mais um traidor. outro judas. entregaste-me à inutilidade por trinta moedas – e não acredito que enviaste o teu filho ao mundo para morrer por mim. por mim não. pelos outros talvez. mas eu não posso morrer quando já estou morto. e para ti sempre estive morto – pela manhã. com o nascer o sol. talvez renasça. desta vez sem cruz na parede. sem água benta. sem anjos. apenas eu. vestido da pouca esperança que ainda aguardo – quero acordar nu. despido de dores. e vestir-me com o último fio de esperança – arranco o coração. e com o meu coração nas mãos dou-lhe carinho. peço-lhe que bata apenas mais um dia. só mais um dia – todos os dias quero apenas mais um dia. já não tenho os mesmos sonhos. aqueles que tantas vezes te pedi para me ajudares a realizar – tu bem sabias que não era a cobiça que me fazia sonhar. tu sabias – queria apenas que o meu pai mandasse matar a maior ovelha do rebanho – o orgulho. meu deus. o orgulho – será que tu não entendes. eu só queria ter o orgulho dos meus. do meu sangue. queria construir um novo caminho – permitiste que me roubassem o orgulho. e tu sabias tudo o que havia dentro de mim. tudo. sabias que não havia pecado. nunca houve – às vezes não há nada que possa inventar com as palavras. ainda quero ser um dos teus. dou o coração à boca. deixe-o arder na água que guardei do meu batismo. quero saber se ele ainda bate por ti. purificá-lo do pecado que não cometi – guardo as palavras que trouxe do passado. as que aprendi na catequese – ainda quero acreditar naquela história de que fizeste o mundo em seis dias e descansaste ao sétimo – hoje é o sétimo dia. estou cansado. os braços caíram no chão. separam-se do corpo. talvez seja decomposição da carne. ou o peso de todo o silêncio que carrego. mas ainda tenho o teu olhar nos meus olhos. ainda tenho aquele santinho que um dia me deram numa missa do galo – era natal e no natal há sempre esperança – neste dia. eu não era diferente – imaginava-te sentado a meu lado. de mãos entrelaçadas nas minhas. ouvias-me. também não queria mais nada de ti. queria apenas saber que me ouvias – depois chorava. chorava para te mostrar como ainda era da tua carne – só chora quem ama ou que está magoado – mesmo no pecado veniais. os outros não tinha. mas sempre te amei. arrependia-me por ti. e as lágrimas eram por acreditar em ti - mesmo na dor. quando ela era insuportável e a tentação das mãos era mais forte do que a fé. era pelo teu nome que gritava. e quando deixava cair o pão ao chão era com um beijo que o limpava dos males do mundo – ter-te a meu lado era ter os olhos secos – não. não. não. eu sei agora que estou morto – mentiroso. mentiroso. mentiroso. eu sei que estou morto. mas sou eu quem fala. bem sei que perdido entra palavras que nada valem. mas algumas metáforas ainda crescem dentro de mim tentando disfarçar a dor – nunca imaginei que iria ter dores depois de morto – maldito seja esse teu silêncio que consome até as palavras que nunca disseste – é esse silêncio que ouço desde o dia que levei as mãos aos ouvidos. não te consigo perdoar. não consigo – obrigas-me a chorar. eu que tinha prometido nunca mais chorar por mim – preferia chorar por ti. ainda quero acreditar que estás a sofrer mais do que eu – ninguém de boa fé faz um homem como eu. principalmente um deus. tenho de te perdoar. não totalmente. isso não posso. mas talvez um dia. a tua voz me alcance. e se isso acontecer. quem sabe… quem sabe – já não te pertenço. não porque não quisesse. mas porque fui renegado. abandonado no meio do nada. sem honra – não vou guardar ressentimento. vou apenas deixar-te algumas palavras pregadas à tua cruz. parece-me que é também minha. afinal dizes que eu sou carne da tua carne – magoo-me só para que sintas que existo – se um dia o teu filho voltar a ser crucificado terás sempre estas palavras. e que alguém sofreu a acreditar em ti – sempre soube que seria eu a escolher o dia da minha partida – por agora morro apenas mais um dia. qualquer dia. terás de me ouvir. e serás tu a limpar-me o rosto com a toalha com que verónica limpou o rosto do teu filho 



13/11/2010

o tempo que o tempo tem








o dia gemeu

em agonia

o relógio perdeu-se

no tempo

e até o gigante big ben

o dos ponteiros colossais

sucumbiu

só os segundos

devoram o tempo

ainda

 

