.................................................................................não tirem o vento às gaivotas

30/10/2016

carpinteiro - o mestre das madeiras



aguarela - carl larsson

antónio lobo antunes diz que é um carpinteiro  das palavras – há algo de mágico nesta frase. não me canso de a reler – a palavra carpinteiro traz-me à memória um passado feliz e tranquilo – em catraio. lembro-me do meu pai chamar o carpinteiro a nossa casa – na maior parte das vezes não era para coisa de monta. bastava corrigir um empeno numa porta ou destravar uma gaveta encalhada. coisas da humidade – a madeira em casas antigas inchava pelo inverno e recolhia-se pelo verão – a solução era tirar umas raspas para debelar os empenos – de vez em quando aparecia um ou outro trabalho mais carote. um bisegre para uma parede esquecida. que exigia tábuas trabalhadas com habilidade – não havia máquinas como nos dias de hoje. as mãos eram a tecnologia-ferramenta-arte – para atingir este estatuto de artesão o trabalho começava bem antes de acabar a quarta classe – para muitos destes mestres da madeira. a escola limitava-se a ensinar-lhes a somar as medidas tiradas a olho – eram tempos em que os estudos não estavam ao alcance de todas as famílias – no fim da primária muitas crianças tinham que largar os estudos e começar a trabalhar para ajudar às despesas da casa – não havia dinheiro fácil. o único remédio era encontrar rapidamente uma profissão. e começar a aprendê-la desde cedo. sempre pelo seu progenitor. que lhe servia de mestre até ao fim dos seus dias – todos os mestres começaram o seu ofício pelas tarefas menos qualificadas – depois de muitos sacrifícios. com frequentes reprimendas. puxões de orelhas e promessas de tareias. lá se ia compondo o artista – já em idade adulta. naquele tempo depois dos vinte e um anos. os mais capazes. os mais trabalhadores. os mais humildes. os mais aplicados e persistentes. alcançavam o estatuto de mestres da marcenaria – era agora um pouco mais do que carpinteiro: tornara-se marceneiro – motivo de orgulho – agora sim. este era o topo da profissão e com ela o orgulho de pertencer a uma classe profissional que se sabia especial na história da marcenaria portuguesa – com o título. chegava também um salário semanal mais reforçado. o casamento e o respeito dos colegas de trabalho. do patrão e dos amigos – no estado novo. o chefe de família era um pilar respeitado – a trilogia: deus. pátria e família – eram verdadeiros peritos na arte de trabalhar a madeira. e carregavam também a responsabilidade de preparar outros jovens para a vida adulta – eram mestres. professores e educadores – mas em minha casa. o assunto tornara-se grave. e aquela esquina da sala de visitas transformara-se numa dor de cabeça – a situação estava caótica. com um canto da parede ainda por preencher – já não havia paciência para ouvir as lamúrias da minha mãe. ansiosa com as visitas de amigos e familiares ao lar – ouvia-a muitas vezes dizer:

-- isto assim não está nada bem. é urgente arranjar um novo móvel para aquele cantotemos de resolver isto rapidamente. é uma vergonha. como posso receber visitas com esta sala neste estado – imagina o que irão dizer Parte inferior do formulário

com este argumento. já não havia volta atrás para o meu pai – o único remédio era encomendar mais um móvel e sossegar a matriarca – lá aparecia um homem de bata cinza-triste. enfeitada com pequenas aparas. rolinhos de madeira. perfeitamente alinhados. todos tão perfeitos que parecia terem sido colocados um a um. como se servissem para abrilhantar a arte de quem trabalha madeiras raras. exóticas e caríssimas – a minha mãe lá ia explicando o que queria enquanto o homem das madeiras acenava com a cabeça a tudo o que a dona da casa e do dinheiro ia articulando. confirmando sempre o seu bom gosto e saber. com intervenções cirúrgicas precisas. dignas de quem dominava a arte de encantar clientes – e lá ia dizendo o mestre:

-- a senhora sabe o que quer. nota-se que tem bom gosto. ainda o mês passado entreguei um móvel igual para o dr. zenha. a senhora sabe quem é não sabe?

perante um silêncio prolongado. acrescentava de imediato:

-- tem consultório em frente ao jardim santa bárbara. é um grande médico. um dentista que estudou em coimbra. a “casa” está sempre abarrotar de clientela – nunca tem horas de sair – dizem que é um grande médico e muito boa pessoa. sem querer desfazer

a minha mãe fazia um gesto afirmativo com a cabeça – nunca percebi se aquele aceno era genuíno ou apenas uma forma de não ficar mal na conversa – mas logo voltava à carga:

-- não quero daquelas madeiras ordinárias. quero tudo em castanho. bem sequinho. não quero cá madeiras empenadas ao fim de seis meses – se empenar leva-os todos de volta. devolve-me o dinheiro e nunca mais lhe compro nada – um móvel tem de durar. não é coisa para meia dúzia de dias 

o artista garantia que não havia motivo para preocupações. o trabalho dele era sério. as madeiras usadas eram de qualidade e muito bem secas. nada saía da sua oficina sem garantia absoluta de perfeição. confiança e com a garantia da sua palavra

-- se alguma coisa não estiver ao gosto da senhora. basta chamar-me e resolvo na hora  

sempre que entrava uma visita pela casa adentro. a minha mãe fazia questão de comunicar em tom grave: “é tudo em castanho. até as forras das costas. não quis nada em tabopan”. e continuava a sua dissertação de valorização sobre a qualidade do material e o seu bom gosto:

-- foram caros. mas valeu a pena. são móveis para toda a vida. não foi barato. mas é um investimento e um prazer. afinal. é para isto que tanto trabalhamos. e esta é a nossa casa

ainda bem que não foi verdade. a minha mãe ainda é viva e os móveis já se foram. mas a verdade é que nunca lhes vi uma peta de caruncho no castanho. outros tempos – sempre achei que o nome da madeira tinha origem na sua cor. mas não. era da árvore. mais tarde vim a saber que era o castanheiro – coitadas das castanhas. mortas para fazer móveis – estes homens especiais. mestres. domadores do formão faziam qualquer peça de mobiliário. mesas de sala de jantar. cadeiras. cadências. aparadores. camas com guarda-vestidos. cómodas e toucadores com espelhos laterais para que as senhoras pudessem ter uma visão perfeita da volumetria do seu cabelo. que na época. eram pulverizados com quilos de laca ultra fixadora – deitavam o pó de arroz em movimentos circulares que mais pareciam agroglifos. deixando uma nuvem no ar de um rosa-mate perfumado de pureza – eram artistas. eles. e também as senhoras – lembro-me da mobília de quarto da minha mãe. mais tarde passou para o meu quarto porque a minha mãe se aborreceu do d. josé – encomendou uma dona maria. estava mais na moda – sempre que tínhamos uma visita lá ia a minha mãe. com o meu pai dois passos atrás. mostrar as mobílias. e quando chegava ao quarto dizia com orgulho:

