.................................................................................não tirem o vento às gaivotas

30/09/2016

o epitáfio da memória - IV [fim]



foto - sampaio rego

IV.

sou então este. este que se apresenta agora sem memória. morto – de corpo e alma – definitivamente morto – olhai-me. olhai-me com esses olhos enormes e precisos – amigos – gente que gosta. olhai-me – os amigos sempre tiveram olhos enormes. precisos. bonitos. e sempre viram certezas que eu nunca vi – sempre gostei de me ver nos vossos olhos – amigo é um nome que é mais do que uma coisa. é mais do aquilo que sou. amigo ilumina. encandeia num finíssimo fio de luz. é vidro de murano. frágil e sofredor nas palavras trocadas em noites de silêncio – amigos são sorrisos que duram uma vida. são flores. girassóis que ocupam campos de sentimento que aprendi a cultivar – quando existe um amigo há sempre uma razão para morrer envergonhado – nunca quis que um amigo se envergonhasse – amigo é um rosto que nos cobre o corpo num absolutismo consentido. desejado. infantil – somos então mais altos do que as torres das igrejas. e os pássaros. que nascem nas árvores. como os de ruy belo. segredam bem-aventurança em alvoradas de abraços – sou lágrima. que mais poderia ser? talvez um sorriso numa face amiga – sou revolta. sou um raio de uma coisa que pode ser tempestade. ou agonia. ou luz. ou um dia feliz no dobrar dos sinos. ferro-velho vendido a troco de nada – nada mais tenho para vos entregar para alem destas palavras escassas. e que me matam de raiva por serem tão pouco – todos mereciam mais. todos – amigos que [me] gostam – a vida tirou-me uns quantos. o envelhecimento os restantes – estou morto num corpo inteiro. num nome inteiro. numa vida que morreu um pouco por cada primavera – nasci em abril. lágrimas mil – não adianta. morro sem nome. morro dentro de um sonho que não para de gritar erro – agora sou este que aqui resiste neste cheiro a incenso. a flores. a água benta. a orações. e ao último pai perdido no céu – não estou em lado nenhum para além deste corpo inquieto – rodeia-me satanás num silêncio que incendeia o terror absoluto. e me leva de arrasto com o que me sobra da memória – a vida não passa de um sudário invisível – rezem. rezem e acendam uma vela do meu tamanho que não é mais do que um palmo do que fui – rezem. rezem e falem da minha vida reduzida a um sopro de som – rezem. rezem e falem dos meus feitos que não passaram de defeitos – rezem. rezem e agridam a minha escrita que nunca foi de artista – rezem. rezem pelas minhas lágrimas porque foi nestas que me afoguei – rezem sobre estes ouvidos mortos pois jamais vos escutarei – estou morto. finalmente – preciso agora de empurrar a bala para dentro do silêncio e abafar o eco do disparo – careço de um descanso arrependido. há dentro de mim um corpo que jaz morto de tudo – o fim da vida é o fim da memória – a morte sou eu. ausente de mim numa sala vazia. estou só. insignificante neste corpo vestido de mim. sobram-me as mãos dobradas sobre um peito sem sentimento. por cima de um coração que nunca foi verso. e um girassol coberto de terror anuncia que a vida é apenas um dia mal contado – e o som das palavras é agora cada vez mais baixo. inaudível. com vergonha do defunto. enquanto os gritos de arrependimento se escondem por baixo dos sapatos que me pisaram – mesmo morto estremeço – rezem enquanto o fogo queimar o que me resta da pele – a pele é tudo o que sou. por dentro. o vazio – a morte é um vento brando que nos leva sorrateiramente para um sono interminável – finalmente a noite desaparece para sempre nos meus olhos – deixarei então de ser peso. de ser matéria. de ser rasto. de ser um traço na minha rua – que me perdoem os que gostam de mim. mas não quero mais memória – um corpo sem memória é um corpo quente. livre da dor. um corpo voltado a sul – o meu destino é uma coisa do mundo que vai morrer sem passar de boca em boca – escutem. escutem com atenção e apregoem a cada criança que queira nascer: quem não sabe ao que vem nunca compreenderá porque parte – assim estou. estendido nesta urna feita de tempo. morto. silenciosamente morto. e a língua sem saber dizer nada sobre esta partida que se alimentou de sonhos – finalmente consumido pela ambição de um ideal que me recusou a eternidade – as lágrimas também podem sorrir



