antónio lobo antunes diz
que é um carpinteiro das palavras – há
algo de mágico nesta frase. não me canso de a reler – a palavra carpinteiro traz-me
à memória um passado feliz e tranquilo – em catraio. lembro-me do meu pai
chamar o carpinteiro a nossa casa – na maior parte das vezes não era para coisa
de monta. bastava corrigir um empeno numa porta ou destravar uma gaveta encalhada.
coisas da humidade – a madeira em casas antigas inchava pelo inverno e recolhia-se
pelo verão – a solução era tirar umas raspas para debelar os empenos – de vez
em quando aparecia um ou outro trabalho mais carote. um bisegre para uma parede
esquecida. que exigia tábuas trabalhadas com habilidade – não havia máquinas como
nos dias de hoje. as mãos eram a tecnologia-ferramenta-arte – para atingir este
estatuto de artesão o trabalho começava bem antes de acabar a quarta classe –
para muitos destes mestres da madeira. a escola limitava-se a ensinar-lhes a
somar as medidas tiradas a olho – eram tempos em que os estudos não estavam ao
alcance de todas as famílias – no fim da primária muitas crianças tinham que
largar os estudos e começar a trabalhar para ajudar às despesas da casa – não
havia dinheiro fácil. o único remédio era encontrar rapidamente uma profissão. e
começar a aprendê-la desde cedo. sempre pelo seu progenitor. que lhe servia de
mestre até ao fim dos seus dias – todos os mestres começaram o seu ofício pelas
tarefas menos qualificadas – depois de muitos sacrifícios. com frequentes reprimendas.
puxões de orelhas e promessas de tareias. lá se ia compondo o artista – já em
idade adulta. naquele tempo depois dos vinte e um anos. os mais capazes. os
mais trabalhadores. os mais humildes. os mais aplicados e persistentes. alcançavam
o estatuto de mestres da marcenaria – era agora um pouco mais do que
carpinteiro: tornara-se marceneiro – motivo de orgulho – agora sim. este era o
topo da profissão e com ela o orgulho de pertencer a uma classe profissional
que se sabia especial na história da marcenaria portuguesa – com o título.
chegava também um salário semanal mais reforçado. o casamento e o respeito dos
colegas de trabalho. do patrão e dos amigos – no estado novo. o chefe de
família era um pilar respeitado – a trilogia: deus. pátria e família – eram
verdadeiros peritos na arte de trabalhar a madeira. e carregavam também a
responsabilidade de preparar outros jovens para a vida adulta – eram mestres.
professores e educadores – mas em minha casa. o assunto tornara-se grave. e
aquela esquina da sala de visitas transformara-se numa dor de cabeça – a situação
estava caótica. com um canto da parede ainda por preencher – já não havia
paciência para ouvir as lamúrias da minha mãe. ansiosa com as visitas de amigos
e familiares ao lar – ouvia-a muitas vezes dizer:
-- isto assim não está nada bem. é urgente arranjar um novo móvel para
aquele canto – temos de
resolver isto rapidamente. é uma vergonha. como posso receber visitas com esta sala
neste estado – imagina o que irão dizer
com este argumento. já não havia volta
atrás para o meu pai – o único remédio era encomendar mais um móvel e sossegar
a matriarca – lá aparecia um homem de bata cinza-triste. enfeitada com pequenas
aparas. rolinhos de madeira. perfeitamente alinhados. todos tão perfeitos que
parecia terem sido colocados um a um. como se servissem para abrilhantar a arte
de quem trabalha madeiras raras. exóticas e caríssimas – a minha mãe lá ia explicando
o que queria enquanto o homem das madeiras acenava com a cabeça a tudo o que a
dona da casa e do dinheiro ia articulando. confirmando sempre o seu bom gosto e
saber. com intervenções cirúrgicas precisas. dignas de quem
dominava a arte de encantar clientes – e lá ia dizendo o mestre:
-- a senhora sabe o que quer. nota-se que tem bom gosto. ainda o mês
passado entreguei um móvel igual para o dr. zenha. a senhora sabe quem é não
sabe?
perante um silêncio prolongado. acrescentava
de imediato:
-- tem consultório em frente ao jardim santa bárbara. é um grande
médico. um dentista que estudou em coimbra. a “casa” está sempre abarrotar de
clientela – nunca tem horas de sair – dizem que é um grande médico e muito boa
pessoa. sem querer desfazer
a minha mãe fazia um gesto afirmativo
com a cabeça – nunca percebi se aquele aceno era genuíno ou apenas uma forma de
não ficar mal na conversa – mas logo voltava à carga:
-- não quero daquelas madeiras ordinárias. quero tudo em castanho. bem sequinho.
não quero cá madeiras empenadas ao fim de seis meses – se empenar leva-os todos
de volta. devolve-me o dinheiro e nunca mais lhe compro nada – um móvel tem de
durar. não é coisa para meia dúzia de dias
o artista garantia que não havia motivo
para preocupações. o trabalho dele era sério. as madeiras usadas eram de
qualidade e muito bem secas. nada saía da sua oficina sem garantia absoluta de
perfeição. confiança e com a garantia da sua palavra
-- se alguma coisa não estiver ao gosto da senhora. basta chamar-me e resolvo
na hora
sempre que entrava uma visita pela casa
adentro. a minha mãe fazia questão de comunicar em tom grave: “é tudo em
castanho. até as forras das costas. não quis nada em tabopan”. e continuava a
sua dissertação de valorização sobre a qualidade do material e o seu bom gosto:
-- foram caros. mas valeu a pena. são móveis para toda a vida. não foi barato.