-- é do estilo d. josé. feita inteiramente de carvalho. custou-nos uma fortuna

o meu pai acenava com a cabeça em concordância com tudo o que a minha mãe ia dizendo. também não podia ser de outra forma. tudo o que tocava à organização e decoração da casa era da responsabilidade do mulherio – sempre me intrigou a tradição de atribuir nomes da nobreza portuguesa a mobílias de quarto. sabia que o d. josé tinha sido um rei de portugal. com o cognome “o reformador” pelas mudanças que implementou no seu reinado. mas nunca me passou pela cabeça que mandasse fazer uma cama com o seu nome – se assim fosse. teria sido um rei de importância inquestionável – mas a partir do momento em que a minha mãe comprou a cama d. josé. foi a imponência da mobília que me fez reconhecer verdadeiramente a grandeza do reinado – a cama era realmente majestosa. repleta de bilros de vários tamanhos. encaixados uns nos outros. todos torneados à mão. um a um

-- uma mobília com aquele aparato de curvas e contracurvas não podia ter sido inspirada num rei qualquer – o problema era mantê-la livre do pó. mas. felizmente. isso não era uma preocupação minha

estes mestres da marcenaria gostavam de exibir bigodes fartos. sempre enfeitados com finas partículas de serrim. o que lhes conferia um certo ar de artesões veteranos – pelo aspeto do bigode. diria que os seus antepassados tinham sido os responsáveis pela invenção da caravela portuguesa – na orelha. carregavam sempre pendurado um lápis enorme. de formato geométrico estranho. não era redondo. com um crayon grossíssimo e pesado. servia para tudo. riscar as paredes. as madeiras. todas as explicações eram feitas a lápis e. num instante. o projeto saía da algibeira – as medidas eram sempre tiradas a olho e anotadas por cima de traços que ninguém compreendia – autêntica escrita de talento – de vez em quando. lá vinha a fita métrica. não tanto para medir.  mas para reforçar a credibilidade do mestre e. por fim. para que não restassem dúvidas do seu profissionalismo. sacava do nível. encostava-o à parede e. de olho fechado e outro aberto. soltava um suspiro indefinível – ninguém sabia se era sinal de desgraça ou de aumento do preço final – se realmente havia um problema. o artista franzia o sobrolho e murmurava entre os dentes a preocupação:

-- vai ser o diabo

tudo isto era anotado num papel de cartuxo de mercearia. cinzento-claro. marcado por duas riscas azul forte – este cartão grosso tinha ainda outra utilidade. era colocado na testa da criançada sempre que se esmorravam – depois. lá vinha a lenga-lenga de que os galos cantavam à meia-noite. confesso que. por mais que tentasse. nunca ouvi um só – o papel de cartuxo era humedecido em água. pousado sobre o hematoma. e ali ficávamos. à espera que alguém dissesse:

-- podes tirar. já não cresce mais. agora estás pronto para outro trambolhão – tudo se curava com amor

assim era o mundo dos homens com profissões respeitadas – nesse tempo. ninguém era verdadeiramente rico. não havia carros de alta cilindrada. nem relógios ou roupa de marca. nem fins de semana prolongados. o único dia de descanso era o domingo. o dia do senhor. com a missa a recordar a obrigatoriedade da presença – e assim acontecia. vestia-se a melhor roupa. com solenidade. brio e vaidade. peito para cima. ombros direitos. queixo firme. bigode aparado. cabelo com brilhantina. e um sorriso que o vestia de dignidade da cabeça aos pés – acompanhado sempre pela esposa. discreta. sem ornamentos espalhafatosos. vestia um fato-saia-e-casaco. de lã em tom neutro. nem fina nem grossa. perfeita para usar todo o ano – engalanada. crente em deus e no futuro. não se cansava de dar o braço ao marido. orgulhosa – não tinha apenas um homem. tinha um mestre. um pilar que a sociedade respeitava – tenho saudades desse tempo. da juventude da minha mãe. do modo como o meu pai a tratava e lhe fazia todas as vontades – também em minha casa. a honra tinha lugar à mesa – e o meu orgulho desse tempo ainda hoje me acompanha  

 


29/10/2016

deambulações noturnas - XI


foto - sampaio rego


crescer para ser doce é o caminho mais fácil para envelhecer com fel – o excesso de afabilidade faz-nos viver sem brilho – quem quer partir em paz não pode ser açucarado 


28/10/2016

as cartas do tarot


foto - sampaio rego


tudo que ouço fica aqui [nos olhos]. aqui. onde o descanso não existe e tudo o que é real permanece imutável – abano esta mágoa ao ver a minha compaixão desaparecer. sei agora que já não é agonia. é aceitação – impossível. dizia eu – o cosmos desfaz os impossíveis – a possibilidade habita os impossíveis – a racionalidade matemática pode também tornar-se numa equação errante – esta racionalidade louca existe apenas para quem se obriga a viver com justeza – errado. digo eu. é a conta feita pela centésima vez. e o erro. sempre escondido nos detalhes. no destino. no coração que herdamos e que só bate como quer – a borracha na mão tenta apagar o que insiste em ser indelével. modificável. transformável. rasurável – na vida tudo é a branco ou a preto. tudo é virtude ou tropeção. tudo é destino. interação e ocasião súbita – tudo se dissolve em relâmpagos de luz que rasgam o tempo a uma velocidade que nunca entenderemos – estavas lá. não importa onde. estavas e disseste presente. e o mundo engoliu-te. digeriu-te. e fez de ti um príncipe. onde as contas dão sempre certas pelo arredondamento. não das centésimas. mas das unidades – se te vomitou tudo está acabado. por mais contas que faças. o resultado será sempre um quase estava certo. se não fosse aquela décima. aquela nesga. aquele pé que nos rasteirou. aquela rua que nunca deveríamos ter tomado. aquela casa que jamais deveria ter sido comprada pelos nossos pais. aquela parteira que não nos deixou cair – não há arredondamento para as centésimas – enfim. o erro só é erro quando apaga o mérito de quem o comete – eu não produzi absolutamente nada. sou apenas destino – sempre acreditei na vida. mesmo quando impregnada de um coeficiente elevado de erro – sempre acreditei que o mais certo venceria o incerto. que os caminhos sinuosos levavam ao mesmo destino dos que são feitos de retas. e que a glória mais saborosa se construía no sacrifício – o povo de israel andou quarenta anos à procura da terra prometida. sofreram umas quantas perseguições. provações. humilhações. arrependimentos. hesitações. dúvidas. mas no final a certeza de que aquele era o caminho correto – o triunfo do bem sobre o mal. dos virtuosos sobre os impuros. da amizade sobre o desconhecido. do céu na terra. antes da promessa de uma glória póstuma. com a ressurreição à direita de um pai que nunca foi meu – o castigo divino é a nossa memória. que em vida não perdoa o destino escolhido. e o erro. o punhal –  a dor é viver – e o corpo. iludido. acredita reescrever o que já estava traçado desde o nascimento – juro que não sabia. caso contrário. recusava-me a nascer – nunca entendi nada de destinos. de famílias. das suas histórias e tradições. das raízes que. de tanto caminharem. já não sabem de onde vieram – talvez um cruzado. um judeu convertido ao catolicismo. um escravo que de tanta miscigenação acabou por ficar branco. um agricultor da idade das trevas. marinheiro nos descobrimentos. um homem ao serviço de deus. do diabo. da morte – não sei que caminho percorremos para chegar aqui – sou o que sou. e só sei de mim nesta caminhada onde o fim é certo – sei do meu pai. sei do que ele me disse. tantas vezes sem a atenção que merecia. mas eu queria o meu próprio caminho – tolo. devia ter sabido mais do seu para compreender melhor o meu – sei que era boa pessoa. sei que guardava o mundo num abraço inesgotável. e que sorria do seu passado. mas com desprezo – vivia em paz num corpo moldado por uma bondade capaz de dissolver a dor. o sofrimento. a amargura. a aflição. a angústia – e assim fez um pé de meia que nunca foi capaz de o usar – o destino roubou-lhe um final feliz. morreu preso a uma maldição que nunca acreditou merecer. esqueceu-se de tudo. até de si. e partiu sem uma única palavra que o lembrasse. morreu despido de tudo – o destino era o único que o acompanhava – como dizem os castelhanos: no creo en brujas pero que las hay las hay – no meu caso substituiria as bruxas por feiticeiros – e as cartas espalhadas sobre a mesa. distribuídas em cruz como manda o livro de s. cipriano – um valete de ouro. uma dama de ouro. um rei de ouro. e o enforcado de cabeça para o inferno. enquanto a viúva pede à morte perdão pelo desdém com que o seu amado vive os últimos dias de vida – baralho e lanço novamente o destino para a mesa. e o resultado não muda. apenas o enforcado. mais enforcado. e a viúva. mais viúva. o negro. mais negro – nada podemos fazer contra o destino. as cartas estão na mesa desde o dia em que nascemos. e por mais que as embaralhes. que as cortes. ou que as cruzes. o enforcado nasce enforcado e estará sempre de pernas para o ar – o natal está aí. não tarda nada – no natal temos a família que amamos e os amigos que nos restam. e nenhum enforcado pode sufocar o meu espírito natalício – depois do natal... voltarei a deitar as cartas. e talvez seja eu o enforcado. com as pernas viradas para cova. porque já pouco me importa



