.................................................................................não tirem o vento às gaivotas

31/05/2011

não estou louco. só sou cruel






«Sabiamente, Henry James aconselhava os escritores a não escolher um louco para personagem principal de uma narração, pois não sendo o louco moralmente responsável, não haveria verdadeira história para contar.» Gore Vidal - in Delírio, Laura Restrepo



mas tu estás louco? não. nunca saberia compor uma loucura com palavras. se fosse música. talvez - a loucura de um homem depende sempre da companhia de quem o escuta – na maior parte das vezes estou só. penso só. ouço o que digo. o ego precisa de silêncio – mas é nesse silêncio que percebo a crueldade com o que não gosto. por isso digo: não estou louco. estou é cruel com o que não gosto. e muitas vezes não gosto do que penso. parece-me isso um pouco louco – outras vezes não gosto da companhia. é nestas alturas que fico quase louco – seria trágico trazer-vos para a companhia de alguém como eu: alguém cruel



24/05/2011

agora sei que sei






outras mãos tomaram conta de mim. mas as tuas. com tantos anos. com tantas rugas. com tanto tempo. são as únicas que reconheço quando as sinto no que resta de mim – sei que são minhas mãe – agora sei que sei – agora



23/05/2011

calmamente por entre os dedos dos pés e as asas




                                                                       jorge reis-sá



o mar é o meu refúgio , nele
me largo aos dias que me restam

tu, única gota que
deixei um dia entrar no meu coração




jorge reis-sá - a palavra no cimo das águas



22/05/2011

o outono não acaba







nunca acaba. as mãos nunca acabam. elas escrevem como sempre. com o mesmo cheiro a mar. com a mesma gaivota a voar em círculos. bem sei que os círculos estão cada vez mais fechados. mas não fiques triste. estão assim porque aprenderam a  acalmar os ventos. mesmo aqueles que se fazem a norte dos olhos. lá para os lados do desalento. do fim do mundo –  nesses dias. amiga. nesses dias os olhos procuram sempre o fim do mundo. muitas vezes perdidos. desnorteados. confundidos. amedrontados pelo que ouvem aqui e acolá – mas sabes. amiga. eu sei que sabes. sei tanto de ti que posso dizê-lo com toda a certeza: tu sabes que o fim do mundo fica para lá do horizonte. é o que vejo todos os dias ao entardecer. quando o sol cai e a escuridão rompe pelas palavras como um farol dos que escrevem com a noite – este farol. minha amiga. cuida de mim. não. cuida de todos aqueles que se atrevem a escrever com o corpo encrespado. como tu amiga. como eu que sou teu amigo – procuramos tudo dentro do corpo. até as palavras – muitas vezes. sem o corpo compreender. a carne cansa. desiste do belo. enruga. começa a cair aos pedaços. como se de lepra se tratasse – sabes amiga. descobri que as letras também caem. caem porque é outono no corpo. e no outono as folhas cobrem sempre o  chão em silêncio. o sol encolhido amarra-se às árvores com a luz que sobrou dos dias grandes. segura pequenas primaveras – também nós seguramos primaveras. e ficamos ainda mais belos quando não temos palavras um para outro. belos porque sabemos existir em silêncio – mas minha amiga. as letras não enganam o sol. o vento frio anuncia as primeiras geadas nas mãos onde ainda cabe tudo. mãos que apertam as janelas contra o peito – mas a vontade ainda é silêncio. a vontade ainda é outono.  ainda há folhas por cair. ainda há outono no ar. outono dentro da janela – lá fora. do outro lado da janela que me segura. as árvores vivem agora despidas – no chão as folhas. nos ramos demoram-se os últimos sorrisos. como é possível sorrir. amiga. quando o corpo está nu e o vento é um mundo desconhecido – ainda ontem era verde. ainda ontem o mundo era verde. verde esperança. ainda o tenho à frente dos olhos. dentro das mãos. dentro da janela. dentro do hoje que quero falar contigo em silêncio verde. com palavras fortes. verdes. capazes de resistir ao vento que teima em correr entre os dedos também – hoje amiga. hoje minha querida amiga. que o dia está com um sol que só apanha metade da janela onde estou todo. e tu. a todo o momento podes aparecer em silêncio. e em silêncio dizes-me: dizes-me silêncio. porque as folhas continuam a cair em silêncio. o mundo não acaba com os silêncios enquanto houver árvores. e há tantas árvores despidas como eu. como tu. despidas pelo outono. despidas porque gostam de meter as mãos por dentro de si para aquecer os gestos que querem deixar partir com as folhas de outono. folhas das árvores abertas ao tempo. e são tantas – sabes amiga. são tantas. conto uma. duas. três. quatro. cinco e mais. e cada vez mais mundo. e o tempo a passar entre elas em forma de vento – hoje. minha amiga. é outono. é outono porque me despi para ti com palavras feitas de folhas. é um outono bonito. mesmo estando eu deste lado da janela e as folhas do outro lado. mas estou feliz. estou tão feliz que estou a fazer de conta que sou o vento. amarro-me nas folhas que fazem o outono e sopro para ti. sopro para o teu fim do mundo. sopro com o peito cheio de palavras que ficaram por dizer. mas se vires folhas no ar. belas. harmoniosas. livres. sorridentes. não tenhas medo. é o meu outono a fazer primavera na tua vida



