III.
a
morte do cavalheiro é
também a morte das palavras que não soube escrever. o suicídio é adiado pela honra.
resistência – escrevo erro. ninguém me reconhece pelo que escrevo. sou assim. retorcido
para dentro do que penso. procuro – cavo o que é meu. e mais um buraco. e
outro. e mais outro e todos os buracos ocupados com nada – como o vedor procura
a água eu procuro as palavras. e tudo seco. e a vara aponta para todos os
livros que guardo no tampo da secretária – cavalheiro. sonhador por dentro. louco
por fora. e o homem no seu tino perfeito – e as celebridades ali. mesmo ao pé
de um texto destruído por mãos de quem escreve por necessidade. nada – dostoiévski
tem uma frase que ilustra bem esta loucura doentia de fazer do nada aconchego:
“não podendo encontrar o seu lugar no mundo, o homem deixa de ser homem,
tornando-se um sonhador” – tal como zero mais zero é igual a zero. também o
nada mais nada é igual a nada. utopista – tudo isto é nada – quem sabe se a loucura
de escrever nada não é mais que um sintoma de deficiência narrativa no enredo
do que quero escrever – um dia queixei-me a um médico de dores intensas nas
articulações das falanges – disse-me que talvez fosse défice de cálcio. não há nada
a fazer. ainda não há cura nem prevenção para esse mal – aconselhou-me a fazer
muitos exercícios com os dedos. assim faço. agora todos os dias. as dores não
param de aumentar. não sinto melhoras – tenho dias em que as dores aliviam um
pouco. nas mudanças de textos. sempre que começo algo novo sinto-me mais
confiante e as dores ficam adormecidas enquanto o cavalheiro sonha. expectativa
– é assim desde o dia em que comecei a tentar escrever. dores. mais dores e
mais dores – desespero com o silêncio das mãos pregadas no papel que não para
de florir estrelícias. esperança – esta flor não necessita de sol direto para
abrir em flor. ambição – os cavalheiros que escrevem precisam – o tempo de quem
escreve é feito de escravidão. sentado. ali fico à espera do milagre dos olhos.
do ver dentro. do ver fora. do sentir dentro. do sentir fora e rabisco o que
vejo. o que sinto. e a palavra embala a sofrer. vai para o papel? não. e mais
outra e outra e os dias passam para um homem que não gosta da idade que tem – escrevo
para não envelhecer – corpo curvado. um sorriso para dentro. um ai. um acenar
de cabeça leve. a testa a franzir no sentido do queixo. e o corpo a cair para o
lado do nada – só ele é que ainda acredita que existe vida nos buracos do corpo.
demência – e depois o sentir do puxar das mãos para trás das costas enquanto os
olhos gritam raiva por não alcançarem tudo. papel – tudo se torna maior que o
cavalheiro. e o nada é gigantesco – no papel nada. no cavalheiro nada. dentro
do homem tudo o que pode matar – o tudo é agora imenso para quem não sabe
escrever – atiro o corpo ao chão. as mãos à guilhotina. e a cabeça ao fundo da
terra onde os bichos nunca escolhem os cadáveres – dentro da terra não há
cavalheiros. só homens. todos iguais. sem nada que os traga à vida. só à
superfície as lápides falam da eternidade do tempo. livros – o lápis partido
dois dedos acima do meu tamanho descansa perpetuamente no rascunho de um
cavalheiro sem nome. lápide vazia – sobra a música. johann sebastian bach a
esmagar com suavidade a esperança de uma clave de sol desenhada em papel de
música. piedade – escrevo como se hoje fosse o meu último dia de cavalheiro –
escrevo com a mesma bondade com que as gaivotas vivem na perpetuidade do mar. e
tomam cada pedacinho do oceano como se fosse a sua casa. tranquilidade
[3
de 4] – contínua