25/10/2016

o meu outono


foto - sampaio rego


também eu. um dia. me cobrirei com as folhas do outono –  e serei. então. saudade


23/10/2016

no fim. apenas café



imagem - google


entrego-me a um café. cremoso. intenso. aromático e espesso. aprecio-o. tomo-lhe o paladar numa degustação inocente e silenciosa – deixo-o acontecer dentro de mim. sem obstáculo entre o seu aroma e o meu silêncio – o corpo experimenta a cafeína como se fosse a primeira toma da manhã. mas não é – escurece o dia. e o corpo – o coração acelera. desordenado. trémulo. sem perceber o motivo de tanto apego à vida. revolve-se. inquieta-se. cospe fantasmas teimosos. resgata memórias perdidas. enfrenta conflitos vergonhosos e resiste com voracidade a batimentos confusos – mais um gole. pequeníssimo. o tempo e o café têm que durar – a cafeína endurece a voz com uma energia forçada. torna-a rouca. fula. desconexa. mastiga sílabas e ideias também. embaraça-se e profetiza ora raiva. ora resignação – quando a alma adoece. o corpo desaparece – tal como os bêbados. um corpo drogado diz sempre a verdade – e o café. numa espera perfeita. liberta um vapor de quem arde no seu interior – o silêncio [interior também] resiste num absolutismo implacável – olho-me de cima a baixo. e não me encontro – estou perdido. não me encontro em parte alguma. exceto na cor do café – olho-o com atenção. é negro. negro absoluto – percebo que. para lá deste negro. não existe nada – o silêncio é agora. também. de um negro-café-absoluto. com aroma – o ritmo cardíaco normaliza-se num sossego aromático – tudo me parece tão distante. remoto. quase pertence ao início do mundo. dos dinossauros – extinguiram-se atropelados por um cometa idiota. dizem que vinha do lado do oriente. perdido. desorientado. caiu aqui como podia ter caído noutro lugar qualquer – a partir desse dia nada foi igual. nasceu um novo mundo – eram bichos enormes. fortes. poderosos. temíveis. maior que qualquer plantação de cafeeiros – sucumbiram por inabilidade ao novo mundo – continuo alheio de tudo o que me rodeia – o corpo reclama mais droga. mais cafeína. mais descuido para sufocar a lucidez – só perdendo-me posso encontrar-me – talvez esteja na hora de me procurar. de dar tempo à vida. de simplesmente existir – um homem só existe quando está vivo – encosto-me a mim. entrelaço as mãos. ligo o coração às veias. e prometo ao corpo um último gole de café quente. enquanto o armageddon. na minha janela. se faz anunciar em forma de vento delicado – que saudades de um cigarro. daquele fumo a deslizar para o inferno de um português suave – eu e o tabaco éramos suaves – sempre me senti assim suave quando me rendia ao silêncio – confisco-te as beatas. e assim ficava obrigado a entregar o fim de cada cigarro ao amigo confiscador – o preço inevitável de quem trazia um maço de tabaco – não era o puto mais rico. apenas tinha mais sorte no acesso ao dinheiro – os amigos confiscaram-me a vida em pontas de cigarros – ainda os guardo dentro de mim – muitas vezes ouço as suas vozes: há outro mundo para além da tua janela – são eles. tenho a certeza – quem é amigo. é amigo eterno – mas hoje. da minha janela. já não chego a lado nenhum – há um amontoado de coisas que acumulei enquanto fui vivendo: um livro da primária. uma espiga amarela pintada num fundo preto. uma coleção de cromos da bola. um colégio de padres onde o diabo encarnou. uma revolução de abril que nunca se fechou. muitas conversas a entrarem pelas noites dentro. sexo bom e mau. correrias. quase sempre para lá da realidade. tropeços inexplicáveis. e mais umas quantas ninharias que prefiro não falar – velharias que perderam valor no tempo. gastaram-se na inutilidade e acabaram por tapar a janela com futilidades – resta-me o café. o seu aroma. e esta forma de estar sentado – estou de lado e já nada me embarra. tudo me passa pela frente ou por trás – no fundo da chávena aquecida a borra. enlameada de um negro pestilento. parece acabadinha de chegar de um navio negreiro – mas a borra nunca deixará de fazer parte do café por mais escura e pestilenta que seja – sem borra não há café – perdido em conflitos interiores. mexo e remexo o que resta na chávena com a força de um mandingo – mexer não me serve para nada. o que é borra. borra fica – resta-me a janela e a borra do café. cada uma como é – do lado de fora da janela o tempo move-se [também]. num vagar que não acompanha a mão que revolve a borra – mesmo tomado pela cafeína. pedrado. sei que o que me resta é apenas esta borra. é ela que me mantém vivo – talvez esteja a exagerar. talvez a questão possa ser analisada como uma doença mental. quem sabe o problema reside no sistema nervoso. ou em mim. algo intrínseco. nascido e criado para me fazer crescer assim como sou. prenho de infinitos. preso a um cordão umbilical ligado a uma era extinta – mas para que serve esta conversa. para que serve falar de tudo isto se o que interessa mesmo são as borras do café e o seu aroma – e eu a mexer. e o melhor do café tombado no fundo da minha garganta. morto por já não ter sido grão. o aroma perdido para sempre numa viagem escura ao centro do corpo. e o paladar esgotado pelo esforço de o manter perto da boca. ou melhor. perto de quem me pode ouvir – já pouco resta do café agora misturado em ácidos estomacais. chicoteia-me a minha única doença comprovada pela ciência: úlcera gástrica – a loucura. nenhum médico foi capaz de a comprovar. mas a minha médica de família já me disse: o teu maior problema não é o café. mas sim o cérebro – talvez tenha razão – e lá estou eu com a colher para trás e para a frente. como se tudo dependesse do rumo com que guio a mão. revirando tudo o que é passado como se fosse uma borra gigante – estou aqui pedrado. como se a vida fosse esta colher minúscula e tudo o que cabe dentro dela – mal-agradecido. enquanto mexo estou vivo. tenho amigos que já partiram. já não mexem mais colheres – que é feito do luís vieira? deve estar no céu. todos os meus amigos têm direito ao céu – era um bom rapaz. gostava de ser guarda-redes. adorava voar para as bolas. era calado. mas maroto que bastasse – o tabaco e o pulmão levaram-no quando estava mais bonito do que nunca. era pai – e todos o são – tenho saudades dele. tenho saudades daquela puberdade. espreitávamos pela janela do seu terraço. vendo a sua empregada despir-se num vagar que nos levava à lua – ela sabia que as crianças são feitas de pressas – que sofrimento – e a descoberta de que afinal éramos mesmo machos – ele era malandro. a empregada ainda mais. e eu valia pelos dois – que alegria. creio que foi a primeira mulher que vi nua. logo dum terraço de onde se via tanto da cidade – em frente. a igreja do carmo badalava os sinos. enquanto as pombas esvoaçavam pânico. com o tocar das horas – só mais tarde percebi o pânico das horas – desde então. tornei-me obcecado por relógios – ainda hoje gosto de olhar o tempo através das janelas. e continuo a ter uma casa com terraço. onde as gaivotas que guardo em mim agarram o vento sul. quente. criador de nuvens e sonhos cristalinos – já não creio voltar a ver nenhuma mulher nua por uma janela. mas também. para que me interessaria. se hoje andam nuas por todo o lado?  