00.01    pm

00.02     pm

o escritor

construtor de ilusões

diz:

hoje sempre será ontem

 

palavras

emoções

lágrimas

crenças

rostos

vozes

fotos

conflitos

ambições

loucuras

ilusões

amores

percalços

desejos

rendições

tudo

sempre tudo

tudo que o relógio

conta

 

de ontem

chega o tudo

antes  que o tempo

revele

nos ponteiros

a cadência da vida


pensar é exorcizar

o saber presente

é compreender

sou de ontem

 

do papel:

o aroma da floresta

do tinteiro:

o alquimista perdido

de ontem

o sol nascente

das mãos

a solução

ainda ontem

eram

pés com barbatanas

onde o tempo faz vida

 

hoje

é leitura

subtileza tecida no tempo

em falta

mas

no vosso relógio

serei sempre

imaginação

 

ou talvez

apenas um momento

passado

 

00.17pm

 

o relógio

faz tic-tac

 

no instante passado

e o não silêncio

do tic-tac

bate com a certeza

de ser o presente


serei sempre

o eco incessante 

deste bater 



10/11/2010

estes lados. nossos






tenho entre os mãos uma porção de terra. trouxe-a de um jazigo para suavizar uma saudade – desde que partiste sinto-me amargurado. perdido e zangado. tinha ainda tantas coisas minhas para te dizer – eram importantes. digo eu – não devias ter apanhado aquele autocarro. bem sabes que o carreiro por aí é demorado. estreito. tão isolada. tão triste. tão sem vida. tão escuro – tenho medo que estejas sozinho e com frio. podias ter levado aquele sobretudo de lã às cores. sempre te fez mais novo. era lã pura. combinava contigo – lembro-me de como sorrias ao vesti-lo. como se o inverno nunca te tocasse – um dia vesti-o. enfureci-me. não me assentava nos ombros – sempre foste mais aprumado. as tuas as costas alinhadas carregavam a vida com leveza – as minhas. bem. as minhas sempre foram apenas mais umas costas – tenho dias em que adormeço acreditando que é possível viver-te nos sonhos – ontem consegui falar-te com os lábios. sempre depois daquele beijo na face. quente. senti eu – fiquei com um trago açucarado na boca. mel – depois. guardei-te no silêncio criado nos meus olhos. nossos – estendi as mãos. toquei-te. senti-te. abracei-te. e ali fiquei aconchegado a mim. a nós – tive medo de acordar. e guardei a mão onde tenho cravada a linha da tua vida. foi cortada pela tua ausência – nesta minha mão. que é nossa. a linha prossegue outro caminho. que é também o teu – quem nos ensina a andar quando não temos mais o chão. meu pai? como vou caminhar com o que é teu. meu pai? não sei. eras tão diferente de todo o mundo. meu pai – a nossa árvore. é a nossa árvore. respira a nascente. para onde sempre me guiaste – mas eu era novo demais – nos dias em que me pegavas ao colo. todas as árvores pareciam ser do teu tamanho – a vida acontecia sempre nos teus braços. fortes. tão fortes que o céu ficava à distância de um sorriso – ainda nem sabia que esse céu. um dia. receberia todos aqueles que gostamos – do mundo. conhecia apenas o jardim que criaste para mim – havia sempre tanta gente a dizer coisas nesse jardim. nosso – faziam um quase barulho. às vezes sussurro. às vezes música. às vezes amor. nosso – tu. falavas como se inventasses as palavras ao dizê-las. nossas – nunca paravas – e nos teus olhos. nos teus olhos a alma das pessoas. eras um homem bom. e como fazem falta homens bons no meu mundo agora – nesse mundo. que me deste a conhecer. sempre houve um baloiço onde eu te esperava. às vezes levava-te. às vezes trazia-te. nunca parava de ir e vir. como tu. partias para o teu mundo que mais tarde haveria de ser também meu. nosso – e depois. regressavas. sempre. por mais que o tempo matasse o próprio tempo. a tua casa éramos nós. todos – sempre o soube – tudo parecia tão simples. o mundo. a vida. e dentro de mim. tudo era simples. bem sei que tu também eras simples – em ti havia vida. havia certeza. havia mel. havia sorrisos. tu eras um sorriso. nosso – e o baloiço andava para lá e para cá. como se imitasse os dias a nascer. porque tudo que nasce carrega consigo uma razão para existir – havia uma razão maior para existires em mim. eras um homem bom. como mais ninguém – era tão jovem. não sabia nada da vida. nada do que ela guardava para mim. não sabia como nasciam os dias. nem sabia como todos são obrigados a morrer – sabia apenas que o destino nos leva. de norte para sul. até o infinito das memórias – tu bem que me apontavas o caminho. mas era demasiado jovem para entender que até o sol. tão luzente. um dia pode morrer – não foi por desistires que eu não me fiz homem mais cedo. nunca sossegaste com as palavras. eu é que era surdo. cego de tão jovem – na tua presença o baloiço nunca parava – sempre foste um homem livre. eu também sou. como tu – sempre usaste as palavras. para me falar. os ouvidos para me escutar. os olhos para me ver – eras o meu pai – as argolas de ferro que seguravam o baloiço já rangiam. e eu sem saber como o nosso tempo estava prestes a esgotar-se. lento. mas inevitável doloroso   – nesses dias. ouvia-se o vento furioso. mal eu sabia que nesse ir e vir era já a vida a esgotar-se – cansado. respiravas amparado no sinal da cruz. com que te deitavas. sempre – tu ainda tinhas um deus. o mesmo que já foi meu. agora. estamos amuados. para te ser franco nada sei dele – no ar as folhas chamavam o outono. e os dias pequenos. cansados. prestes a desaparecer – depois. apareceu aquele autocarro. as argolas partiram-se e as cordas começaram a chorar. como se o ar debandasse – nesse dia que viajaste fiquei só. e fiquei para sempre – tínhamos ainda tantas palavras para dizer. tantas coisas para partilhar – mais tarde um homem de chapéu preto chamou-me pelo teu nome. aquele que eu nunca uso por ser só teu. deu-me uma chave. atada com uma fita negra. disse-me que era da tua nova morada. nunca acreditei – partiste sem uma única palavra. tua – tu não eras homem para partir em silêncio. não podias ser – tu sempre me dizias: porta-te bem enquanto estou fora. não aborreças a tua mãe. faz sempre o que a mamã te mandar – alguém te enganou. digo eu – fomos enganados – tiraram-te a memória para partires sem boca – a dor comeu as palavras – sei que um dia vais voltar. ou talvez esperes por mim. tens de me explicar onde deixaste aquele santinho. o que usavas na carteira. nunca mais o vi. talvez tenha fugido com a vergonha – sei que um dia vais pedir para falar da vida que guardo em segredo. todos os dias – enterrei tudo num buraco onde. criei a nossa árvore. é a tua memória

