31/07/2011
cadáver
25/07/2011
doença mental e a cura pela palavra
hieronymus bosch
arte – arte
de escrever. escrever arte – com a minha arte de escrever quero dizer: estou cansado
da arte que não é feita por homens que comigo partilham todas as palavras.
estou farto. [ilustre casa de ramires] – a minha arte só precisa de papel. é
minha. nasce da vida que vivi e do que colhi de quem passou por mim – escrever
é. no fundo. dizer coisas. algumas dessas coisas encontro dentro do corpo. mas.
em pânico. deixo-as cair em papel – confesso que não sou dono desta vontade de
escrever. vem de dentro para fora. sem controle. sem filtros e sem limites –
escrever é uma purgação. a minha forma de evitar o suicídio coletivo dos dedos.
dos ouvidos. dos olhos. dos aromas. e até da boca. possuída pela força do
vómito. que fala sem que ninguém a entenda – escrever é um estado maníaco-depressivo.
faz sobreviver. dá sentido às palavras esquizofrénicas de um corpo são com uma mente
louca – escrevo para me salvar. então parto como os cruzados no tempo das
cruzadas. também quero conquistar o paraíso. mas sei. mesmo com pouca lucidez. que
nunca terei setenta e duas virgens à espera no fim do texto - escrevo porque preciso
de escrever. estou doente. diariamente injeto palavras libertadas de mim. daquilo
que sobrevive em mim. na revolta. na amargura. na dor. na vontade. na expiação
dos demónios que criei – escrevo palavras desprendidas. não das mãos. mas do
meu inferno. uma vontade de expiação que incendeia as mãos. e quando o mundo arde.
eu fico em paz – mas a cabeça já não está igual. sinto-me esburacado.
desfigurado. amargurado. e os amigos perguntam: ele escreve o quê? mas para os corvos. eu sou apenas alguém que
sabe juntar as letras do abecedário. e gargalham – bem queria saber escrever arte.
mas o que sinto dentro desta cabeça é confusão. o sujeito em luta com o
predicado – saudável. penso nos momentos em que sou capaz de dizer: não
escrevas mais – mas não adianta. este cancro cresce. não consigo estripá-lo.
talvez um dia me mate. ou talvez me espere um colete de forças. paredes brancas.
e seringas a baloiçar. entre cair e não cair. e a salvação venha de um homem
vestido de branco a dizer: tome tudo de uma golada. ou corte o fio de uma
seringa. e nunca mais reconhecerá as letras. nem a vida. nem os amigos – no fim.
restará apenas a esperança de morrer voltado para o mar. olhando uma gaivota
cinzenta a cortar o vento de norte para sul – sou louco por palavras que
significam tudo e nada ao mesmo tempo. talvez esteja doente. talvez
maníaco-depressivo. mas nos textos encontro a única salvação possível: um mundo
onde a arte de escrever me salva do meu próprio silêncio – não quero parar de
escrever. quanto mais textos escrevo. mais me liberto. menos pessoas sabem que.
no interior desta doença. sobrevive o egoísmo – escrevo por mim. para mim.
escrevo para ser feliz. para estar longe dos outros e da arte vazia dos que me
dizem: bom dia. como se isso bastasse para curar a alma – quero raiva para
dizer tudo o que me faz doente. quero raiva para sobreviver ao pesadelo de uma
morte que se repete diariamente dentro de mim. do funeral das palavras. da sua cremação.
e das cinzas lançadas ao mar no meio de gargalhadas – escrevo. não como vosso
escravo. nem vosso dono. escrevo porque estou no abismo. e sempre que estou no abismo.
sou feliz. não há nada para pensar nos abismos. a não ser escrever o que escorre
nas mãos – todos os que gostam de escrever sabem que só no silêncio se é feliz.
