IV.
sou então
este. este que se apresenta agora sem memória. morto – de corpo e alma – definitivamente
morto – olhai-me. olhai-me com esses olhos enormes e precisos – amigos – gente
que gosta. olhai-me – os amigos sempre tiveram olhos enormes. precisos. bonitos.
e sempre viram certezas que eu nunca vi – sempre gostei de me ver nos vossos
olhos – amigo é um nome que é mais do que uma coisa. é mais do aquilo que sou.
amigo ilumina. encandeia num finíssimo fio de luz. é vidro de murano. frágil e
sofredor nas palavras trocadas em noites de silêncio – amigos são sorrisos que
duram uma vida. são flores. girassóis que ocupam campos de sentimento que
aprendi a cultivar – quando existe um amigo há sempre uma razão para morrer
envergonhado – nunca quis que um amigo se envergonhasse – amigo é um rosto que
nos cobre o corpo num absolutismo consentido. desejado. infantil – somos então
mais altos do que as torres das igrejas. e os pássaros. que nascem nas árvores.
como os de ruy belo. segredam bem-aventurança em alvoradas de abraços – sou lágrima.
que mais poderia ser? talvez um sorriso numa face amiga – sou revolta. sou um
raio de uma coisa que pode ser tempestade. ou agonia. ou luz. ou um dia feliz no
dobrar dos sinos. ferro-velho vendido a troco de nada – nada mais tenho para
vos entregar para alem destas palavras escassas. e que me matam de raiva por
serem tão pouco – todos mereciam mais. todos – amigos que [me] gostam – a vida
tirou-me uns quantos. o envelhecimento os restantes – estou morto num corpo
inteiro. num nome inteiro. numa vida que morreu um pouco por cada primavera – nasci
em abril. lágrimas mil – não adianta. morro sem nome. morro dentro de um sonho
que não para de gritar erro – agora sou este que aqui resiste neste cheiro a
incenso. a flores. a água benta. a orações. e ao último pai perdido no céu – não
estou em lado nenhum para além deste corpo inquieto – rodeia-me satanás num
silêncio que incendeia o terror absoluto. e me leva de arrasto com o que me sobra
da memória – a vida não passa de um sudário invisível – rezem. rezem e acendam
uma vela do meu tamanho que não é mais do que um palmo do que fui – rezem.
rezem e falem da minha vida reduzida a um sopro de som – rezem. rezem e falem
dos meus feitos que não passaram de defeitos – rezem. rezem e agridam a minha
escrita que nunca foi de artista – rezem. rezem pelas minhas lágrimas porque
foi nestas que me afoguei – rezem sobre estes ouvidos mortos pois jamais vos escutarei
– estou morto. finalmente – preciso agora de empurrar a bala para dentro do
silêncio e abafar o eco do disparo – careço de um descanso arrependido. há
dentro de mim um corpo que jaz morto de tudo – o fim da vida é o fim da memória
– a morte sou eu. ausente de mim numa sala vazia. estou só. insignificante neste
corpo vestido de mim. sobram-me as mãos dobradas sobre um peito sem sentimento.
por cima de um coração que nunca foi verso. e um girassol coberto de terror
anuncia que a vida é apenas um dia mal contado – e o som das palavras é agora cada
vez mais baixo. inaudível. com vergonha do defunto. enquanto os gritos de
arrependimento se escondem por baixo dos sapatos que me pisaram – mesmo morto estremeço
– rezem enquanto o fogo queimar o que me resta da pele – a pele é tudo o que
sou. por dentro. o vazio – a morte é um vento brando que nos leva
sorrateiramente para um sono interminável – finalmente a noite desaparece para
sempre nos meus olhos – deixarei então de ser peso. de ser matéria. de ser rasto.
de ser um traço na minha rua – que me perdoem os que gostam de mim. mas não
quero mais memória – um corpo sem memória é um corpo quente. livre da dor. um
corpo voltado a sul – o meu destino é uma coisa do mundo que vai morrer sem
passar de boca em boca – escutem. escutem com atenção e apregoem a cada criança
que queira nascer: quem não sabe ao que vem nunca compreenderá porque parte – assim
estou. estendido nesta urna feita de tempo. morto. silenciosamente morto. e a
língua sem saber dizer nada sobre esta partida que se alimentou de sonhos – finalmente
consumido pela ambição de um ideal que me recusou a eternidade – as lágrimas
também podem sorrir