28/09/2016

a lápide da amizade



foto - sampaio rego

quando perdemos um amigo que nunca foi amigo a dor transforma-se num poema sem delicadeza. é lâmina. é borracha que nada apaga – quando perdemos um amigo que jamais será inimigo o sofrimento é um poema necrófago. é putrefação. é uma morte que não é morte porque eu e ele continuamos vivos – quando perdemos um amigo de uma rua que ainda é a nossa rua. a raiva é a boca de um lobo. é flecha trespassando a vida por inteiro. é o fim da ilusão – quando perdemos um amigo o caminho para a frente é sempre solidão

.

perdoa-me corpo porque estas palavras são de uma alma que nunca quis ser punhal

.

para um amigo que já não é amigo não há mais palavras garrote. a dor combate-se com dor. o sangue é para verter até à última gota – nem mais uma palavra fácil. justificativa. pacifista. indulta. ou cúmplice de meias verdades – sou agora a favor da pena de morte para as palavras que não dizem a verdade por inteiro – se não há meias vidas também não pode haver meias palavras – tudo o que vos escrevo é sufoco. raiva. contrição. e o corpo a resistir ao exorcismo enquanto o diabo exige sepultura definitiva. fogo. cremação – só o cheiro a carne queimada confirma que a morte existe – só perdemos um amigo para sempre quando perdemos o nosso corpo também para sempre – a dor já não é poema: é lápide

  


24/09/2016

a metáfora que se fez hipérbole



foto - sampaio rego


conheci um escriba que comprou uma metáfora para a transformar numa hipérbole. tão pequenina. tão microscópica. que um dia. enquanto escrevia. percebeu que todas as folhas estavam em branco – sentado. olhou para si e pensou: sou a minha própria figura de estilo – levantou-se. dirigiu-se à casa de banho. lavou a boca com dentine. olhou para o espelho. passou os dedos pelo cabelo espesso. e sorriu para a imagem que o reflexo da sua vaidade lhe oferecia. abanou as ideias com um movimento brusco da moldura do seu orgulho polido. e largou um sorriso maior tão grandioso quanto a entrada triunfal do arco da porta nova de braga – por fim. arrotou uma hipálage que há muito se enroscara no escroto soltou uma gargalhada e. como num ponto final hiperbólico. partiu feliz em busca da próxima metáfora


22/09/2016

quando o silêncio se faz outono


foto - sampaio rego


cai o sol. cai a folha. cai a árvore. cai o frio. cai o homem e o descanso torna-se eterno – é então que o silêncio se faz outono numa simbiose perfeita entre a hora da morte e o interminável sofrimento da  lembrança – emerge a saudade – afinal. um dia. eu existi nos teus olhos

19/09/2016

o 11º mandamento



foto - sampaio rego

pior do que apenas ter um rim. um pulmão. uma perna ou um braço é viver sem cabeça – sem cabeça não há passado. perde-se a vergonha. esquece-se a razão. troca-se o essencial pelo acessório aconteceu a moisés enquanto guiava o povo hebreu pelo deserto do sinai. alguns fieis desesperaram com a demora da viagem e perderam a cabeça – estas pobres criaturas. tomadas pelo desânimo. deixaram de acreditar no seu deus e nos valores que os levaram à caminhada – revoltados forjaram num instante um novo deus. mais belo. mais valioso por ser de ouro. e principalmente. mais tangível – este novo deus falava. dizia tudo o que o povo ansiava de ouvir – agora sim. o povo podia finalmente ser feliz. porque com este deus todos os meios justificavam os fins – a festa começou: música. dançarinas. ilusionistas e malabaristas. animais selvagens e seus domadores iluminaram a noite – mas moisés. fiel aos princípios. bateu com o punho na terra. ergueu as tábuas da lei e. com voz grave. advertiu os foliões: “vem teu inimigo humilhado? guarda-te dele como do diabo” – deus não dorme. continuou moisés. estas são leis universais. para qualquer deus. de qualquer religião. para qualquer homem. seja nrgro. vermelho. verde ou azul