não há palavras. há ideias silenciosas. não há pessoas. há apenas luar e
estrelas – e um dia. o homem da barca chegará. e eu. com os meus escritos na
boca. farei embarcar uma parte de mim. a outra ficará aqui. a falar com as
palavras – talvez hoje eu esteja lúcido. e as palavras não morram de loucura
23/07/2011
josé saramago e pilar del rio
josé saramago
tal como saramago não tenho medo da morte
- tenho medo do que deixo por fazer. do que não fui capaz de escrever. e das
folhas que deixei em branco - tal como ele. quero ainda mais tempo. mais vida -
quero falar o que não sei escrever. ou escrever o que não sei falar
* josé
e pilar - os dias de josé saramago e pilar del rio num filme de josé gonçalves
mendes
18/07/2011
morto por o complemento direto e indireto
foto do euleuterio ramos
tenho vontade de matar complementos diretos
e indiretos. atrapalham o andar pelo tamanho que ocupam – no bolso uma vida agarrada
a palavras que nunca usei – palavras que não servem para nada. nem como pedras
que se podem arremessar – o embaraço é o de não saber desenvencilhar-me dos
complementos. entulham-me os bolsos. sem utilidade. nunca encontram uma
preposição: a ou ao. ficam sempre no eu – mas a vida não para – mascarados de
probabilidade tornam-se complementos relevantes. influenciam a forma como equilibro
a serenidade do que antevejo como negativo. e do sentimento que produz em mim
por antecipação – fico aborrecido. impertinente. irritado. obrigado a fazer uso
de um juízo que produzo cada vez menos. mas que ainda preservo. permitindo controlar
os impulsos irracionais – mas a vida está cheia de complementos que não
complementam nada – ah! complementos que não complementam. ninguém escreve uma
expressão destas num texto que quer falar de complementos diretos e indiretos.
que existem sem valor literário para quem ouve. mas. infelizmente. gritam
dentro de mim. às vezes dentro das palavras. como sinos a tocar a defunto. até
fazer sangrar mãos e ouvidos. de quem como eu conhece a dor de não ser ouvido –
não tenho coragem para dizer o quê? ou quem? mesmo que os verbos assim o exijam
– o que sei. é que ainda escrevo há muito pouco tempo. e a gramática é tão
extensa e confusa. por mais livros que leia. há sempre mais um complemento oblíquo.
um modificador verbal. e quando damos por ele. temos o sujeito e o predicado à
luta. cada um com a sua razão. a vozeirar e gesticular que cada um deles é mais
importante. é então que o vocativo entra: ó. meus amigos! são os dois
importantes. basta que se dirijam à pessoa certa. basta alterar o modificador
moral. e dizerem: somos dois tolos. lutamos hoje. mas não o voltaremos a fazer –
quando crescemos mudamos a voz. fica mais grave. mais indiferente ao sentimento.
eu não mudei de voz. mudei de ouvidos. é assim que cresço – quero ouvir-me na
boca dos outros – muitas vezes não é fácil entender a construção gramatical. talvez
seja defeito meu. burro velho não aprende línguas. mas que posso fazer? é penalizador
sentir as palavras na boca sem energia. e nos lábios o medo. deixámo-las partir
como se atirassem de um precipício. e esperamos pelo som do impacto – às vezes
morremos com as palavras e pensamos: não escrevo mais – todas as palavras
querem a sonoridade correta. o sentido certo. e também orgulho e honra no que
transmitem – não podem ser estranhas aos ouvidos de quem as ouve – sou um estranho
aos ouvidos de quem ouve. as palavras. sem arte e trabalho. mais cedo ou mais tarde.
ficam em silêncio para sempre – começo a tentar acreditar que estes
complementos talvez façam parte de mim. talvez tenham crescido com as pernas. com
os bolsos dos calções com suspensórios. talvez por não acreditar na vida depois
da morte. e saber que só a escrita me perpetuará – mas se não for capaz de
entender a arte de escrever. talvez a solução seja cortar-me pela cintura. deixar
as pernas levar os bolsos e com eles todas as palavras que guardei no seu
interior – o tronco. mãos e cabeça descansariam então em forma de busto.
cinzelado em granito preto. pousado num prado verde. em paz e com a inscrição
gravada: aqui jaz um homem que queria ser escritor e foi morto pelo complemento
direto e indireto – paz à sua alma – os bustos não falam e também não têm
bolsos
11/07/2011
o peso do mar e da memória
1.
sem forças.
preso ao destino. conto o tempo. o cheiro a mar envolve-me do lado direito. e à
esquerda. na montanha. as casas caem em cascata – nascem as primeiras luzes. dentro
das janelas a solidão desvanece com o nascer do dia. e as suas gentes olham
para o mar. interrogando-se porque que razão é tão grande se eles são tão
pequenos – também o meu pensamento cria memórias em cascata. a diferença é que
não estão viradas para o mar. mas para mim – dentro do corpo. a realidade
persiste. é dentro dele que confio a minha sanidade mental. enquanto pertencer
ao que lá guardo. existo – quando pego no sono. a consciência fala-me ao ouvido:
sampaio. o mar está no olhar. tal como as memórias que guardaste – hoje. abro
memórias tão grandes quanto o mar que se vê das casas. não em extensão. mas em
ausência. carregadas de saudade – o dia levanta-se e a noite cai. eu levanto-me
pela manhã. e caio pela noite. e pergunto-me no escuro: onde tenho as mãos?
