uma janela voltada para norte. um quarto. uma cama.
uma cruzeta vazia. uma cadeira de pinho onde o casaco preto repousa. carregando
tempo sobre as costas – à esquerda da cabeceira um par de sapatos. novos.
pretos também. sola de cartão. aguardam a chegada dos pés – imperturbados. moram
de costas para a janela. a vida é apenas sons a preencher ruas que já não
conheço – à direita da cabeceira. um lápis repousa em cima de uma folha de
papel que. quero acreditar. está em branco. aguarda a mão que um dia esmagará o
coração até que a dor do bater termine – ao lado. meia dúzia de molduras. fotos
são dor. são corações expostos. todos os corações sofrem – quero-as vazias. sem olhos. sem sorrisos. sem corpos.
sem marcas do tempo. longe da vista. longe do coração – quero a cabeceira limpa
do peso da vida. quero amnésia. quero esquecer-me de mim. talvez assim deixe de
existir. talvez assim possa partir sem que nenhuma foto sinta a minha falta –
ninguém pode chorar pelo que não há. por quem não existe – resta-me o cheiro dos
retratos que um dia foram pessoas – embelezo o vazio das mesinhas com uma jarra
branca presa a malmequeres em agonia – sentado no chão. onde vivo. dobro a
camisa branca que também é tempo. abotoo o botão junto ao pescoço. colarinhos engomados.
aflitos com a rigidez das mãos. desabam sobre mim – alinho as costuras pelas formas do corpo.
nem mais. nem menos. as costuras são importantes. têm a talha de quem as
produziu. os olhos de que quis que encaixassem às formas de um pano que antes
de ser cortado não tinha nome. era vendido a centímetro. estendido num balcão
de madeira. o comerciante olhava e dizia:
-- o menino só precisa de
cinquenta centímetros de pano
e eu dizia que quarenta e nove
deviam chegar – meto as mangas para dentro do peito. escondo as mãos. acerto os
punhos. na vertical dos colarinhos e deixo que brilhe o bolso do lado do
coração – com um bordado. a letra pequena. onde ainda posso ler: nasceu a
tantos dos tantos. do ano do senhor de mil novecentos e qualquer coisa e partiu
para a companhia do senhor no ano de dois mil e. porra. os olhos estão empastelados
e a letra estremece. talvez esteja a chorar. talvez já esteja morto. talvez
estas mãos que ainda me abraçam sejam de outro mundo e tenham por lapso. vindo até
mim para me dizer que o futuro existe noutra dimensão – talvez a infelicidade
seja isto. talvez ser feliz seja ser doido. não pensar. não sonhar. não poder
morrer porque se esteve sempre morto. e os mortos não falam. logo tudo o que eu
ouço. mesmo quando estou a dormir. são só pássaros a voar. gaivotas à procura
de peixe para alimentar a alma e justificar a vida dos peixes – talvez um
monstro me leve e se encontre a justificação para a minha vida. talvez um dia
saiba que as paredes sempre foram brancas porque sempre vivi num manicómio.
onde o castigo é obrigarem-me a escrever. talvez um dia abra a porta e veja. penduradas
nas árvores todas as palavras que perdi dentro de mim. e por baixo. essa gente
que se diz minha amiga. espera de braços abertos o fruto que se solta dos meus
olhos – onde estou se não estou em lado nenhum. onde estão aqueles que um dia
disseram que tinham a mesma loucura. viviam no mesmo hospício e eu que sempre
disse: não. não somos loucos. somos apenas jovens – agora. janto voltado para o
douro. onde a água doce corre para o mar. indivisível. guardada por margens
feitas de luz e vozes que não se casam de dizer que o tempo e a água caminham
como se fosse ali que acabasse tudo. e depois. afinal. é na imensidão do mar ou
do tempo que a renovação acontece e tudo começa de novo – não falo da morte.
que para mim essa é eterna. falo ainda da vida. da imensidão da vida – tal como
a água doce acaba no mar eu acabo a dizer: claro que sim. o mundo é isto. os
abraços. afinal. renovam-se. e a água. como por milagre. parou – eu também – hoje
voltei a envelhecer. hoje voltei a enlouquecer – talvez seja o contrário. talvez
hoje esteja lúcido. talvez os outros é que tenham enlouquecido