milhares de anos depois

lamentavelmente. havia uma lacuna. nem deus também sabe tudo. digo eu. que gosto de imaginar um deus tão humano quanto os homens – um conselho de sábios. oriundos de todas as regiões da terra. reuniu-se e. em uníssono. concluíram que era necessário um aditamento à tábua das leis divinas – assim nasceu o 11º mandamento – não SUBORNARÁS

termino com mais um provérbio:

"o destino não é uma questão de sorte. é uma questão de escolha:

não é algo a se esperar. e sim a conquistar"


16/09/2016

deambulações noturnas - X



foto - sampaio rego


neste lugar da noite sou muito mais do que um lego – desmonto-me e volto a montar-me – e as peças. sem acerto. gritam-me em acenos diabólicos: -- eu sou daqui. aquela é dali. e tu... não és de lado nenhum



11/09/2016

o epitáfio da memória III



                                                                   foto - sampaio rego


III.

na maior parte dos dias não sou nada. noutros. sou eu. que nada sou também – mas há dias em que me sinto herói. assim como aqueles super-heróis americanos que voam. que andam pelas paredes. que se transformam em rochas e deitam fogo pelas mãos. sempre com uma única motivação: a de proteger os mais débeis – nesses dias. sou então fenomenal. sou herói por inteiro. ainda que tenha pés de barro – sou feliz – a razão dessa felicidade é simples. os meus superpoderes anularam [temporariamente] umas quantas forças do mal que me infernizam a memória – são vitórias curtas. inofensivas e tantas vezes inconsequentes. servindo apenas para ganhar uns míseros instantes de bem-estar no corpo – mas são estas janelas no tempo que me permitem debruçar-me no parapeito e olhar o mundo de uma forma mais tranquila. com mais tolerância. mais sossego. mais ternura. sem amargura. sem desumanidade. sem culpabilidade. sem desassossego. aceitando a sua forma de girar. de rodopiar. de encaixar as pessoas. de criar amigos. de os estimar. e de me levar ao cimo da minha montanha. olhar o futuro com misericórdia. perdoar o passado. reajustar o corpo com o que me resta da alma sã. meter as mãos aos bolsos. escutar o coração. e devolver aos olhos a coragem de caminhar. de não desistir. de acreditar. de desafiar o destino mais uma vez – e ali fico. estático. à procura de um lugar no céu que nunca conheci. sem nunca perceber se o seu azul anuncia tempestade ou bonança – isto tudo numa resignação tranquila. de aceitação do mundo que me foi oferecido. e de uma absolvição sincera. merecida e desejada mesmo que condicionada pelo tamanho do horizonte da minha janela – sempre acreditei que o [meu] mundo é tendencionalmente bom – mas às vezes a minha memória atraiçoa-me e não me autoriza ver o seu lado melhor – é o seu lado mais sombrio. mais adulterado. mais egoísta. portando-se como os antigos corsários: terrífica. de tapa olho. de perna de pau. e espada em riste rouba-me sem piedade a alegria de viver. deixando-me ficar o revés como sinal de aviso: não estás a sonhar – cruel – mas a realidade é que a memória não é mais do que o armazenamento das nossas vidas através de histórias ou experiências vividas – em boa verdade é tudo aquilo que eu quis que fosse – libertar-me do passado indesejado é apagar a memória. mas também é apagar uma parte da minha essência como homem que cresceu numa soma de todas as experiências – sou assim feito tanto de acertos como de enganos – mas mesmo assim há tanto que gostava de apagar – nem sei se são assim tão más. mas cresci e. quando crescemos. mudamos tanto que. inexplicavelmente. queremos apagar ainda mais – cresci tanto que há rostos que apenas reconheço nos sonhos. surgindo-me então os corpos afeiçoados com os sorrisos do dia em que deixei de os lembrar – quando crescemos a saudade cresce connosco. e aquele até amanhã perdido na despedida do amigo torna-se agora uma necessidade – é urgente rever os amigos de calções. da bola. da carica. do jogo do polícia e ladrão – é absolutamente essencial. para o meu sossego. saber que estão vivos e que afinal o tempo não os mudou por dentro – é o lado bom da memória antes que o tempo a corrompa – recordo então os que já partiram e peço-lhes perdão por erros que só a juventude é capaz de perdoar e lamentar – a morte é a saudade vestida de luto – cresci para partes do corpo que rejeito. mas também cresci para outras que aceito com humildade – cresci para um futuro que já não é só meu. cresci tanto que já sento ao colo os netos. um avô renasce como pai duas vezes – cresci para