porque não sou capaz de abraçar o que vejo às escuras? tenho imenso nestas
mãos. até os dias que me trouxeram até ao dia de hoje. que é como quem diz: só
existo porque os outros me fizeram existir. mas no mar sou pequeno.
insignificante. e o que valho para além de mim? só a vontade de escrever.
escrever o que se fez saudade. o que te faz cair na dor sempre que escurece – só
as palavras saberão dizer o tamanho da dor que guardo nos olhos – o mar em mim
representa tudo: a família. os amigos. o medo. a dor. a saudade. até as
palavras que gostaria de escrever e não saem de dentro de mim. talvez seja
pelas casas caírem em cascata. talvez porque nasci assim e não posso ser outra
coisa – nos dias de calmaria. fico com medo. tudo em mim é confusão. as mãos no
ar. a cabeça também. e até as palavras são folhas de outono. caem sem destino
certo. entregues ao vento. levadas para onde já não as posso encontrar – silêncio
em terra. tempestade no meu interior. foi assim que me acostumei a viver – mas
hoje. eu caio por mim como as casas caem em cascata. estou rodeado de um
silêncio que é mesmo silêncio. e quando o silêncio se esconde dentro de si. eu
sou obrigado a escrever todas as palavras que nasceram de beijos e abraços. e
também aquelas que me obrigavam a dizer: gosto de ti – nasci sem boca. estas
mãos que me caem contra o papel não foram feitas para escrever – mas insistem –
repito tantas vezes: sampaio. os dedos são grossos. e os lápis são sempre tão
frágeis. porque insistes? para sobreviver ao silêncio das noites – malditos
lápis. partem-se sempre que procuro uma outra palavra mais difícil. ou apenas para
alguém especial. e que não sei dizer com a boca que tenho – que vergonha nascer
sem boca. que vergonha não ter forma de pronunciar palavras que bem podiam ser
abraços – quando quero falar. choro. e quando choro. quero esconder-me dentro
do mar. que penso ser meu por usucapião – nunca saberemos viver um sem o outro
2.
aqui estou.
parado. a olhar para os anos nos olhos de quem me gosta. e gostam há tantos
anos – como é possível gostar de alguém como eu durante tanto tempo? dizem que
é amor. dizem que gostam de mim com um amor incondicional. e eu fico a olhar o
mar e as casas com luzes. com gente dentro que nunca vi – saio de dentro das
luzes e fico apenas com o belo: o meu mar – olho apenas com os olhos: quase
redondos. quase castanhos. quase transparentes. quase pêndulos num corpo que
não cai. nem no mar. nem dentro do que sou – estes olhos são um castigo de deus. nunca
estão em silêncio. engolem o futuro. dobram-me o corpo em dor para um tempo que
ainda não chegou. tornam o futuro presente – silêncio. eu e o mar. anulamos o
barulho um do outro. as bocas fechadas guardam as últimas palavras. apenas os
olhos falam. é preciso enganar o tempo. enganar
as pálpebras. enganar as noites que ainda faltam chegar. hoje é o dia perfeito
para se ouvir tudo. até o silêncio do mar – ouço o meu primeiro choro. a primeira
palavra. o primeiro passo. o primeiro medo. a primeira oração. a primeira
reprimenda. a primeira bênção. e o tempo sempre a ir e a vir com mais memórias.
tal como as marés – dentro deste ir e vir do tempo nada do que está feito pode
ser refeito. nada do que foi dito pode ser silenciado. nada do que me trouxe
aqui desaparecerá no mar para voltar a nascer – sou feito de água. sal e esperança
– um dia. estes meus olhos castanhos. hão de encontrar sossego. uma ilha
rodeada de certezas – tal como um corsário do passado. roubo lugares para
procurar tesouros que nunca encontrei – balanço dentro de mim. e interrogo-me:
caio para que lado? não sei. talvez para os dois lados. para me equilibrar –
estou completamente perdido dentro de tudo o que os olhos veem – e eu aqui. preso
a um corpo que não para de crescer. sem parar de querer o que nunca vai ter – sou
o que abril me deu
3.