 


07/11/2010

cruz ansata








não tenho palavras que sustentem a cabeça que comprei naquela loja de ferro velho. pende para o lado vazio. o lado onde não há coração. onde morrem todos os verbos que amparam a injustiça – os braços. outrora selvagens e vigorosos. caíram desesperados –  apareceu a ferrugem. aquela que conheci em tempos. corrosiva. devorava todos os nomes – talvez tivessem crescido demais. e as línguas cuspissem encantos sem nada saber de braços com mãos dependuradas – agora. não sei se desespere ou se espere – mesmo com toda a indiferença que sempre guardei – por detrás do olhar despreocupado temo pelas minhas mãos –  habituei-me a este corpo. despido. descalço. carrego apenas à cinta uma sacola de couro e letras. que trazem minha vida – sorrisos poucos. lágrimas muitas – dos olhos redondos brilhantes já pouco resta. soltam-se agora pedaços de cólera – nasceram talvez na menina dos olhos. sempre tão sensível – sempre acreditou em tudo o que via. ingénua. tão pura em sua crença – voltou tudo novamente ao tempo da ilusão. o tempo dentro de mim afinal é uma mentira. pensava que já me tinha esquecido dos amigos. mas agora vieram estes. os novos. os arrumados. os que se acham eleitos. com direitos imaginados. sem teto procuram hipérboles como o diabo procura o pecado. talvez sejam parentes – sorte a minha. uma vida inteira a ignorar o olhar dos que achavam que não havia nada dentro de mim – não posso continuar calado – estas mãos também escrevem. podem não ser perfeitas. mas não matam palavras – bem sei que não sou fidalgo. e ainda não tenho aquele anel de ouro feito de hematite negra –  e a cor negra que trago no corpo. é a sombra do trabalho árduo que faço com as minhas mãos – mas são sempre estas que escrevem. apenas essas. assim. mesmo cheias de marcas. de veias. de cicatrizes fechadas em dor – são as minhas mãos – estou revoltado. porque me roubaste o nome que escrevia somente para dizer as minhas coisas. não a ti. não ao teu mundo. nem sequer àqueles que gostam deste sinal que tenho na face – escrevo para mim. para ser feliz. mesmo sem nunca ter sido antes – vê o que fizeste destas mãos. umas mãos ásperas. só hoje? talvez sim. talvez para sempre – também se pode escrever ásperas no meio de um substantivo comum – malditos sejam – a escrita não é só um dom. é dor. é prazer. é êxtase. é orgasmo. é vida. é esperança – e quando escrevo sou isso. repito. sou isso sem dúvida



04/11/2010

mau tempo






tenho as palavras alteradas. talvez por isso as gaivotas continuem em terra – até mesmo aquela gaivota malhada. sempre entregue ao vento norte. com asas a rasgar a espuma que escorria do canto da minha boca. se afastou – um dia. quem sabe. falarei com ela – direi que o mar. aos meus olhos. é infinito – ou talvez não – talvez lhe vire as costas – verei o que fazer com as palavras. talvez as guarde para sempre. longe do sal que as desgasta – mas do mar nunca tirarei os olhos. foi  batizado por um deus que não sabia escrever. mas dominava a arte de equilibrar – e assim nasceram as marés