os meus filhos. estão enormes. homens bons. dignos. a saberem coisas do mundo que eu na idade deles. nem sonhava conhecer. a prometerem o resgate da felicidade em definitivo para a nossa família. com honra. com nobreza – cresci para a minha mãe que do cimo dos seus noventa e dois anos não se cansa de me dizer para ter cuidado com os invernos: -- toma a vacina para a gripe meu filho. tem cuidado contigo. já não és nenhuma criança – mas cuidado para quê minha mãe se o único mal que temo é este que me permite sobreviver no vosso meio sem acerto com a minha consciência – fernando pessoa diz que “a memória é a consciência inserida no tempo” – que verdade tão cruel. há verdades que doem como o fogo de camões – não gosto de algumas memórias e faço de tudo para as apagar – infelizmente. quase sempre. temporariamente – não é fácil – há momentos gravados a cinzel na alma. eternos. inapagáveis – como dizia cervantes: “ah, memória, inimiga mortal do meu repouso!” – são estes momentos que nos fazem sofrer – ainda estou a ouvir a minha mãe a dizer: -- um dia vais puxar pelas orelhas – quando um homem quer safar o passado a ruína está sempre para breve – nunca me passou pela cabeça. bem… talvez não seja bem verdade que um dia iria querer dar um apagão à memória. desativá-la. eliminá-la. destruí-la – há recordações que se comportam como a peste negra – a única diferença é a lentidão com que nos leva à morte – nunca imaginei que ao longo do tempo esta adquirisse um tal poder de persuasão capaz de ordenar a destruição do seu próprio corpo – rouba-lhe o sorriso. a vontade de viver. a autoestima. a fala. a vontade de amar e de ser amado – dá-nos a solidão e com esta chega a coragem para esquecer o amor de quem nos quer bem – quando damos conta já não temos nada de nós. gelamos e daí a fragmentar a alma é apenas a ocasião – não é possível lutar contra a vontade de algo que não sei como dominar. alterar. reformular. ou até ajoelhar. pedir perdão e prometer-lhe um novo par de olhos. de ouvidos. de gestos. de sorrisos. tudo para construir uma outra dimensão humana – confesso que não sei o que fazer. tudo o que tinha para fazer já fiz – não podemos entregar a nossa memória a ninguém para retificar o que quer que seja – não foi feita de um dia para o outro. é feita de tempo. do que ouvi. do que vi. do que senti em cada momento. e que por ser apenas minha só eu serei capaz de compreender as suas opções – sou um par de olhos e ouvidos – agora. enquanto vos escrevo. sei apenas que os olhos se apagaram e os ouvidos são zumbidos incessantes que me impedem de descansar – só a memória. em momentos raros de lucidez. ainda é capaz de distinguir o bem do mal. o certo do errado. a luz da escuridão – talvez esteja louco e a memória me esteja a trair. fazendo-me esquecer a razão principal da minha chegada a este mundo. levando-me a ver outra forma do meu corpo. outras vozes. outros gestos. outros sorrisos – agora todo eu sou estranho. e tudo o que imaginava ser meu em definitivo afinal. não é – estou cada vez mais só porque não me reconheço. e também já não tenho a certeza de que esta memória seja realmente só minha – compreender-me neste todo é cada vez mais difícil – há um ruído bem lá no fundo. um cansaço que apela à autodestruição – já não sei se vivi muito ou pouco. há dias em que só quero voltar para casa. e noutros. continuo a magoar-me nesta luta que não me leva para lado nenhum – estou com uma vontade enorme de voltar para sul – sei que nasci a sul e depois caminhei para norte – é a sul que as andorinhas fazem os ninhos e os rios se entregam ao mar em definitivo – é no sul que os meninos jogam à bola numa rua igual à que me viu nascer – é no sul que descobrimos o saber de toda a humanidade. que encontramos tudo o que perdemos violentamente: o meu pai. a sua paz. a sua serenidade e finalmente. a seu lado. a verdadeira aceitação do que realmente sou – com a idade percebi que sou tanto do meu pai – é no sul que podemos definitivamente dizer à memória que já não nos faz mais falta – eliminamos de vez o que nos magoa porque a sul não existe desonra. nem o erro. nem o pecado – a sul existimos exatamente como viemos ao mundo – a memória é pertença de um corpo com uma vontade intrínseca para conquistar a paz – neste mundo. esta memória que me consome diariamente. o corpo existe só para a carregar. é um alforge que a suporta em sorrisos angelicais. em gesticulações graciosas. em fonemas musicais descarregados em boca gentil: --sim. está