amarro as
mãos e sinto o coração a bater. e eu ali a olhar para os anos. anos que gostei.
anos de orgulho. e eu ali. apenas filho. de mão dada. a equilibrar-me para não
cair. como se estivesse a dar os primeiros passos – mergulho ainda mais fundo
no tempo. o passado acontece como se sobrevivesse apenas para aquele instante –
ao lado. sentado. o meu pai sorri. só lhe faltam as palavras. está ali. tudo o que gostava
dele está ali. a tombar para o meu lado. só o braço deixou de acenar. aquela
maleita quase te levou. e até o sorriso continua perfeito. pendurado no bigode que
mais não é do que uma linha que separa a boca do corpo magoado – apetece-me ficar
aqui para sempre. tenho aqui tudo. até o que pensava ter perdido – não souberam
que o tempo também se acaba – tudo acaba. agora sei que tudo acaba. e o meu
momento vai acabar – aperto as mãos com força. as mesmas que me acarinharam nos
primeiros dias da vida – um dia acordei e não as vi mais. tinham fugido para
sempre. e eu sem saber parti também com elas – nasci para não ser quase nada. apenas
mais um menino que falava sem querer ser ouvido. demasiado novo. e para te
zangar não queria dizer: sou teu filho porque fiz isto. a minha obra vai para
além do que os teus olhos alcançam – mentira. não tinha nada para mostrar. nada
para dizer que te orgulhasses. só tinha o teu sorriso guardado em mim.
invisível para os outros – sabes. mãe. tu que me viste ficar sem pai. este nosso
coração está sempre a doer – dói pela perda do pai. noutro dia dói porque preciso de
lembrar que eu sou carne da vossa carne. e não suportaria perder esta dor – há ainda
outros dias em que dói pelos teus netos. agora também pelos bisnetos. é a nossa
família mãe.
somos nós – perdoa-me mãe. mas
não sou capaz. não fui capaz de aprender o que tu aprendeste. o que tu fizeste.
o que tu sempre me tentaste ensinar. nasci diferente. ando por aqui ainda sem
saber como ser filho. bem sei que para ti não é importante. sempre irás
encontrar uma razão para dizeres: é meu filho e eu gosto dele assim – mas mãe. há os
meus filhos. e estes precisam de saber que o teu filho não soube levar-te à
boca tudo o que tu merecias. precisam de saber que os avós são a única razão
para hoje terem o vosso nome – prometo-te que um dia saberão dizer: chamo-me
assim porque os meus avós se chamavam assim. e os pais dos meus avós também se
chamavam assim. e nós nos chamamos assim porque somos uma família – mas a tua carne
já não resiste como antigamente. já não é igual. está cansada pelo tempo. está ali
apenas para te proteger os ossos que já não são ossos. são raízes amarradas ao
ar que respiramos – não quero que descubras que o tempo se faz das batidas do
coração. quero sentir as tuas mãos. quero amarrar-te para sempre dentro destas mãos
que estiveram tanto tempo sozinhas. quero afagar a tua pele que é também a
minha. e ver no teu olhar que as dores que dizem que estás a envelhecer não
existem quando as minhas mãos amarram-se às tuas – não desistas mãe. não expulses
o tempo. ainda quero dizer-te tantas coisas. coisas que ainda não consegui dizer.
preciso de envelhecer um pouco mais. ficar mais sábio. mais tranquilo. e entre
tanto. tu também ficas mais bonita – não compreendo. parece que um filho só aprende
a falar quando o coração deixa de bater – encosto a cabeça no teu ombro e ouço
o nosso sangue a correr como se houvesse festa. e ouço: deixa cá ver um beijo
meu filho – ainda tens tempo para me ensinares a dizer todas as palavras que
mereces – foram tantos anos mãe e eu sempre imaginei que os corpos não partiam.
e as palavras não faltariam. e o tempo resistiria. mas é tudo mentira minha mãe.
a vida mentiu-me. eu também estou a envelhecer. e eu. desesperado. com medo de
não chegar a tempo – e foi assim que disseste: quando deus me levar. quando estiver
de partida para o céu. vou pensar que estou a voar. a andar de avião – eu
também minha mãe
04/07/2011
eugénio de andrade : poema à mãe
eugénio de andrade