mas é um investimento e um prazer. afinal. é para isto que tanto trabalhamos. e
esta é a nossa casa
ainda bem que não foi verdade. a minha
mãe ainda é viva e os móveis já se foram. mas a verdade é que nunca lhes vi uma
peta de caruncho no castanho. outros tempos – sempre achei que o nome da
madeira tinha origem na sua cor. mas não. era da árvore. mais tarde vim a saber
que era o castanheiro – coitadas das castanhas. mortas para fazer móveis – estes
homens especiais. mestres. domadores do formão faziam qualquer peça de
mobiliário. mesas de sala de jantar. cadeiras. cadências. aparadores. camas com
guarda-vestidos. cómodas e toucadores com espelhos laterais para que as
senhoras pudessem ter uma visão perfeita da volumetria do seu cabelo. que na
época. eram pulverizados com quilos de laca ultra fixadora – deitavam o pó de
arroz em movimentos circulares que mais pareciam agroglifos. deixando uma nuvem
no ar de um rosa-mate perfumado de pureza – eram artistas. eles. e também as
senhoras – lembro-me da mobília de quarto da minha mãe. mais tarde passou para
o meu quarto porque a minha mãe se aborreceu do d. josé – encomendou uma dona
maria. estava mais na moda – sempre que tínhamos uma visita lá ia a minha mãe. com
o meu pai dois passos atrás. mostrar as mobílias. e quando chegava ao quarto dizia
com orgulho:
-- é do estilo d. josé. feita inteiramente de carvalho. custou-nos uma
fortuna
o meu pai acenava com a cabeça em concordância
com tudo o que a minha mãe ia dizendo. também não podia ser de outra forma. tudo
o que tocava à organização e decoração da casa era da responsabilidade do
mulherio – sempre me intrigou a tradição de atribuir nomes da nobreza portuguesa
a mobílias de quarto. sabia que o d. josé tinha sido um rei de portugal. com o
cognome “o reformador” pelas mudanças que implementou no seu reinado. mas nunca
me passou pela cabeça que mandasse fazer uma cama com o seu nome – se assim
fosse. teria sido um rei de importância inquestionável – mas a partir do
momento em que a minha mãe comprou a cama d. josé. foi a imponência da mobília
que me fez reconhecer verdadeiramente a grandeza do reinado – a cama era
realmente majestosa. repleta de bilros de vários tamanhos. encaixados uns nos
outros. todos torneados à mão. um a um
-- uma mobília com aquele aparato de curvas e contracurvas não podia ter
sido inspirada num rei qualquer – o problema era mantê-la livre do pó. mas. felizmente.
isso não era uma preocupação minha
estes mestres da marcenaria gostavam de
exibir bigodes fartos. sempre enfeitados com finas partículas de serrim. o que
lhes conferia um certo ar de artesões veteranos – pelo aspeto do bigode. diria
que os seus antepassados tinham sido os responsáveis pela invenção da caravela
portuguesa – na orelha. carregavam sempre pendurado um lápis enorme. de formato
geométrico estranho. não era redondo. com um crayon grossíssimo e pesado. servia
para tudo. riscar as paredes. as madeiras. todas as explicações eram feitas a
lápis e. num instante. o projeto saía da algibeira – as medidas eram sempre tiradas
a olho e anotadas por cima de traços que ninguém compreendia – autêntica escrita
de talento – de vez em quando. lá vinha a fita métrica. não tanto para medir. mas para reforçar a credibilidade do mestre e.
por fim. para que não restassem dúvidas do seu profissionalismo. sacava do nível.
encostava-o à parede e. de olho fechado e outro aberto. soltava um suspiro indefinível
– ninguém sabia se era sinal de desgraça ou de aumento do preço final – se realmente
havia um problema. o artista franzia o sobrolho e murmurava entre os dentes a
preocupação:
-- vai ser o diabo
tudo isto era anotado num papel de
cartuxo de mercearia. cinzento-claro. marcado por duas riscas azul forte – este
cartão grosso tinha ainda outra utilidade. era colocado na testa da criançada
sempre que se esmorravam – depois. lá vinha a lenga-lenga de que os galos cantavam
à meia-noite. confesso que. por mais que tentasse. nunca ouvi um só – o papel
de cartuxo era humedecido em água. pousado sobre o hematoma. e ali ficávamos. à
espera que alguém dissesse:
-- podes tirar. já não cresce mais. agora estás pronto para outro trambolhão – tudo se curava com amor
assim era o mundo dos homens com
profissões respeitadas – nesse tempo. ninguém era verdadeiramente rico. não
havia carros de alta cilindrada. nem relógios ou roupa de marca. nem fins de
semana prolongados. o único dia de descanso era o domingo. o dia do senhor. com
a missa a recordar a obrigatoriedade da presença – e assim acontecia. vestia-se
a melhor roupa. com solenidade. brio e vaidade. peito para cima. ombros
direitos. queixo firme. bigode aparado. cabelo com brilhantina. e um sorriso
que o vestia de dignidade da cabeça aos pés – acompanhado sempre pela esposa.
discreta. sem ornamentos espalhafatosos. vestia um fato-saia-e-casaco. de lã em
tom neutro. nem fina nem grossa. perfeita para usar todo o ano – engalanada. crente
em deus e no futuro. não se cansava de dar o braço ao marido. orgulhosa – não
tinha apenas um homem. tinha um mestre. um pilar que a sociedade respeitava –
tenho saudades desse tempo. da juventude da minha mãe. do modo como o meu pai a
tratava e lhe fazia todas as vontades – também em minha casa. a honra tinha
lugar à mesa – e o meu orgulho desse tempo ainda hoje me acompanha