éramos felizes com coisas simples. mas endiabradas – os seus filhos devem estar grandes. espero que sejam felizes e saibam que o pai foi um miúdo fantástico – o pior da morte é partirmos sem deixar nada. sem que os outros entendam o que por aqui andámos a fazer – é disso que tenho medo. desde miúdo temo essa morte. não só nos rouba a vida. mas também a existência – a nossa missão enquanto homens com ambição. com consciência. com paixão. uma vontade de abraçar o mundo e de o trazer para dentro do corpo – já não tenho onde guardar este mundo. por mais pequeno que seja. estou cheio de nada – na minha janela o tempo corre com todos os vagares do mundo – quando o mundo é feliz. o tempo corre sempre mais devagar. ninguém tem pressa de tomar outro café. quando o último ainda se amarra ao céu da boca. conservando cada particularidade do lugar onde nasceu – eu nasci numa rua onde já não moro. nem eu. nem nenhum dos meus amigos. nem o campo da feira. nem o campo dos padres. nem a casa de pasto luso brasileira. nem a celestinha da lusitana. nem o sr. capa batateiro. que usava uma calça de fazenda larga. onde se notavam os testículos a bater-lhe no joelho – não vivem ali. mas vivem noutro sítio. uns no céu. outros noutras ruas com direito a céu – eu não vivo ali. nem em nenhuma rua que me permita olhar o céu como outrora o via com os meus amigos – já não tenho coragem de pedir o céu – vivo no inferno há tanto tempo que já não saberia mais habituar-me às alturas – do café. restam apenas vestígios da sua existência. já quase não dá para um gole. ficaram ao menos as marcas na chávena para testemunhar que um dia existiu – uma nesga de sol atiça-me a vontade de viver – agarro-a. mas logo a deixo escapar – tudo se me escapa das mãos – o café está morto. como a maior parte de mim – o estômago remastiga-se. gritando por já não suportar mais a cafeína – não quero mais aditivos para esta vida – e a borra. cada vez mais densa. pastosa. escura. melosa. e o cheiro pestilento do café retardado empurra a mão a mexer-se com mais força – toda esta força desperdiçada. sem sentido. sem tino. demente. louca. ora para a direita. ora para o fim do mundo – tudo se resume ao fundo de uma chávena. uma mão perdida em voltas que já não me levam a lado nenhum. a borra. agora cada vez mais minha. de tanto lhe mexer. todo eu sou disparate com tanta volta da colher. e o corpo a pedir uma sombra para descansar – dói-me tudo. e esse tudo não sei o que é – não sei nada. nunca soube. mas sempre procurei saber tudo – e a borra. em agitação. agarra-se à colher minúscula. como se o paladar genuíno só existisse verdadeiramente nas borras do café – porque sou assim? não sei – e a janela. grávida de mil e uma coisas que nunca fui capaz de aprender. e a ilusão. débil. desaparecida num excremento de café – está na hora de me absolver. e parar de mexer no que resta de mim – e a borra. cada vez mais escura. negra-morte. enquanto o pensamento me leva para a frente de um punhal. que não para de me chamar para dentro de si – como resistirei. quando a borra um dia acabar? tudo o que escrevo é agora com uma mão. a outra segura. amarra o último sopro de esperança – mais nada pode fugir do interior da chávena. não aguentava – e a colher. de um lado para o outro. ao encontro das paredes que já não distinguem o antes do desespero – tudo está misturado. perdido num infinito de reflexões que não se alinham com nada de racional – só a chávena continua bonita. talvez pelo brilho da porcelana. ou pela luz que atravessa vinda da minha janela – e o corpo a pedir contas de tudo o que ficou para trás. de tudo o que ficou por fazer. de tudo o que não fui capaz de trazer para dentro de um futuro. que fede como borra de café – estou cansado. muito cansado. quase a tombar com todas estas palavras que esperneiam. como se o café pudesse acabar a qualquer momento – escrevo – escrevo porque preciso que o futuro arquive. com veracidade. estas minhas divagações loucas. irracionais. quase suicidas. mas também gentis. delicadas. frágeis. elas ajudam-me a conservar a coerência nesta degustação silenciosa – mas de nada serve. já não vou a tempo de as escolher com cuidado. já não me pertencem. são da cafeína. desta loucura que devora cada segundo do que ainda mexo dentro de mim – a borra do café. cada vez mais borra. e o açúcar desaparecido de tanto mexer – um dia todas as palavras serão borra de café – não há terra que suporte qualquer plantação de palavras. nem de propósitos. nem de promessas. nem de coisa nenhuma. porque só germina o que um dia foi semeado – no meu corpo. todas as palavras morrerão com o último gole de café – escrevo – escrevo porque só as palavras me seguram nesta viagem para dentro do punhal – resisto. o aroma de café cada vez mais distante. e a chávena suplicante. implora à razão para não pingar para dentro da lâmina – e a borra cada vez mais seca. mais compacta. enquanto o interior da chávena mais preta. e a porcelana a esgotar-se enquanto os dedos. que a seguram. agoniam num esforço final para a manter junto ao corpo – e a janela com o mundo todo do outro lado. e eu cada vez com menos força para o olhar – sou. a cada momento. mais desta chávena. desta borra. deste negro com cheiro a café que. por ser borra. não deixou de nascer num cafeeiro. ao lado de milhões de grãos – resta-me a mão. que amarra o último sonho. mantenho-a presa a um corpo onde ainda brilham dois olhos maiores que a janela – estou absolutamente parado. os livros acumulam-se. prometendo um novo mundo que talvez nem exista. e a leitura adiada para uma próxima vida. onde as chávenas do café sejam apenas chávenas. o café. apenas café. e os sonhos. mais do que sonhos. e que a força da mão. que revolve as borras. morra de cansaço. e que o negro se estilhace como vidro. e voe como gaivotas 