tudo bem. obrigado – mas a memória nega – dentro dela cabe o corpo. e dentro do corpo a dor que. invisível. ainda assim pode ser descrita: uma lâmina abstrata. de contornos indefinidos. sem linhas retas. de arestas vivas. curvas e contracurvas que nunca deixam uma cicatriz reconhecível. nenhum corte se repete. nenhuma marca se torna assinatura do sofrimento – com esta lâmina invisível. cada ferida assume a forma única da dor que a originou. irreconhecível. impossível de imitar. inconfundível na sua ausência de cicatrização. um golpe que pertence apenas a quem o sente. uma dor exclusiva da memória – é uma dor silenciosa que nos mata em duodécimos para ganhar ao tempo mais humilhação – dor e mais dor – a angústia desta dor não pode ser explicada – sente-se e magoa. só – não há dores iguais. não há cortes iguais na forma. mas todos magoam do mesmo modo – pode parecer. mas não há – por isso peço aos meus amigos que não tentem dar forma a esta dor. não a criem à sua semelhança. não a desenhem. não a preencham com as dores da vossa vida – não seria justo e eu não gosto de amigos injustos. perco-os na memória. e confesso que depois já não sou capaz de os procurar – esfumam-se para sempre – os verdadeiros amigos. os afetuosos. não se zangam pelas dores que não são suas. respeitam-nas – um dia recordarão a minha existência num silêncio-entendimento. de aceitação-paz. de amizade-incondicional. de verdade. de saudade. de compreensão – cada metamorfose da memória projeta no corpo uma dor diferente – bem sei que as dores se tornam públicas quando oferecidas em palavras. também sei que todas estão sujeitas a um julgamento. a um exame. um estudo até. crítica também. mas não se esqueçam nunca da compreensão. da amizade. da tolerância. mesmo da sua aprovação por compaixão e mais importante. da legitimidade das minhas escolhas – bem sei que nem sempre as escolhi. muitas tocaram-me em sorte – a dor é pertença apenas de um corpo com a sua memória. e apenas essa memória será capaz de a julgar e compreender as suas motivações – a memória é uma armadilha dolorosa que. depois de escolher a sua vítima. prolonga-lhe o sofrimento numa espiral suicida – são dores que ficam para sempre. nos dias melhores adormecem atordoadas. anestesiadas. mas na maior parte das vezes. camuflamo-las com sorrisos. com festas surpresas. com brindes. e com amigos que estimamos o suficiente para não lhes transmitir uma dor que não lhes pertence – para sofrer já basta um corpo – acumulamos dor. acumulamos sofrimento. acumulamos falta de compreensão. acumulamos indiferença e o mundo parece querer convencer-nos de que seríamos melhores de qualquer outra forma – como se eu não quisesse ser outra coisa – às vezes queria mesmo ser o resto do mundo. menos ser o que sou – a dor é um vulcão que. de tempos a tempos. precisa de vomitar lava para que o corpo aguente mais um dia. para se reinventar. reformular. reajustar e aceitar uma nova realidade por tempo limitado – mas nem sempre é possível. já não há força. a honra perdeu-se para sempre – o tempo é um embuste: na juventude somos feitos de idiotices. no entanto. juramos a pés juntos que tudo é perfeito – envelhecemos e tudo o que era certeza é agora dúvida. erro. remorso. arrependimento e o perdão perdido entre o castigo violento e um julgamento com direito a pena de morte – e o nosso dedo apontado a tudo. e o dedo dos outros apontado ao nosso coração. e a sentença consumada com a cabeça na guilhotina – dor. arrependimento. dor. arrependimento. dor e mais arrependimento – e esta repetição a ecoar sofrimento. sem cessar. sem piedade – nietzsche dizia que “é possível viver quase sem lembranças e viver feliz, como demonstra o animal, mas é impossível viver sem esquecer” – eu não consigo esquecer – com o tempo a memória rouba-nos a boca. as lágrimas. os olhos incham. esbugalham. deformam-se. rouba a cor. rouba a realidade. e a morte surge por um afogamento que dura tantos anos como quantos levo a pensar – o filme da vida passa-nos diariamente numa agonia de quem sabe que tudo pode acabar de um momento para o outro – o erro e a dor atribuídos a um passado de fé: é a vontade de um deus – perdi a morada deste deus. não sei onde mora – um caminho errado mais cedo ou mais tarde paralisa as pernas ao peregrino – morrer sufocado pelas memórias é desumano – os amigos mereciam de mim muito mais do que esta despedida – que me perdoem os poucos  que comigo caminharam – estimá-los deveria ter sido a minha última honra