15/05/2011

quando o simples não basta







hoje o dia está bonito. tenho tantas palavras simples para vos dizer - tenho só medo de que tão simples nenhum de vocês perceba como o dia. aqui. está bonito -  tenho que arranjar uma maneira bonita de vos dizer que se pode chorar em dias bonitos. com palavras simples. palavras molhadas pelo tempo bonito que descobri atrás dos meus olhos


13/05/2011

filomena




                                                             foto - sampaio rego


bom dia filomena!

bem sei que ainda é manhã cedo. mas o sol que nasce para lá da janela já despontou. já abriu vida dentro dos teus olhos. talvez tu e o sol tenham um acordo secreto para acordar: tu abres os olhos e o sol descobre a vida para ti – é manhã. e todas as manhãs abrem como se abrem as tulipas presas a moinhos de vento. arrancadas à força da terra para poderem espalhar cor pelo ar. e conquistar nas feições palavras de confiança que inventas para fazeres o mundo feliz – hoje. na minha janela só há sol porque tu acordaste a ler – se tu soubesses como as palavras são capazes de fazer sol – talvez saibas – eu é que nunca soube que as palavras podem sempre ser mais bonitas quando ditas como flores: com cor. com aroma. com alegria de quem sabe que apenas nasceram para dar sorrisos aos dias – filomena quer dizer amiga da música. dizem os livros que foram os gregos que inventaram o teu nome. acredito porque sempre ouves os sons escondidos nas letras que deixo em papel comum. acredito porque já te ouvi trautear palavras que apenas eu conheço. acredito porque sempre me falas com a harmonia dos sentidos. às vezes as palavras são música. ouço. outras. a música é todas as palavras que guardo para mais tarde fazer escrita. sorrio – não sei se tens alguma ilha com o teu nome. um mar. uma estrela. um quadro. um caminho. não sei. e também já não me interessa. agora tens estas palavras. chamam-se: filomena



09/05/2011

dualismo em oposição







podem pensar que estou louco por escrever isto. não estou. estou apenas cansado de me falar – nunca me respondo – o outro. o que vive comigo. nada me diz. calou-se de cansado com o meu tempo – pensa que estou desmiolado e. sempre que quero dizer coisas estranhas. vira-me as costas. pensa que são coisas inúteis. ocas. fúteis. sem futuro. sem terra. sem braços entrelaçados – estou cansado – habitamos dentro do mesmo corpo. partilhamos os lençóis. os cristais presos aos aros das janelas. a luz do teto. os ponteiros de um relógio ausente. os pesadelos que sobrevivem agarrados à almofada. a cadeira onde escrevo. preta. alta. gasta pelo roçar das dores que fazem a escrita. partilhamos tudo. tudo menos os sorrisos. estes são sempre no outro que me olha com desdém.  decompõe a face enquanto as feições tomam a forma de troça – no fundo. bem lá pelo fundo. somos tempo. somos contraposição silenciosa: não sou. não vivo. não falo. não respiro. estamos no mesmo tempo. vivemos. respiramos. falamos. e olhamos para coisas diferentes com olhos iguais – um dia sonho eu. outro. sonha ele. um dia tenho mau dormir. outro. dorme ele mal. nunca temos uma noite inteira. estamos sempre desacertados. nascemos desacertados. um quer trazer os sonhos para dentro de si. o outro quer levar o que sonha para a vida – não nos entendemos – não há forma de resolver isto. não há. não há tempo. há apenas um tempo para o mesmo olhar – escrevo. escrevo para não estar só. sempre que estou só. escrevo - o outro olha-me a escrever. sabe que estou a escrever. sabe que não estou só. nem com ele. sabe que escrevo para não estar só. e para não estar com ele 




07/05/2011

aos domingos






com a máquina o meu pai - o dia. com o passar do tempo. parece-me parado. como a fotografia - a minha irmã continua com as mesmas feições. o meu irmão continua a fechar os olhos para o sol. a lurdes. segunda mãe. continua a rir amarrada à sua fé. e até a minha mãe. hoje ainda mais bonita aos 86 anos. continua a segurar em mim com o dobro da preocupação – dar movimento à foto é fácil. basta escutar a voz do meu pai a dizer: agora não se mexam. não se mexam. já está – de seguida. uma gargalhada invade o sossego da família – é um pai a viver como todos os pais deveriam viver – tenho a certeza que era domingo. nesse tempo havia sempre mais família aos domingos