16/10/2016

smile – a solidão dos interligados



smile


não posso renegar a verdade – aqui estou. solitário. isolado. retirado do mundo. entregue a uma luxúria de imagens. inundadas de sorrisos raros – as fotos chegam numa cadência de urgência. enquanto os likes. atarefados e eufóricos. alinham-se pela ordem de chegada nas notificações. anunciando. em vermelho. a sua presença– estamos todos por cá – são fotos incríveis. com mensagens ainda mais incríveis. numa alegria estonteante. quase a fazer mal. a doer. como droga alucinogénia. paranoica. cega – e todos os presentes confusos. assustados. apavorados por não saberem até onde poderá chegar esta felicidade – nunca nenhum artista tinha pintado sorrisos assim. nunca. nem mesmo o de mona lisa – e tudo isto em redes de vai e vem incessante. em partilhas feitas ao segundo. numa velocidade louca. estonteante – e os sorrisos. sempre em crescimento. satisfeitos. animados. trazendo prosperidade ao futuro – quanto maior o sorriso. maior a ilusão da felicidade – as fotos não mentem. e eu acredito nelas. mesmo estando só. retirado do mundo e dos afetos de proximidade – e todos reagimos. sem pensar. num impulso idiota. mas de sinceridade inquestionável. assinalamos a receção dos sorrisos com uma nova linguagem global. invariável. imutável e incorruptível: os smiles – símbolos que representam vida. amizade. amor. proximidade. alegria. dor. paixão. harmonia. acolhimento. revolta. ira. a rir pouco. a rir muito. a visionar campos de infinitos beijos. de abraços. de carinhos. e as mãos estendidas. buscando um toque real. enquanto o corpo se arrepia num tremor extrassensorial – somos amigos – o telemóvel vibra. chama por mim. e o som transforma-se numa tocata sem fuga possível – atendo: quem fala? a máquina multifunções não tem o número memorizado – afinal. é um amigo do tempo em que os chamamentos vinham da campainha da porta. dois toques sorrateiros. não fosse a mãe entrar em histeria e proibi-lo de vir à rua. e logo respondia pelo vão das escadas: -- já desço – e eu. sentado na soleira da porta. a queimar a demora. enquanto o tempo passava num vagar de meter medo – hoje. como distinguir um amigo do peito de um amigo tecnológico? digo então. para facilitar: é um amigo mesmo amigo. verdadeiro – que coisa mais louca. um amigo deveria ser sempre amigo. e nunca necessitar de um pronome demonstrativo para validar a amizade – agora temos os amigos de facebook. de instagram. de twitter. de youtube – todos presos numa trama intelectual. ligados a uma rede que não nos deixa ficar sozinhos – entretidos com a nossa própria companhia. descobrindo-nos. apreciando-nos.  corrigindo em silêncio os nossos barulhos interiores – o tempo já não mete medo – ligo-me a mil amigos. a outros que me perguntam se os conheço. e ainda a outros que talvez devesse conhecer. e isto tudo numa irracionalidade que. por ser constante. acaba por se tornar racional – e os amigos que não são mesmo amigos partilham as mesmas cores. seguem a mesma moda. leem os mesmos livros. praticam os mesmos hobbies. e pensam igual. e a religião não interessa. e o sexo? indefinido. ou só mulher. ou só homem. ou as duas coisas. e este é casado ou está numa relação em euforia. ou agonia – gente igual. gémea mesmo. comprovada por uma máquina que só sabe falar verdade: a estatística facebookiana – diferente mesmo. só sou do amigo mesmo amigo – tudo o que é cérebro é agora alimentado por fios que não vemos. que nos levam e trazem a lugares que nunca imaginávamos chegar – agora estou em Ibiza. de copo na mão. uma palhinha a sair de um cocktail fluorescente. e atravesso o planeta em fibra ótica. cheguei ao japão. e o peixe. cortado fininho por uma faca de samurai. enquanto os pauzinhos levam à boca um pedaço de imaginação – atrás de mim. uma gueixa sussurra luxúria. anunciando o começo da noite – e a feed notícias do mundo a girar num ecrã plano. e um canguru. perseguido por um aborígene. ou será o aborígene que persegue o canguru? todos nós perseguimos alguma coisa. e muitas mais coisas nos persegue sem que saibamos – tudo isto a correr numa notícia de última hora. triste. muito triste. faz hoje anos que pavarotti nos deixou. o avião do cristiano ronaldo sofreu um acidente. e um marido atirou ácido à ex-mulher. enquanto a sogra era atropelada por um camião desgovernado na via de cintura interna – estou amargurado. tonto. quase sou atropelado por uma última notícia. não fosse um convite promíscuo para saltar numa cama surreal – e aí estou. perdido nos lençóis. feliz como nunca. ao lado de um par de pernas que nunca imaginei. parecem-me as da sara tavares. e pela primeira vez sou infiel. e o corpo suspira por mais que apenas pernas. quero mais. afinal para que serve a tecnologia? estou esgotado. esta mulher não é para mim – e a minha vida. recordada há um ano. vejo as minhas memórias. e uma lágrima mistura-se à gratidão de estar vivo – e tudo nas mãos é velocidade estonteante. e quase nada tenho para fazer. a imaginação já não é minha. pertence a um grupo de fabricantes de emoções. produção industrial. em série. e em constante atualização. e tudo me assenta na perfeição. como se me conhecessem por inteiro. como alfaiates. com o giz a riscar as sobras. a tesoura ajustando tudo ao corpo. enquanto o alinhavo marca com uma certeza absoluta os contornos do corpo – bebo então para esquecer. preciso de um copo para afogar esta angústia que. verdadeiramente. não sei de onde veio – mando vir uma sangria. mais uns quantos amigos virtuais. e os copos ao centro. numa amizade que não é de amigo amigo: à tua saúde. enquanto a francesinha fumega num molho cor de pêssego. como fumega a síria. e os mortos espalhados pelas ruínas. dilacerados por bombas num mundo cada vez mais terrorista – no facebook também – a alegria do estômago termina em agonia. enjoa e afoga-se de vez no mediterrâneo com gritos que são súplicas de refugiados que. de polegar no ar. não acenam. não. clamam ao mundo tecnológico que transforme os likes em botes salva-vidas – estou arrasado – também quero um like para mim. um enorme. com um dedo gigante apontado para um salva-vidas que me resgate do egocentrismo dos meus próprios likes – que ingratidão – e mais um toque. o telemóvel vibra. e eu recuo. assustado. em pânico. descontrolado. não posso fazer esperar um amigo. e o braço a correr com a voz para o ouvido: desculpa. estava a trinchar uma francesinha com uns