 

[continua] – para a IV e última parte


03/09/2016

post mortem



foto - sampaio rego


hoje. a velha amizade ficou suspensa

mas a culpa não é tua

acredita

é apenas a vida a rolar

seguindo uma nova aventura

sinto que já não tenho nada para te dar

e tudo ainda para relembrar…

sei. no entanto. que não será fácil

aceitares as minhas razões

isso estará para lá do teu entendimento

 

tu que vias com os meus olhos

e sempre ouvias o meu sofrer

no silêncio. acertavas a aprovação

hoje. estás atónito 

 

talvez até tenhas a tua razão

talvez esteja a ser louco

talvez me arrependa

talvez mereça ser réu

talvez encontres um erro em mim

talvez não me possas perdoar

precisas de uma razão

 

envelheceste! dirás tu

rejuvenesci! direi eu

dirás então:

é assim!

eu direi apenas:

assim é!

dirás que fomos passado

eu falarei do que não passamos

lembrarás as borgas

eu falarei das ressacas

dirás porquê?

eu direi porque não!

dirás que eu sou outro

eu direi que sou eu

 

apenas acrescentarei:

não mais serei

nem aquele

nem outro

serei apenas eu

e dos novos caminhos

jamais receberei

risos aos sonhadores

 

hoje. ao fim da noite

sonhador. cairei na cama

sozinho?

nunca mais…

entrelaçar-me-ei nos lençóis frios

e com a alma de um poeta qualquer

adormecerei a dizer:

sou quem sou

 

sorrindo. lembro

sorrindo. recordo

“o sonho comanda a vida”