amigos virtuais – e paro a vida para atender a urgência daquela invocação digital – todos os toques são importantes – de seguida. mais um toque. adio o amor para a noite seguinte. outro toque e fecho o livro. mais um e digo que já não vale a pena sonhar. tudo acontece ao segundo. e o futuro já não interessa. o que interessa é o feed de notícias – fecho tudo. eu também. o mundo todo. deixo ficar ao meu lado a desilusão em que a vida se tornou. não a minha vida que por ser minha não tem interesse para ser notícia. mas a de um smile que chora. chora como uma criança – todos os smiles têm rosto de crianças. e eu desfeito em sofrimento saio disparado. em wireless. à caça do pokémon que feriu o smile das lágrimas – isto tudo sem abdicarmos de nenhum tempo porque deixamos de sentir este tempo eletrónico. gastámo-lo como se fosse inesgotável. como se pudéssemos somar horas aos dias. e por cada ano gasto. um mês extra. como num jogo de flippers. e por cada centena de likes um dia de bónus – estamos parados e andamos sem dar conta num tempo que deixamos de contar como tempo – mas conta – interrompemos o tempo verdadeiro. caçamos o like. e seguimos vidas que nunca serão a nossa vida – e aí vamos. por uma estrada que leva a todos os lugares. e nunca chega a lado nenhum – olhamos o universo num retângulo que dá luz. saturado de sinais sonoros. música. e histórias feias e bonitas. verdadeiras ou falsas. de amor ou de sangue. e tudo isto apenas com um tremor do braço. um click do dedo – mais um toque a pedir voz. atendemos e logo nos dizem: manda mensagem. é mais fácil – o mundo cada vez mais mudo. os dedos já não querem olhos. já conhecem as letras no escuro.  tudo cego no mundo real – que sofrimento – e os homens cerebrais do outro lado dos fios que não se veem a dizerem que estás inibido de viver por vinte e quatro horas – eles fazem lei. julgam e ditam a pena – culpado – tudo isto porque mostraste as pernas da marylin monroe. o mamilo com piercing da janet jackson. duas lésbicas num amor proibido. um profeta parecido com allah. um poema de escárnio. e um nu renascentista com um carimbo a censurar o belo – e a noite chega. tão igual a todas as outras noites. o corpo. prisioneiro de vibrações que agora se tornaram choques elétricos. e o feed de notícias sem dormir caminha por ti com sinais sonoros de conveniência desumana – os olhos. encostados ao sono. num estado de alerta geral fazem o possível por descansar – são os novos guerreiros da tecnologia. enquanto um olho dorme. o outro vigia o feed notícias – já nada te pesa no corpo. o passado está morto. e às tuas costas já não carregas mais amigos mesmo amigos. carregas um mundo que não é teu. suportando uma dor genética que nunca te pertenceu – estou só. devastado de tudo. de gente que não conheço. de mim também – sou agora um corpo tecnológico num mundo que só me aceita a rir. a falar com frases curtas. ou com pensamentos empacotados em caixilhos dourados de gente ilustre que não merecia este destino – e os sonhos cortados como se a vida fosse apenas estes clicks com o polegar para cima – força amigo. tu vais conseguir. não desistas amigo. a vida um dia compensa-te. adoro-te. és lindo. beijinhos. gosto muito de ti – isto tudo rematado com um smile. um polegar na direção do paraíso. e o inferno é tropeçar numa verdade perdida no meio de tanta mentira – tudo o que digo é um like. e o que não digo também. e o que faço leva um like com um sorriso cada vez maior – um dia. irritado. recuso-me a por mais likes e digo: estou morto. morri. desapareci. cansei. enforcado com um cordão de likes – é então que milhões de likes emocionais explodem para um último adeus.  o feed de notícias chora. os dedos apontam para a terra. e os smiles das lágrimas esbarrotam-se em manifestações de dor e pranto – carpideiras em histeria dolorosa – os amigos que não são amigos vestem os avatares de preto. e milhares de emoções soltam lágrimas que nada molham – estamos interligados a números de computação cruéis – somos então um IP entre janelas que nunca se fecham e promovem uma contabilidade que sobrevive a uma bateria sempre em carga – como tudo isto pode ser efémero – basta um power a menos na bateria. e a morte digital pode chegar a qualquer momento – é então que o pânico acontece. falta o carregador. o isqueiro do carro avariado. e até a eletricidade fugiu. parece impossível. o corpo treme. convulsões. vómitos. e uma ira que pode magoar de verdade. enquanto a realidade está em fuga por causa de uma ressaca que ameaça matar – são os novos toxicodependentes. viciados na carga. na luz do ecrã.  – estamos todos loucos – aqui estou a jogar com a vida. às vezes em ironia. outras. a tentar ser esperto. e lá chega mais um like sabichão – e passam carros e bicicletas com gente que já não pedala. e tudo sem margem de erro ou esquecimento. comandado por apitos que nos avisam: hoje o teu amigo mesmo amigo faz anos – tudo é feito à hora certa – tal como os comboios. os autocarros. o metro. as bicicletas. os táxis. a uber. tudo na hora certa – e os velhos com a solidão às costas. e os doentes em ambulâncias que já não gritam dor. e o povo incapaz de se reconhecer. não pela voz. nem pelos olhos. nem pelo  jeito de ser. nem sequer por um abraço. nem por nada. espera sentado a chegada de um destino que não controla – ninguém tira os olhos do ecrã – por mais noite que seja. há sempre um ex-humano parado num apeadeiro. à espera de uma foto. de uma notícia. da morte de um amigo íntimo do mundo das imagens. de um smile. de um sorriso empacotado – e o like a cair. esvaindo-se como urina na sargeta. logo depois. um escarro. um cão de perna alçada espera também pela sua vez. e o like coberto de um ácido que corrói o cérebro – as fotos sem flexibilidade. tiradas por um braço metálico. estendido para o fim do universo. sacam um último sorriso. e de repente. em total demência. um suicídio coletivo numa gargalhada fotográfica – o mundo. afinal. é todo feliz – infeliz. só eu existo – só eu sei que estou triste. triste de morte. com uma faca encostada à jugular. e o coração a dizer: és o único que não tem vida – não me rio. não sorrio. e não digo que hoje o dia está lindo – não tenho trompete a tocar silêncio porque verdadeiramente não estou morto. estou apenas nada num mundo de merda – e assim termino esta crónica. num sorriso de verdade que. por ter mais de duas linhas. jamais terá direito a um like feliz

 


13/10/2016

fotografia: a luz que guarda o tempo



foto - sampaio rego


fotografia amadora tornou-se a minha última paixão – cada pessoa é um infinito de movimentos. de expressões. de representações. de comunicações que procuro captar e dar-lhe a eternidade de uma máquina fotográfica – iluminar o universo sensível – só a fotografia pode guardar um mundo inteiro. ou apenas um olhar – amo a fotografia de proximidade. de afetos. de entrega. de gestos subtis. onde a cumplicidade do clique inesperado se transforma num instante eterno – a simbiose perfeita: a entrega do fotógrafo e de quem se deixa fotografar – fazer fotografia é também um ato de amor. obriga-nos a sentir e compreender cada momento de partilha. cada raio de luz. cada sombra. cada sorriso. cada movimento de confiança – é isso que faço aos amigos que me deixam fotografar. guardo-lhes os sorrisos. os gestos. os olhos do corpo que os tornam únicos – só os fotógrafos imortalizam momentos inesquecíveis – um fotógrafo é para sempre. depois do clique. somos inapagáveis – sei que. para estes nossos amigos das fotos. eu. fotógrafo entusiasta e amador. ficarei eternamente presente em cada fotografia – um dia inesquecível

 

texto dedicado à minha “colega” e amiga fotógrafa – andreia aluai


05/10/2016

domingo absoluto



                                                                        tela - karen woods


domingo – aprendi que tudo o que sou se resume à palavra escrita. ao modo como entalho cada pensamento na perpetuidade de uma folha em branco –

         – penso:

hoje. domingo. dia de chuva para o corpo. aguaceiros fracos. o vento a puxar norte e o apito do comboio a ressoar pelas traseiras da casa –

         – sempre me angustiei com a chuva anunciada pelo apitar dos comboios   

em casa dos meus pais. nos dias em que se ouvia o apito do comboio. logo intuíamos que a chuva já pairava pelo canteiro do vizinho – aplicava então o ditado popular: quando vires as barbas do teu vizinho a arder. põe as tuas de molho – a chuva estava ao dobrar da esquina – da minha casa à casa dos comboios havia cerca de três quilómetros em linha reta. percurso feito pela criançada em menos de dez minutos em passo ligeiro – mas a distância torna-se irrelevante quando o que chega vem tocado a vento – e tudo o vento arrasta de um comboio revoltado que apita em forma de grito: chuva. chuva. pouca terra. tristeza. pouca terra. chuva. chuva. tristeza. chuva e uma nostalgia de morte que molda o som agudo do apito – o vento a deslizar pelas frinchas das janelas zune nos ouvidos como tortura. e eu a correr para o terraço. e os olhos a esbarrarem nos montes cobertos de um negro feio – o silêncio era maior que as montanhas – só se ouvia o vento a pregar com as árvores. enquanto a passarada fugia em debandada para sul – nas janelas da vizinhança as roupas coradas sacudiam-se inquietas ao que restava do sol. enquanto as donas de casa as recolhiam em aflição – a chuva quando chegava à minha cidade. era para durar –

        – não é por acaso que se diz que braga é o penico do céu

lançava os meus olhos incomodados para norte e lá estavam as nuvens de cara fechada. escuras de ruindade. a marchar num galope de combate. em formação guerreira. rasgando vales e serras. profetizavam angústia. agonia. amargura – havia um silêncio nostálgico puxado a um vento esguio. cheio de maus presságios – havia também uma tormenta anunciada dentro de mim

         – a chuva açoita ferozmente a verdade de cada corpo: lava-lhe a carne. humedece-lhe a alma

os domingos sempre foram assim. incertos. tristes. silenciosos. feitos de nuvens magoadas a murmurar nostalgia numa calmaria amarga – mas com chuva. os domingos tornavam-se desumanos. malvados. perversos. tão cruéis como o apocalipse prometido – finalmente os anjos de joão justificam o livro sagrado do cristianismo –

         – nestes dias dominicais nunca sou de grande imaginação. tudo está parado – eu também

no corredor da minha casa. a passadeira estende-se asseada até à porta da rua. mas também por ali o barulho habitual dos dias da semana esvaneceu – não quero sair. o corpo não quer sair. só quero expurgar da carne esta sombra de morte anunciada – este silêncio é imenso. uma aflição. um sufoco mudo – tomara que nenhum romeiro errante surja para desarrumar as cadeiras e me roube o silêncio dos cortinados – dizem que o domingo é o dia da família – para mim todos os dias são da família menos o domingo –

         – tudo dentro dos domingos é silêncio. é nostalgia. é aborrecimento. é a antecâmara de um velório – é um tempo contado que fere a cada segundo

domingo é dor que dói sem saber onde e porquê – a tristeza invade-me numa sensação de morte antecipada dos sentimentos. e tudo que era para ser escrito é vago. vazio. as mãos. esvaziadas da força interior. deixam-se cair até ao fundo do corpo na procura da salvação – aos domingos preciso de sentir o sangue correr nas veias para saber que existo – olho-me então pela janela. imagino uma chuva diferente. subindo ao céu. numa correria feita água-moço. inocente. talvez adolescente. suave como todas as faces acabadas de nascer. sem segredo. sem mancha. sem engano. numa dança pura. branca. efémera. nada mais do que o regresso ao começo do meu universo – um universo físico pois já não acredito no universo que me pede rezas – o meu céu é a terra que imagino. o inferno ergue-se sempre que viro as costas à janela – é domingo de chuva. chuva que fere. que não purifica. que me humedece a alma e me faz virar as costas ao mundo – é o domingo de um homem-chuva

         – os dedos. ansiosos por escrever. escamam a pele no atrito das palavras que não saem – talvez queira aquilo que não tenho

o cansaço quebra o corpo. é assim que a morte se insinua? e o cinzento preenche cada esquina do quarto onde os ângulos são cada vez mais aguçados. e a geometria das palavras teima em não aparecer – o candeeiro não ilumina coisa nenhuma. nem dentro nem fora do corpo. a única luz que me alcança é a que escapa às cortinas de uma janela virada a sul – mas tudo está a norte. a igreja. com os seus sinos. clama por gente de fé [cada vez há menos crentes]. o jardim onde as crianças brincam com um futuro que não enxergo [cada vez há menos crianças]. as romarias que atiram fogo contra o céu numa tentativa de acordar o santo padroeiro [cada vez há menos romeiros]. os namorados que de beijo em beijo adiam para amanhã o que devia ser hoje [cada vez há menos amor]. aos domingos tudo que vejo é a norte do corpo. a sul. apenas o que nunca vi

         – e aqui estou hoje. a escrever como se fosse criança. – mas não sou. e os domingos também já não são desse tempo

resta-me. em boa memória. o acordar aos domingos em casa dos meus pais. o cheiro a assado no forno ocupando o ar do quarto. e a certeza de uma comida melhorada por ser dia do senhor. enquanto a minha mãe corria a casa em afazeres que nunca compreendi – talvez sentisse também a nostalgia dos domingos. e o trabalho da casa fosse apenas uma maneira de a superar – acordava. bocejava. virava o corpo para o lado da janela. a luz bocejava [também] pelos intervalos da persiana enquanto a vida acontecia noutras partes da casa – no ouvido ainda sonolento. uma cadeira arrastada. uma janela a abrir. um tapete sacudido. um lamento em voz rezingona. uma corrente de ar que não magoava o corpo. enrodilhado nos cobertores. e os braços a espreguiçar felicidade – olhos abertos. e a roupa do domingo sentada na cadeira em frente à cama. em espera. em alegria. aprumada. com os sapatos alinhados pelas biqueiras. e as meias de lã a dar pelo joelho. sem remendos. emparelhadas pelos calcanhares – tanto a roupa como eu sabíamos que este era o único dia em que saiamos de casa orgulhosos: a roupa comigo e eu com o brio do corpo e da mente – e ali estava eu. a vestir-me da frescura. de tudo o que era novo. lavado. passado. engomado. e os sapatos engraxados reluzindo um negro-brilho que serenava a pressa da infância – e a minha mãe em aflição gritava-me:

         -- olha as horas. a missa não espera por ti – não vais voltar a chegar atrasado. é uma vergonha – a igreja do carmo estava a cento e cinquenta metros

corria para a missa das onze e trinta e regressava para o almoço amparado por uma proteção divina que. mesmo invisível. eu sentia – eram horas de sentar à mesa. a aparadeira de barro trazia o aroma da melhor carne assada do universo – éramos cinco numa sala só nossa – e a mesa vestida de um branco encantador. dizia que a minha casa não era pequena – éramos cinco. numa “casa absoluta” – e ali estávamos todos numa graça que também era do senhor. rodeados de palavras por todos os lados. erguidos dentro de um instante que durou a minha vida inteira – ainda vivo dentro dessas paredes. numa mesa que não mudou. na cadeira à direita do meu pai. depois da minha mãe. e de costas para uma natureza morta comprada a um artista-adornado[r] de almas – naquela mesa só eu era pequeno. os pratos enormes. brancos. de uma porcelana grossa. com uma risca azul que era céu. os copos gigantescos equilibravam-se num único pé. delicados. esguios. bonitos. a honrar o dia – nunca compreendi aquele equilíbrio-harmonia de cada copo no seu lugar. e a forma delicada como o meu pai o levava à boca. pousando-o de seguida com uma delicadeza de cristal. enquanto os lábios se tocavam numa caricia gustativa. logo escondida por um guardanapo do mesmo branco absoluto da toalha – à semana eram copos rasos. grossos. feios. feitos para partir. para durar um instante rápido – naquele tempo não havia coca cola. nem sumos. nem outras mixórdias feitas de corantes. só água num jarro de barro com o bico fanado. com a mesma risca azul do céu – os talheres. ajustados ao tamanho certo à direita do corpo. prometiam levar à boca a certeza de que nunca mais deixaríamos de ser cinco. cinco numa casa “absoluta” – o guardanapo pendurado no pescoço cobria-me o corpo. embrulhava-me num branco igual ao da toalha. enquanto as nódoas desertavam para o chão. com medo de irritar a minha mãe. que não se cansava de repetir:

         --tem cuidado com a roupa. não te sujes. olha que não tens outra para sair – não me faças passar vergonha

e ali estava eu à mesa sem ainda perceber a importância do número cinco. de um cinco inteiro e não de um quatro mais um – não sabia nada de contas. e só muito tempo depois é que percebi que quatro mais um nunca é igual a cinco – foi naquela sala só nossa. absoluta. que aprendi a contar – os pés para trás e para a frente distraíam-me das conversas dos meus irmãos. enquanto o meu pai sorria – o meu pai sorria sempre. mesmo quando o assunto era sério – ali estava ele. absoluto. do tamanho da nossa sala. à cabeceira da mesa. vestido também numa roupa de domingo. de família. num corpo bonito. orgulhoso. por dentro e por fora. e o sorriso a envolvê-lo num domingo inteiro. as mãos brilhavam. e a comida chegava à boca numa elegância merecida. embelezada por um bigode finíssimo. traçado a lâmina de barbeiro. que riscava a nossa sala de uma ponta à outra. e os olhos. os olhos meu deus. bonitos. bons. nasciam-lhe na alma e iluminavam um caminho que nunca soube encontrar

         – é domingo. todos os dias são agora para mim domingo – mas já não há assado no forno

mas cá estou agora. a pensar. como os domingos se mantêm chuvosos. agora sem comboios. sem o apito a anunciar chuva. a prever mau tempo – mas a chuva cai todos os dias e o vento já não atravessa as frinchas. atravessa o corpo numa saudade que me rompe a memória. e os cinco já não são cinco. somos quatro e o domingo pesa ainda mais. sem generosidade. sem carne assada. e os cães noutra sala dizem-me que ainda sou mais do que um simples domingo e que tenho de cuidar de mim. entender-me com o tempo que me resta – e o que era soma é agora qualquer coisa que não sei explicar. impossível de calcular – e a saudade amarrada aos anos que passaram por mim. e eu sem saber se o que vem além disto é mais do que um balançar de pés numa cadeira que me prendia a uma sala só nossa. e as nódoas já não caem no chão. colam-se ao corpo. como lapas agarradas a um mar que nunca tocou uma sala como a nossa. absoluta – e o domingo a rasgar-me em imagens que julgava esquecidas. o copo cada vez mais pequeno. e os lábios à procura de um pedaço de tempo que sacie esta sede pelo domingo que me viu nascer – o domingo aperta-me o corpo por um braço que me esgana – sufoco. sufoco. sufoco – é domingo. chove. fora da minha janela – dentro também 


03/10/2016

loucos desejos





tela - fernando botero




mãos malditas com loucos desejos
não me fustigueis com o vosso olhar
que. em horas despidas e sonhos cruéis
sois monstros multiplicados por mil
silêncios parados de encontro ao nada


em cada dedo mora uma esperança.
em cada linha cavada uma sina apocalíptica
dormem ruas ladeadas de luzes insólitas
calçadas de sonhos perdidos e idiotas
onde o peregrino teima em caminhar


sonhos que escutam desespero em mudez  
escutam? sim... o ruído de letras a nascer
onde percorrem braços inertes de sofrimento
partilham um coração que bate poesia    
desagua dor em dedos revoltosos


queria ter algibeiras que fossem prisões
deixar-vos agoniar com a falta do olhar
pois sois mágoa parada num trilho de escrita
onde morrem  as mãos vazias de saber


deste inferno diz-me a voz da rua que dorme
em miradouro onde a beleza é o precipício  
se olhares... se sentires… se escutares…
talvez um dia… quem sabe hoje até…


descobrirás que a ambição também mata